sexta-feira, 11 de junho de 2021

Roteiro de aula do curso da Escola Latinoamericana de História e Política (ELAHP) sobre “método de análise de conjuntura”.

(texto ainda em processo de redação e revisão)

Apresentação

A versão original deste texto foi escrita no final de 2016 e divulgada no início de 2017. Em junho de 2021, foi revisto e atualizado, para servir de roteiro para uma aula do curso da Escola Latinoamericana de História e Política (ELAHP) sobre “método de análise de conjuntura”.  

O vocabulário da luta

 Este texto é um subsídio para que nossa militância reflita sobre as várias mediações que existem entre nossa ação cotidiana e nossos objetivos de longo prazo.

 Entre estas mediações, destacamos o papel da análise concreta da realidade concreta, a análise das classes e da luta de classes, a análise da formação social e econômica do Brasil, a definição do programa, da estratégia, das táticas, das formas de luta e organização. E começamos a partir de onde falamos: a militância política.

 Militância

Frederico Engels - socialista alemão que escreveu com Karl Marx o famoso Manifesto Comunista (1848) - dizia que um trabalhador consciente possui três tarefas permanentes: estudarorganizar e lutar.  Vladimir Lenin - principal dirigente da Revolução de Outubro de 1917 - dizia por sua vez que o segredo da vitória da classe trabalhadora estava na capacidade de ação coletiva.

 Estudo, organização e luta coletiva: estes são os três aspectos que integram a ação de cada trabalhador e de cada trabalhadora consciente. Estudar, organizar e lutar coletivamente, de forma cotidiana e permanente, é o que faz das pessoas militantes.

 Militância implica em convencimento individualengajamento individual e responsabilidade individual. Mas "uma andorinha só não faz verão".

 A ação da classe trabalhadora só tem êxito quando dezenas, centenas, milhares, milhões de trabalhadores e de trabalhadoras se engajam, se convertem em militantes.

 Os motivos que levam um indivíduo a se engajar são os mais variados: por exemplo, a influência familiar, a influência dos vizinhos, a influência dos colegas de trabalho, de estudo, de lazer. Acontece muitas vezes de uma pessoa ser envolvida pelos acontecimentos, no início sem entender direito o que está ocorrendo.

 Mas por quais motivos milhões de trabalhadores e de trabalhadoras se engajam na luta?

 Em certo sentido, os motivos que levam milhões de pessoas a se engajar na luta constituem a somatória dos respectivos milhões de motivos individuais. Mas há uma diferença importante.

 Todo dia alguns indivíduos despertam para a luta. E todo dia, alguns indivíduos abandonam a luta, “adormecendo”. Entretanto, existem momentos na história de um país ou do mundo em que milhões, dezenas ou até centenas de milhões de pessoas “despertam” ao mesmo tempo.

 Isto não ocorre sempre. Mas quando acontece, constitui um fenômeno muito mais intenso e qualitativamente superior do que o simples despertar individual, que ocorre todos os dias e que muitas vezes é neutralizado pelo “adormecimento” individual de tantas outras pessoas.

 Em geral, o que motiva o despertar simultâneo de milhões e dezenas de milhões é uma agressão praticada pelos ricos e poderosos, algo que passa da conta, algo que ultrapassa os limites do tolerável, do aceitável, do suportável, do “sempre foi assim e sempre será assim”.

 Quando milhões, dezenas de milhões ou até centenas de milhões de trabalhadores e de trabalhadoras passam a estudar, organizar e lutar coletivamente, é porque é chegada a hora em que as grandes mudanças políticas, sociais e econômicas podem tornar-se realidade.

 Para falar de outra forma: as grandes reformas e as grandes revoluções sociais ocorrem quando as “massas” de ontem tornam-se as militantes de hoje.

 Massas

 A palavra “massas” é um termo que deve ser utilizado com muito cuidado.

 Massa é um tipo de alimento muito típico na gastronomia italiana (e, antes dela, chinesa), que para ser comestível deve primeiro ser cozinhada em água fervente, transformando o sabor, a textura e a forma. Em espanhol, o termo equivalente a massa é pasta.

 Um dos significados da palavra pasta em português é uma mistura de algum pó (por exemplo, farinha) com um líquido (por exemplo, água, leite ou óleo), resultando daí um estado físico intermediário. Uma massa de bolo, por exemplo, que poderá ser comida depois de batida e levada ao forno para assar.

 A palavra massa também é utilizada nas ciências, designando a quantidade de matéria presente em um corpo. A massa não se altera, mas o peso pode se alterar a depender da força da gravidade.

