segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Comentário sobre dois textos de Luis Felipe Miguel e Milton Temer

Recomendo a leitura dos textos de Luis Felipe Miguel (LFM) e de Milton Temer (MT), reproduzidos ao final.

O texto de LMF começa com uma pergunta: "Está faltando uma revolução?"  

Em seguida, LFM descreve a situação brasileira, cuja síntese é a de que estaríamos "empacados". 

Mais para o final de seu texto, LFM explica que a "revolução" de que ele está falando "não precisa passar por alguma tomada do Palácio de Inverno". 

E conclui defendendo "uma transformação revolucionária do padrão histórico de relacionamento do Estado brasileiro com as elites e com as classes populares. Sem essa revolução, não temos sequer como manter uma democracia liberal minimamente 'civilizada'."

De fato, os obstáculos – econômicos, políticos, legais, institucionais, internacionais, fáticos - que enfrentamos neste terceiro mandato de Lula são imensos. Tão grandes, que para sua remoção faz sentido falar da necessidade de uma “revolução”. 

Entretanto, já que perguntar não ofende, pergunto: como fazer uma "revolução" na relação entre o Estado e as classes, sem fazer uma revolução na relação entre estas mesmas classes? Como fazer uma revolução na relação entre as classes e, ao mesmo tempo, manter uma “democracia liberal”?  Como fazer uma revolução na política sem fazer uma revolução na sociedade? Como falar de revolução numa sociedade capitalista, sem falar de socialismo?

Isto posto, passemos ao texto de Milton Temer.

Temer concorda que faz falta uma "revolução", mas o foco de seu texto está em como enfrentar a situação descrita por Luis Felipe: “o que você nos descreve” não terá solução “sem que uma pressão partidária pela esquerda se organize na luta institucional, de molde a gerar mobilização social”. 

Sempre confiando que perguntar não ofende, pergunto: o que significa “gerar mobilização social” a partir de uma “pressão partidária pela esquerda” que se “organize na luta institucional”? 

Como Temer afirma a esperança de que o PSOL possa contribuir nisto – desde que seu partido consiga “se livrar de sua atual maioria moderada na direção” – imagino que por “luta institucional” ele se refira à ação das bancadas legislativas. 

Se for isto, então Temer está falando de algo que parte do PT já faz, a saber: terceirizar tarefas para os parlamentares. 

Ao menos no caso do PT, esta terceirização não tem resolvido o problema da mobilização social, nem no sentido estrito da mobilização, nem no problema de base, que é a perda de influência dos sindicatos e dos movimentos sociais junto a classe trabalhadora.

Resumo da ópera, ao menos para mim: os textos de Milton Temer e de Luís Felipe Miguel ilustram parte do impasse que vive um setor da esquerda brasileira, profundamente crítico acerca dos rumos do PT, mas com grande dificuldade para oferecer uma alternativa, seja no plano prático, seja no plano teórico.

Isso não acontece por acaso e não acontece apenas no Brasil. 

No plano mundial, há muitos anos que - com as exceções conhecidas - a classe trabalhadora vem sofrendo seguidas derrotas no plano econômico, social, político e cultural. O número de conflitos militares aumentou. A situação ambiental é catastrófica.

Observando a situação com realismo, a conclusão é a seguinte: mesmo que as coisas possam vir a melhorar no médio-longo prazo, a tendência é que no curto-médio prazo as coisas piorem um pouco mais.

Paradoxalmente, é nesse ambiente e talvez apenas nesse ambiente de crise sistêmica que se possa falar, realisticamente, em revolução no sentido de superação do capitalismo e de transição socialista.

Acontece que este mesmíssimo ambiente de crise estimula grande parte da esquerda a adotar uma postura defensiva. Trocando em miúdos: contra uma direita que faz de tudo para piorar o status quo, levanta-se uma esquerda que passa a defender o status quo ("o sistema").

Como já foi assinalado, esta postura defensiva não se limita ao plano das ações práticas, táticas, imediatas; ela também aparece no plano programático, estratégico e teórico. 

Dito de outra forma: tem gente escavando o fosso entre as condições objetivas e as condições subjetivas. 

Os impasses estruturais são cada vez mais brutais, exigindo transformações cada vez mais radicais e imediatas. Entretanto, ao menos por enquanto não é majoritária, nas forças organizadas da classe trabalhadora, a disposição de tentar fazer o que precisa ser feito: virar o mundo de ponta cabeça. 

