quarta-feira, 23 de julho de 2025

As notícias da morte do capitalismo são um pouco exageradas: sobre a entrevista de Varoufakis para a Focus

Muito boa a entrevista de Yanis Varoufakis, publicada pela "última" edição da revista Focus. A primeira vez que ouvi falar de Varoufakis foi por conta de sua atuação como ministro do governo grego. Como ele e muitos outros, dei um crédito imerecido ao Tsipras. E achei muito correto que Varoufakis tenha pedido demissão do governo grego, quando este se dobrou à Troika. Desde então, li vários de seus livros e acompanho seus posicionamentos, na maioria das vezes com simpatia e concordância. Por exemplo, quando ele diz que “uma coisa é ter austeridade sendo imposta por Bolsonaro, outra completamente diferente é tê-la imposta pela esquerda, quando a esquerda a impõe, a esquerda morre, ela comete suicídio”.

Isto posto, considero que Varoufakis está errado ao afirmar, na entrevista à Focus, que “o capital foi tão triunfante que matou o capitalismo”. Evidentemente não se deve julgar um pensador ou uma teoria com base numa entrevista. Nesse sentido, recomendo a quem ainda não leu, que leia o livro Tecnofeudalismo: o que matou o capitalismo. Mas como seguramente a maioria lerá apenas a entrevista, é com base no que é dito nela que vou fazer a crítica a seguir.

Meu ponto de partida é uma afirmação feita por ele, acerca da derrota que sofremos na Grécia: “Somos derrotados por causa das nossas próprias falhas”. Acrescento que entre essas falhas que nos derrotam, estão as teóricas. Entretanto, a força política de uma ideia nem sempre coincide com sua correção científica. Também por isso, discordo da afirmação que faz Varoufakis, segundo o qual os acadêmicos que estão trabalhando nas grandes empresas e instituições do sistema seriam “profundamente incompetentes”: “se você os analisar como economistas, eles eram patéticos, não entendiam economia básica”. Não concordo, porque a “competência” que se espera desta gente é de outro tipo. É a de servir aos interesses do Capital. E isso eles fazem muito bem, inclusive aqueles que na academia se posicionam à esquerda, mas nos governos e bancos fazem o serviço sujo.

Já a competência teórica que se espera dos intelectuais da classe trabalhadora é a capacidade de orientar nossa luta. Como aliás diz o próprio Varoufakis, no limite não se trata de “economia”, no sentido de teoria, mas sim de “força bruta”. Por isso, mesmo concordando que não devemos superestimar o inimigo, também sou contra subestimar “as habilidades do inimigo, suas competências, compreensão, destrezas tecnocráticas”. Eles estão aí nos dominando há muito tempo e já nos derrotaram muitas vezes. E não acho que subestimar o lado de lá ajude a criar esperanças do lado de cá.

Feito este preâmbulo, vou ao ponto citado no início deste texto: a ideia de que o “tecnofeudalismo” já “matou o Capitalismo”.

Varoufakis diz que essa afirmação “irritou muitos dos meus [dele] camaradas na tradição marxista”, embora ele próprio acredite que está fazendo uma “análise política marxista”. Sobre esta discussão meio teológica, acerca de quem é ou não marxista, prefiro não opinar. Meu foco é algo mais concreto, a saber: será mesmo verdade que “o capital foi tão triunfante que matou o capitalismo, e o que temos agora é pior que o capitalismo, é baseado no capital, e é baseado no triunfo completo do capitalismo. Mas não é mais capitalismo (...)”?

Que o capitalismo de hoje é diferente do capitalismo do século 18, 19 ou 20, acho que ninguém duvida. A questão é saber se deixou ou não de ser capitalismo.

Na minha opinião, a essência do capitalismo está no assalariamento, ou seja, numa forma específica através da qual os proprietários dos meios de produção exploram os produtores. E o assalariamento segue sendo, neste ano santo de 2025, a forma predominante de exploração. Fato comprovado, aliás, pela pandemia, quando se comprovou o quanto o trabalho morto depende do trabalho vivo. Se não dependesse, eles não teriam feito tanto esforço para que os trabalhadores seguissem produzindo, mesmo com tamanho risco de contaminação e morte.

A predominância do assalariamento não se altera pelo fato de que, hoje, temos máquinas que “estão conectadas diretamente ao nosso cérebro, à nossa própria alma”. Acontece que, da mesma forma que o sistema financeiro, o que Varoufakis chama de tecnofeudalismo não sobrevive sem a base material fornecida pelo assalariamento.