 Como ficou claro pelos exemplos acima, tanto na culinária quanto na física as “massas” são no fundamental inertes e transformadas por uma ação externa: a gravidade, a temperatura, a mistura com outros ingredientes.

 Por isto, quando estamos falando de pessoas, usar o termo “massas” pode ser interpretado como e pode ser mesmo uma atitude de desprezo e, também, de desconsideração e/ou desconhecimento da diversidade. Afinal, as “massas” populares têm uma grande diversidade de histórias, hábitos, culturas, sexos, idades, etnias, orientações etc.

 Esta diversidade é um fator importante para compreender como reage cada setor das “massas” a um mesmo estímulo “externo”. Ajuda a explicar a propensão maior ou menor de alguns para se converter em militantes, assim como ajuda a explicar o ritmo do processo.

 Ou seja: quando estamos falando de pessoas, as “massas” são heterogêneas. Elas possuem um nível de diversidade e autonomia totalmente diferente das “massas” do mundo físico e gastronômico. Isto tudo deve ser levado em conta por quem deseja utilizar a palavra “massas”. Entre outros motivos, porque a pessoa que hoje é militante precisa lembrar sempre que algum dia foi parte da “massa”.

 Sendo muito comum, aliás, que os militantes surgidos nos momentos de grande radicalização das massas serem também mais radicais nos propósitos e tenham mais “urgência” do que os militantes que despertaram para a luta nos momentos mais “mornos” da luta de classes ou que foram “domesticados” ao longo do tempo. Motivos pelos quais o militante que se julga “vanguarda” hoje pode ser ultrapassado, amanhã, pelas “massas” de ontem.

 Quem é militante deve trabalhar para que um número cada vez maior de pessoas estude, organize e lute. E para atingir este objetivo, é preciso saber lidar (individual e coletivamente) com as pessoas que não são militantes; é preciso saber trabalhar com as pessoas que são “massa”, aprender os processos e ritmos e estágios através dos quais evolui o nível de consciência e a disposição prática militante das pessoas.

 Relação militância e massa

 Muitos militantes gostam de ser considerados como parte integrante de uma “vanguarda”.

 Na terminologia militar, vanguarda é o destacamento que segue na frente, que primeiro entra em choque com os inimigos. Na terminologia política, vanguarda é a organização que indica o rumo da luta e que dirige os outros. Já nas artes, na moda e na vida cotidiana, de vanguarda é a pessoa ou o grupo que inaugura novas estéticas e adota novos comportamentos.

 Evidente, é muito fácil falar e é muito difícil ser vanguarda. A maioria dos que se acham “vanguarda” não têm ninguém na sua retaguarda, além de muitas vezes defenderem ideias e repetirem comportamentos ultrapassados, sem que se apercebam disto.

 Para complicar, só dá para ter absoluta certeza sobre se uma corrente política é mesmo “vanguarda”, depois que muita água passar por debaixo da ponte. Até porque as vanguardas não nascem, elas se formam no curso do processo.

 Por este motivo, sugerimos adotar a palavra “vanguarda” num sentido mais básico: a militância que se dedica, de maneira cotidiana e permanente, a trabalhar para que um número cada vez maior de pessoas estude, organize e lute.

 Se esta militância tiver êxito no seu trabalho cotidiano, quando ocorrer de milhões de pessoas despertarem para a luta, estes milhões terão um ponto de apoio fundamental -os que despertaram antes, devidamente organizados.

 Se nos momentos normais da luta de classe a militância tiver êxito no seu trabalho de estudar, organizar e lutar, então nos momentos mais quentes da luta de classe, quando milhões despertarem simultaneamente, as chances de vitória serão maiores.

 Dito de outra forma: a melhor vanguarda é aquela que se dedica a organizar as massas. Mas há diferentes maneiras de fazer isto. Há por exemplo quem consuma todas as suas energias no trabalho de base, sem enfatizar os vínculos entre este trabalho de base e os objetivos de longo prazo, a visão de mundo que nos anima e anima as organizações da classe trabalhadora. Assim como há os que dizem "militar no partido", como se um partido fosse um fim em si mesmo e não um instrumento para organizar a atuação da militância na classe e desta na luta de classes.

Neste sentido, é preciso recuperar a noção expressa no clássico Manifesto: o partido como parte da classe, aquela parte que reúne os que têm consciência dos objetivos imediatos e históricos pelos quais luta a classe trabalhadora.