O fosso entre problemática e solucionática já apareceu outras vezes na história. A dificuldade resultante dele não é, pois, um problema inédito. Nem é um problema fácil de resolver. Aliás, não encontrou solução na maioria das situações ocorridas até hoje. 

Isto posto, se queremos contribuir para sua solução, ao menos naquilo que está ao nosso alcance – a situação brasileira, no santo ano de 2025 e depois – um bom começo é abandonar certos exageros, sejam os direitistas, sejam os esquerdistas.

Um exemplo do primeiro tipo de exagero está nas frases que reproduzo a seguir, extraídas do texto de Luis Felipe Miguel cuja íntegra está ao final. Os destaques são meus: 

“Dá um desânimo desse país. O pior é saber como nosso horizonte está restrito. Podemos sonhar com uma nova vitória em 2026, para evitar que a extrema direita volte ao Planalto, mas não podemos sonhar com um governo que governe. Qualquer governo estará emparedado”.

Curiosamente, este raciocínio supracitado de LFM é parente muito próximo das supostas justificativas apresentadas pelos setores da esquerda que defendem não existir “outra saída senão se curvar mais e mais”. 

Afinal, se nosso horizonte está restrito, se qualquer governo estará emparedado, se não podemos sonhar com algo melhor, não faz sentido reclamar e criticar quem busca pelo menos sobreviver, ainda que à custa de concessões sem fim. 

Um exemplo do segundo tipo de exagero está na passagem a seguir transcrita do texto de Milton Temer: o governo “não está acuado por obra dos céus. Está por opção política de não confrontar os poderosos”. 

Bem que eu gostaria que isso fosse totalmente verdade. Mas não é. 

Claro que Temer tem razão ao dizer que o acuamento não é obra dos céus. Mas também não é obra apenas de quem recua até ficar acuado (Bocage que me perdoe o uso indevido). 

O acuamento é obra, também, do grande capital, do imperialismo, da extrema-direita, da direita tradicional, de seus funcionários e instrumentos. Ao menos neste momento da história do Brasil, só tem um jeito de derrotar esta quadrilha: através de uma frente popular liderada pelo PT e com o apoio do governo Lula.


Segue abaixo o texto do Luis Felipe Miguel 

Está faltando uma revolução?

É difícil olhar para o Brasil de hoje não chegar à conclusão de que estamos empacados.

No Brasil, elegemos a duras penas um governo que devia ser democrático e progressista, mas ele não consegue fazer quase nada. Emparedado pela Faria Lima, pelo Centrão, pelos militares, pelos latifundiários, pelos fundamentalistas religiosos, pela imprensa burguesa, vive de recuo em recuo, de concessão em concessão.

Aprovou um pacote fiscal que, mais uma vez, faz os pobres pagarem a conta. Para aprová-lo, liberou bilhões no pagamento de emendas de parlamentares venais.

Mas nem assim o “mercado” ficou satisfeito. Ele não aceita qualquer gesto de mínima independência, qualquer migalha jogada para satisfazer a base social do governo: quer submissão total e absoluta. A especulação contra o real continua e o governo não vê outra saída senão se curvar mais e mais.

Depois de dois anos reclamando, com razão, da gestão de Roberto Campos Neto à frente do Banco Central, o governo Lula se vê constrangido a sinalizar que seu indicado, Galípolo, continuará na mesma toada.

E quando Flávio Dino põe novamente um freio a farra das emendas parlamentares, o governo se sente ameaçado porque sabe que a reação dos donos do Congresso será tremenda.

O Supremo, por sua vez, tem agido em favor dos instrumentos formais da democracia (depois de ter legitimado o golpe de 2016, convém não esquecer). Mas já mostrou que não se dispõe a salvar nenhuma das medidas de proteção à classe trabalhadora que perdemos nos últimos anos. Quando briga com o Congresso, é uma disputa por espaço. E a prioridade é manter os muitos privilégios do Judiciário, os salários inchados por mil penduricalhos, a impunidade quase absoluta a seus integrantes.

Os ministros do STF passeiam pelo mundo com mordomias bancadas por grandes empresas. Capitalista corruptor, político corrupto, bicheiro assassino, parece que todo mundo tem um ministro do STF para chamar de seu.

Falei de bicheiros, mas não é só. Todos os setores do crime organizado – PCC, milicianos etc. – estão infiltrados no Legislativo, no Judiciário, no Executivo. Têm seus vereadores e deputados, seus juízes e desembargadores, seus delegados de polícia e coronéis. 