Claro que Varoufakis tem razão ao apontar uma tendência, que aliás já havia sido comentada por Fernando Haddad num livrinho sobre o socialismo que o atual ministro escreveu no século passado: ao chegar no seu ocaso, o capitalismo vai exibindo alguns traços que existiam na sua juventude, exatamente quando ele ainda era obrigado a conviver com o feudalismo. O crescimento da “renda” e o “parasitismo” são sintomas disso. Nesse sentido é ótima a imagem segundo a qual “as plataformas digitais  (...) vivem na nuvem e são como feudos. Elas não produzem nada, exceto reunir produtores e consumidores, para que o dono desse feudo na nuvem possa extrair uma renda, que é como a renda da terra no feudalismo, mas agora é uma renda da nuvem baseada em capital, nessa forma de capital, que eu chamo de capital na nuvem”.

Deixo anotada uma questão – o papel da “renda da terra” no capitalismo, que nunca foi algo secundário – e peço a atenção para o seguinte: mesmo que fosse 100% verdade tudo que está entre aspas no parágrafo anterior, com base no que podemos dizer que já não se trata mais de “capitalismo”?

Nesse ponto, Varoufakis usa um argumento curiosíssimo, que devido a sua importância reproduzo integralmente a seguir: “Quando estamos nesse mundo, isso não é mais capitalismo, é uma espécie de, chamo eu, de tecnofeudalismo. Agora, algumas pessoas dizem: ‘Ah, qual é, ainda é capitalismo, Yanis, porque depende do capital.’ Ok, tudo bem. Mas eu também digo a eles: se isso fosse no ano 1800, em Londres, e estivéssemos discutindo em que mundo vivemos, seria feudalismo ou capitalismo? As pessoas diriam: ‘Ah, qual é, é feudalismo, onde quer que você olhe.’ No século XVIII, você veria senhores feudais, cavaleiros, condes e barões, e sim, claro, mas agora sabemos que havia uma grande transformação ocorrendo. O poder estava cada vez mais mudando dos donos da terra para os donos das máquinas, das fábricas, das ferrovias e assim por diante, eles poderiam ter chamado o capitalismo de outra forma. Poderiam ter chamado de feudalismo industrial. Mas acho bom que tenham chamado de capitalismo porque a mente humana percebeu, ficou chocada ao entender que isso não era mais feudalismo, nenhum tipo de feudalismo, isso era algo muito diferente”.

O argumento de Varoufakis é ótimo, porque ele direciona a argumentação exatamente para o ponto que me faz recusar a tese dele. No período de transição entre feudalismo e capitalismo, aconteceram lutas imensas entre os defensores do velho e do novo modo de produção. Portanto, a denominação acerca do que estava surgindo não era uma digressão acadêmica, era parte de uma guerra pelo futuro. Para os que lutavam pelo futuro, o inimigo era o feudalismo. Aliás, o feudalismo era o inimigo inclusive para aqueles que estavam se preparando para a batalha seguinte: a luta pelo comunismo.

Sendo esse o contexto, pergunto qual seria a decorrência prática, em 1800, se fosse difundida a tese de que (usando termos que estão na entrevista) “o feudalismo industrial matou o feudalismo”.

Voltando aos dias que correm, se admitirmos que Varoufakis está certo, qual seria a conclusão? A de que a luta contra o capitalismo não é mais necessária, pois o capitalismo teria sido morto pelo tecnofeudalismo??

A essa questão eu respondo assim: dizer que o tecnofeudalismo matou o capitalismo significa que destruir o capitalismo não precisa ser mais uma meta do movimento socialista. Curiosamente, esta ideia encaixa como uma luva em muitos movimentos “progressistas” e “democratas” que precisam explicar porque deixaram de lado as bandeiras anticapitalistas: elas seriam extemporâneas!

Varoufakis poderia ter se limitado a fazer uma análise dessa “nova forma de capital, que é absolutamente sem precedentes, nova e inovadora”. Mas a propensão tipicamente acadêmica de enunciar uma novidade o levou a dar um passo além: dizer que o capitalismo “morreu”. E isso simplesmente não é verdade. No futuro isso pode acontecer, ou seja, o capitalismo pode vir a ser substituído por algo ainda pior? Falando em tese, pode, como aliás aparece em algumas distopias. Por sinal, aproveito para recomentar, como na minha opinião o melhor texto de Varoufakis, um intitulado Star Trek, seriado comunista? | Outras Palavras

De resto, reitero: a entrevista é ótima, seus livros são ótimos, suas posições são legais. Mas como tudo na vida, melhor regular o entusiasmo e não cometer certos exageros. Afinal, na linha do que disse certa vez Mark Twain, as notícias da morte do capitalismo são um pouco exageradas...

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