Na vida real, esta parte - o partido no sentido histórico da palavra - dificilmente é uma única organização. Na prática, há diferentes organizações que lutam para influenciar o conjunto da classe: não uma vanguarda, mas vanguardas, espalhadas por partidos, sindicatos, movimentos sociais e na frente cultural.

Como já dissemos, trata-se da relação entre o “partido” no sentido amplo e o partido no sentido estrito da palavra. Apenas uma minoria da “militância dos movimentos sociais”, ou seja, apenas uma minoria daquelas pessoas que dirigem as organizações e os movimentos sociais, são filiadas a partidos políticos no sentido estrito da palavra. Mas todos e todas que são “militantes sociais” integram o partido no sentido amplo da palavra, ou seja, compõem o setor de vanguarda da classe trabalhadora. 

Em determinados momentos da história de um país, um “partido no sentido estrito” hegemoniza o “partido no sentido amplo”. Em certa medida isto aconteceu com o PCB no período 1945/1964 e com o PT no período 1989/2003. Noutros momentos, não há (ou está em crise) um partido hegemônico e a militância social vive em estado de crescente dispersão. Nestes momentos surge a tendência a tratar como absolutamente distintas e até antagônicas a “militância partidária” e a “militância social”. Surge também uma tendência a atribuir aos “militantes sociais” e/ou aos “movimentos sociais” tarefas de partido.

O fato é que, quando os partidos falham, apelar aos “movimentos” pode ser apenas uma maneira de não responder por qual motivo os partidos falham.  Assim, há um conjunto de questões a responder de forma articulada: qual o lugar que os movimentos sociais (enquanto luta real e concreta), e qual o lugar que os movimentos sociais (enquanto organizações permanentes) e qual o lugar que os partidos que intervêm nos movimentos sociais têm na estratégia global de transformação do Brasil?


O vocabulário da luta

 Para organizar melhor e lutar do jeito certo, é fundamental que as vanguardas estudem (compreendendo por estudar não apenas tomar contato com conhecimento já produzido, mas também investigar a realidade e produzir conhecimento novo).

 Estudar quem somos, pelo que lutamos, contra o quê e contra quem lutamos; aprender com quem lutou antes de nós e com os que lutam em outras regiões do Brasil, da América Latina e do mundo. Responder às velhas questões e, também, às novas questões.

 Estudar é trabalhar; e trabalhar exige disposição, esforço e técnica. Um dos aspectos técnicos envolvidos no estudo é o domínio da linguagem. Cada profissão tem seu vocabulário, um conjunto de termos que os trabalhadores daquela profissão utilizam para se comunicar.

 Qual é o vocabulário da militância? Quais os termos, as palavras, as categorias, os vocábulos utilizados pela classe trabalhadora na luta por seus interesses?

 Como sempre acontece, o verbo surge da ação, da vida cotidiana da classe, das lutas que ela desenvolve, muitas vezes tomando palavras de empréstimo das demais classes (assim como tomamos palavras de empréstimo de outros povos, de outras línguas e de outras épocas). Um bom exemplo disto é a palavra greve.

 Segundo alguns estudiosos, a palavra tem origem latina, designando areia ou cascalho. Estes estudiosos nos informam que a Place de Grève (Praça da Greve) ficava em Paris, à beira do rio Sena, num ponto em que se acumulava areia e cascalho. Nesta praça reuniam-se trabalhadores que estavam sem trabalho, à busca de um emprego. Mais adiante, o termo será empregado não para designar trabalhadores em situação passiva (parados por falta de um empregador), mas sim trabalhadores em situação ativa (parado contra seus empregadores).

 E como prova de que a classe trabalhadora lançou mão deste instrumento de luta em vários lugares diferentes, mais ou menos simultaneamente, temos além de “greve”, “paro” e “strike”.

 O vocabulário da luta é atualizado de forma permanente. Certas palavras vão mudando de significado. Outras palavras possuem desde sempre diferentes significados, a depender do país, do momento da história, do setor da classe que as utiliza.

 Por exemplo: "governo" e "poder". É muito comum ouvirmos algumas pessoas falarem que “Hugo Chavez chegou ao poder em 1998”, “Lula chegou ao poder em 2002”. Ao que outras pessoas respondem: “não chegamos ao poder, apenas conquistamos o governo”. E outras lembram, ainda, que não basta que um partido chegue ao poder, é necessário que a classe trabalhadora chegue ao poder.

 Por trás destas três frases e de suas variantes, há visões distintas acerca do que seja a política, o poder, o Estado, o governo e os processos eleitorais, a relação entre os partidos e as classes etc.