Podemos ver algum alento no fato de que os militares aparentemente aceitaram a prisão de um dos seus, o general Braga Netto, e sabem que outros, como Augusto Heleno, já são favas contadas. Mas, fora isso, não aceitam que se dê nenhum passo na ampliação do controle do poder civil sobre eles. O episódio recente, em que a Marinha divulgou, nas redes sociais, um vídeo de ostensiva insubordinação contra o governo legítimo, é revelador. Lula ficou bravo, pensou em demitir o comandante da força, mas foi dissuadido e deixou passar.

Podia falar da reunião do Conanda, em que, com medo do barulho dos fundamentalistas religiosos, o governo votou contra a resolução de garantiria o acesso das meninas estupradas a seu direito ao aborto legal.

Podia falar das pontes que caem sem manutenção, embora os laudos se acumulem ano após ano.

Podia falar da cobertura vacinal que continua falha, dois anos depois do novo governo assumir.

Dá um desânimo desse país. O pior é saber como nosso horizonte está restrito. Podemos sonhar com uma nova vitória em 2026, para evitar que a extrema direita volte ao Planalto, mas não podemos sonhar com um governo que governe. Qualquer governo estará emparedado.

A única esperança para o Brasil, como sabia Leonel Brizola, era o presidencialismo. A possibilidade de eleger um presidente mais à esquerda, que encaminhasse algumas medidas em favor das maiorias.

Pois o que foi feito, do golpe de 2016 para cá, foi esvaziar a presidência de grande parte de seus poderes. Com um projeto claro; nas palavras de Wanderley Guilherme dos Santos, escritas logo após a derrubada de Dilma, impor uma “ordem de dominação (...) nua de propósitos conciliatórios com os segmentos dominados”.

Este projeto continua em vigor – e agora buscam implantá-lo mesmo sem precisar reverter o resultado das eleições presidenciais, como fizeram oito anos e meio atrás.

É difícil imaginar uma mudança que passe por esse Congresso, por esse Judiciário, por essa elite política. Sem o aumento da capacidade de pressão – isto é, da mobilização e da organização – da classe trabalhadora e dos dominados em geral, há muito pouco espaço para avançar.

A revolução de que estou falando não precisa passar por alguma tomada do Palácio de Inverno.

Mas o experimento democrático que foi fraturado com a deposição de Dilma Rousseff se baseava num equilíbrio instável entre regras democráticas e desigualdades sociais profundas, idêntico ao que vigorou no período democrático anterior (1945-1964), que dificilmente tem como ser reativado.

Um novo equilíbrio precisará ser alcançado. É preciso radicalizar a democracia, com um compromisso mais ambicioso com a justiça social. Este caminho, infelizmente pouco provável no curto prazo, exige uma transformação revolucionária do padrão histórico de relacionamento do Estado brasileiro com as elites e com as classes populares.

Sem essa revolução, não temos sequer como manter uma democracia liberal minimamente “civilizada”.


Segue abaixo o texto de Milton Temer

MINHA RESPOSTA à oportuna postagem de Luis Felipe Miguel. 

Meu caro Luis Felipe, você tem prestado um imenso serviço ao processo democratizante brasileiro, com suas análises concretas da realidade concreta. Com as quais me identifico, com uma única ressalva. A generosidade na avaliação do lulopragmatismo na responsabilidade pelo Estado a que chegamos. 

O governo não está acuado por obra dos céus. Está por opção política de não confrontar os poderosos. De impor uma lógica desmobilizadora da luta social, com o que se torna dependente dos meliantes do covil parlamentar de Brasilia.

Não haverá transformação de cenário enquanto dependermos apenas dos métodos do lulopragmatismo como alternativa ao enfrentamento da ameaça fascista. Ameaça, aliás, que nunca deixou de existir em nosso cenário dito republicano. Sempre tivemos uma ampla base social conservadora, anticomunista, controlada pela religosidade. Antes dos neopentecostais, a Igreja Católica desempenhava o papel com intensidade semelhante. Teoglogia da Libertação foi um raio em céu azul. Antes, desagregada e só revelada nos votos de uma misteriosa “maioria silenciosa”. Foi o defensivismo do lulopragmatismo que permitiu sua aglutinação agressiva.

Em 2003 tivemos uma oportunidade especial para impor as mudanças. O neoliberalismo estava no fundo do poço. As FFAAs estavam desmoralizadas pelos anos de penúria propiciados pelos cortes orçamentários que mandavam a soldadesca pra casa antes do almoço para não ter que pagar rancho.

