Segundo O Globo, o Brasil voltou a ser “um país de classe média”.
A afirmação se baseia num “levantamento” feito pela Tendências Consultoria.
Segundo este levantamento, em 2024 teria havido “ganho de renda e ascensão social”.
Dirigentes do PT denunciaram o fato de O Globo ter escondido o papel do governo Lula neste “ganho de renda e ascensão social”.
A denúncia procede.
Mas seria prudente combinar a denúncia com os seguintes esclarecimentos cautelares.
1/o Brasil nunca foi e continua não sendo “um país de classe média”.
Esta afirmação serve para ocultar que o Brasil segue sendo um país brutalmente desigual, onde a maior parte da classe trabalhadora recebe menos do que o necessário para ter uma vida decente. Basta dizer que em dezembro de 2024 havia 327.925 pessoas em situação de rua, “14 vezes superior ao registrado onze anos atrás, quando haviam 22.922 pessoas vivendo nas ruas no país”, conforme a Agência Publica;
2/o conceito de “classe média” adotado pela Tendências Consultoria é baseado num contestável critério de renda média domiciliar mensal.
A saber: classes D e E, até 3.400,00 mensais; classe C, de R$ 3.400 até R$ 8.100; classe B, de R$ 8.100 até R$ 25.200; classe A, mais de R$ 25.200. Na classe A estariam 4,3% dos domicílios; na classe B, 14,8%; na classe C, 31%; nas classes D e E, 49.9%.
É com base nesses números que a Tendências Consultoria conclui o seguinte: pela primeira vez desde 2015, a maioria dos domicílios vive com uma renda média superior a R$ 3,4 mil. A maioria no caso quer dizer 51,1%.
Noutras palavras, bastaria um pequeno ajuste na composição da denominada classe C, para a conclusão ser outra.
E, convenhamos, colocar numa mesma classe quem recebe entre 3,4 e 8,1 mil é simplesmente desconhecer o peso que o aluguel e a comida têm no custo de vida; e colocar numa mesma “classe” rendas entre 8 e 25 mil é simplesmente non sense.
Ou seja, mesmo que fosse correto o critério de renda para categorizar uma população, cinco categorias não bastariam;
3/o conceito de “classe” baseado em renda é, em si mesmo, enganoso.
Se “as classes C e B são tipicamente as de classe média” porque “nessas famílias, a principal fonte de renda vem do trabalho”, parece óbvio que muito mais adequado seria utilizar a categoria “classe trabalhadora”, dentro da qual existem diversas subcategorias, entre as quais aquelas derivadas dos distintos níveis de renda.
Mas, claro, falar de “trabalho” e falar de “renda” tem consequências políticas e ideológicas distintas.
Uma consequência meio óbvia: quem se acha classe média, é particularmente resistente a se organizar em sindicatos.
Por outro lado, se as classes C e B são aquelas cuja “principal fonte de renda vem do trabalho”, de onde vem a renda das pessoas categorizadas como D e E, exatamente aquelas que votaram maciçamente em Lula e no PT nas eleições de 2022? Suponhamos que venha de transferências do Estado. Isso faria com que elas não fossem mais consideradas como "trabalhadoras"?
Comentário lateral: por qual motivo os empresários, quando recebem subsídios do Estado, continuam sendo parte das "classes produtoras"; e os trabalhadores, quando recebem bolsa família ou outro tipo de transferência, deixam de ser considerados "trabalhadores"??
4/finalmente, o mais importante é o alerta político.
Segundo O Globo, essa ascensão da classe média que estaria acontecendo agora não ocorria desde 2015.
E o que mais aconteceu em 2015?
Estava em curso uma sequência de eventos que desembocou no golpe.
Naquela época, houve um intenso debate sobre o comportamento dos setores sociais que (supostamente) haviam ascendido à condição de classe média. Foi dito, por exemplo, que a elevação do nível de vida das pessoas, quando desacompanhada de consciência e organização, pode provocar uma direitização.
Também foi dito o seguinte: que os ricos e os setores mais bem remunerados não suportam ver a ascensão (mesmo que modesta) dos setores pior remunerados da classe trabalhadora.
Ou seja: o que é uma notícia estatisticamente positiva, pode ser uma notícia politicamente preocupante.
Por tudo isso, cuidado com a marmota.
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