 A prática como critério

 Um dos desafios que enfrentamos, quando se trata de estudar, é dominar o vocabulário “técnico” com o qual descrevemos a luta e planejamos nossa intervenção nela. Há várias maneiras de fazer isto. A que consideramos mais adequada é a que toma como referência -- como “critério da verdade” -- a realidade.

 Ou seja: cada um pode “significar” como quiser termos como “classes sociais” e “luta de classes”, “Estado” e “política”, “partidos” e “sindicatos”, “conjuntura”, “tática” e “estratégia”. Mas para que haja diálogo e ação comum, é preciso que muitas pessoas “signifiquem” da mesma forma. Ou seja, é preciso que muitas pessoas entendam da mesma forma determinados termos. E para que isto seja possível, é preciso que aqueles termos expressem algo em comum para muitas pessoas. E este “algo em comum” é, em última análise, a realidade, a prática social, a ação e o produto da ação de dezenas e centenas de milhões de pessoas.

 Com um detalhe importante: a realidade social se transforma o tempo todo. E esta transformação ocorre antes de ser traduzida em palavras, em conceitos, em categorias, termos e vocábulos. Por isto é comum que utilizemos palavras antigas (que designam fenômenos passados) para denominar acontecimentos do “presente” e, também, para elaborar previsões que fazemos sobre o futuro.

 Como dizia um poeta alemão, a coruja do conhecimento alça voo ao anoitecer. As palavras que utilizamos para falar do presente e do futuro tiveram origem no passado e designavam originalmente realidades passadas. Um exemplo disto é a palavra “utopia”.

 O termo é de origem grega: u-topos, não lugar, um lugar que não existe. Foi utilizado como título para um livro publicado por volta de 1516 (há pouco mais de 500 anos, portanto). Naquele livro, Thomas Morus criava um personagem que descrevia uma sociedade existente em uma ilha a qual chegara através de um naufrágio. Portanto, uma sociedade que era contemporânea aos personagens do livro e, também, aos leitores do livro. Pois bem: desde o século 19 até hoje o termo utopia é muito utilizado para designar uma sociedade... futura!!!

 Aqui se faz necessário falar de um “detalhe” importante: a ação humana faz parte da realidade, tanto como observadora quanto como construtora da realidade.

 Se muitos humanos acreditarem em algo e se organizarem em função desta crença, isto gera uma realidade, mesmo que aquela crença seja fantástica, ficcional, artificial, ilusória, um mito. As ideias, quando são incorporadas por muita gente, convertem-se em força material.

 Nesse sentido, vale lembrar de um filósofo alemão do século 19 que dizia que não foi Deus que criou o homem, foi o homem que criou Deus. Noutras palavras: os seres humanos criaram vários deuses, igrejas e as correspondentes doutrinas e palavras que serviram como linguagem para expressar determinados interesses sociais durante muitos séculos. Os deuses podem não existir, mas o que interessa politicamente é que as igrejas e os movimentos religiosos existem, assim como existem e atuam aquelas milhões de pessoas que são crentes.

 Vocabulário e classe social

 Antes de surgir o vocabulário da luta da classe trabalhadora assalariada, existiu o vocabulário da luta dos burgueses. E antes desse, o vocabulário que expressava os interesses dos senhores feudais (e, também, dos que se opunham aos feudais) era um vocabulário de tipo religioso. Foram as revoluções burguesas (nos séculos 17, 18 e 19) que “criaram” um vocabulário político laico.

 Entre 1789 e 1917, a classe trabalhadora de todo o mundo utilizou um vocabulário político surgido principalmente da revolução francesa de 1789. O exemplo clássico disto: as palavras esquerda e direita, bem como a expressão “partidos políticos”.

 A revolução francesa, por sua vez, foi buscar estes e outros termos políticos na antiguidade grega e romana. Por exemplo: democracia, república e proletariado. Mas também resgatou e adaptou termos utilizados por movimentos religiosos, econômicos e políticos dos séculos anteriores.

 Partindo principalmente do vocabulário surgido da grande revolução francesa de 1789, o movimento da classe trabalhadora ao longo do século 19 foi “criando” -- o que geralmente significa resignificar e/ou customizar -- seus próprios termos.

 É o caso de palavras como greve, proletariado, socialdemocracia, trabalhismo, anarquismo, populismo, cooperativismo, socialismo e comunismo. E, também, a famosa expressão “ditadura do proletariado”.