Mas Lula chega ao Planalto, e o que faz não é o que determinava a última resolução congressual do PT no Encontro de Recife em fins de 2021. A Resolução vencedora, do campo moderado – a então Articulaçã0 – , determinava, em sua abertura, a dissolução do modelo neoliberal que nos assolara nos anos 90. Lula se elege contra um Serra que, ciente do cenário, se anunciava candidato da “continuidade sem continuísmo”.

Mas Lula já havia optado pela pusilânime Carta aos Brasileiros e a rendição aos maganos do agronegócio, dos bancos, e das empreiteiras. Ampliou as restrições neoliberais com a ampliação superávit fiscal, de herdados 3,7% para 4,5, sob a égide da dupla sinistra Palocci/Meirelles. E recolocou as FFAAs no campo da direita reacionária ao optar, não por reformá-las diante da nova Ordem, mas a lança-las no pântano da intervenção no Haiti, onde os augustohelenos e grande parte dos atuais generais golpistas se especializaram na repressão a pretos e pobres.

Era o Pacto Conservador de Alta Intensidade, compensado por um Reformismo Fraco.

Sim, Luis Felipe. Está faltando uma Revolução. Mas o que você nos descreve na postagem de hoje, a partir da questão inicial, penso eu, não terá solução sem que uma pressão partidária pela esquerda se organize na luta institucional, de molde a gerar mobilização social. Mobilização social pela desalienação religiosa e política das camadas médias que arrastam os segmentos mais vulneráveis ao rupturismo do “contra tudo isso que tá aí” sequestrado pela extrema direita à outrora militância da luta anticapitalista.

Meu partido, o Psol, se conseguir se livrar de sua atual maioria moderada na direção, é a esperança de que tal caminho se reabra. Reforçando os setores dentro do próprio neoPT que ainda mantêm vínculo com a perspectiva combativa, anticapitalista, do saudoso PT dos tempos de Oposição. Com a militância e a formulação dos partidos da esquerda radical, UP, PCBR, PCB, uma Juventude Brizolista do PDT, podemos reestruturar uma verdadeira Frente de mudanças. É no que aposto nisso que ainda me resta de vida ativa.

Grande abraço e Luta que segue!!


3 comentários:

  1. Valter, não vou comentar seus argumentos. A resposta a eles está no prórprio texto que você critica, a partir da seleção de meios periodos . Sobre o único ponto essencial que vc comentou, reitero, sim, a necessidade da luta institucional, dentro dos preceitos leninistas que nada têm a ver com terceirizar para a bancada o que é obrigação do Partido. Trata[se, sim, de uma luta integrada entre o Partido e seu instrumento, subordinado, na luta instituicional - a bancada parlamentar federal , que opera no debate sobre caminhos do governo federal. Vc sabe disso melhor do que eu. Grande abraço e um bom 2025, onde espero te ver conteirando seu combate à direita, e não à aqueles que têm razões de sobre para ver este governo "acuado"por moto próprio. Por rendição ideológica explícita

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. “Ao menos neste momento da história do Brasil, só tem um jeito de derrotar esta quadrilha: através de uma frente popular liderada pelo PT e com o apoio do governo Lula.”

    Um vivente careceria de muita imaginação para figurar Lula e o PT liderando uma frente popular contra o acuamento realizado pelo grande capital, pelo imperialismo, pela extrema-direita, pela direita tradicional e pela imprensa corporativa.
    Lula, à frente de Fernando Haddad, Rui Costa, Jaques Wagner, Alexandre Padilha, Camilo Santana, Wellington Dias, Rafael Fonteles, José Guimarães, Edinho, Quaquá, Esther Dweck, Reginaldo Lopes, Luiz Marinho, Anielle Franco, e por aí vai, nessa indômita cruzada?...
    Nem em teatralizadas campanhas eleitoreiras, em meses devidamente autorizados pelo TSE, ver-se-á tal fantasia.
    ...
    Muito se fala em correlação desfavorável de forças a governanças de esquerda. De fato, é necessário seria e estrategicamente se contrapor a esse obstáculo histórico em Pindorama. Porém, no caso dos comunas acomodados no PT – e, bem entendido, torço por eles -, impõe-se antes de tudo superar a correlação de forças que lhes é desfavorável dentro da própria agremiação partidária.
    Infelizmente, olhando daqui e salvo melhor ponto de visada, sequer vislumbro alguma perspectiva nesse sentido.
    (Jucemir Rodrigues da Silva)

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