 Com a revolução russa de 1917 surgiu um novo paradigma. Até então, o vocabulário político tinha como referência a revolução francesa de 1789. A partir de 1917, passou a existir uma nova referência. Processo semelhante ocorreria com outras revoluções, que pelo seu impacto na realidade converteram-se em fonte de transformação, de inspiração, foram tomadas como modelo ou exemplo.

 A partir de 1917 e até hoje, o vocabulário da luta continuou mudando. Mudanças no capitalismo, mudanças na luta da classe trabalhadora, surgimento (ou reconhecimento da existência) de outros setores sociais e de outras questões, diferentes tentativas de transição socialista, além de muitas derrotas, todas estas novidades se expressaram em palavras velhas, novas ou ajustadas, como os termos neoliberalismo e globalização.

 Portanto, estudar o vocabulário da luta não é a mesma coisa que estudar matemática básica. Podemos dizer que é mais parecido com o estudo da literatura ou da pintura, em que uma mesma obra pode gerar diferentes percepções e avaliações, sendo sempre necessário distinguir entre os aspectos “objetivos” e os aspectos “subjetivos” da obra. E poucas vezes é possível chegar a um acordo, embora seja possível pelo menos entender o que cada um quer dizer.

 Com todos estes cuidados, quais são os termos (conceitos, categorias, palavras, expressões) fundamentais que precisam ser conhecidos por quem deseja organizar melhor e lutar melhor? Que vocabulário básico precisa ser dominado pela militância lutadora e revolucionária?

 Alguns dos termos essenciais são: classes sociais, luta de classes, formação social, modo de produção, Estado, política, partido político, sindicatos, movimentos sociais, reforma, revolução, estratégia, tática, conjuntura...

 Não há definições universais para cada um destes termos. Até por isso, o que veremos a seguir não é um dicionário, mas um comentário.

 Classes sociais

 O que diferencia os seres humanos de outros animais? Fundamentalmente a capacidade de transformar a natureza, ou seja, o trabalho.

 Temos aqui uma interessante história, que envolve o uso da mão; a extensão da mão em ferramenta; a ferramenta combinada com a ação coletiva, convertendo um animal fisicamente frágil em um caçador poderoso; o desenvolvimento de novos conhecimentos e novas ferramentas, como o fogo; a coleta e a caça convertendo-se pouco a pouco em criação e agricultura; a constituição de agrupamentos cada vez mais numerosos e uma crescente divisão de trabalho entre os integrantes deste agrupamento.

 Em algum ponto desta história, a divisão de funções técnicas serviu de base para uma divisão social mais permanente, que nos acompanha até hoje: a divisão entre produtores e não produtores, entre proprietários e não proprietários de meios de produção.

 Resumindo de outro jeito a mesma trajetória histórica: os dois elementos básicos que constituem uma sociedade são as relações que os seres humanos estabelecem entre si e as relações da humanidade com a natureza, ambas se combinando para produzir e reproduzir as condições de existência da vida humana em sociedade.

 Note-se que os seres humanos se convertem efetivamente em seres humanos na exata medida em que agem socialmente, que atuam em comunidade, coletivamente. A humanidade é produto do trabalho coletivo de transformação da natureza.

 As relações que os seres humanos estabelecem entre si no processo de produção podem ser de diferentes tipos, por exemplo de cooperação, de subordinação, de exploração, desdobrando-se por sua vez em conflitos e lutas, entre os integrantes de uma comunidade ou entre comunidades diferentes.

 Ao longo da história, estes tipos estiveram presentes em proporções que foram variando. Numa fábrica moderna, por exemplo, existe alto nível de cooperação entre os trabalhadores (e em alguma medida também entre trabalhadores e capitalistas ou seus representantes). Ao mesmo tempo há alto nível de subordinação dos trabalhadores aos capitalistas. E, também, relações de exploração. E, portanto, graus variados de conflito entre os trabalhadores e os capitalistas, indo das reclamações às sabotagens, das greves a outros atos de insubordinação.

 Outro exemplo: na sociedade atual, não sobreviveríamos sem água e energia elétrica. Mas o acesso à água e à energia são mediados pela cooperação, pela subordinação, pela exploração e por conflitos os mais variados. Como sabemos, em sociedades tecnicamente capazes de produzir e fornecer água e luz para todos/as, o acesso não é universal. O acesso depende de diferentes níveis de cooperação e subordinação, conflito e luta, tanto na produção quanto na distribuição.

 É importante sempre lembrar que as relações humanas não se limitam ao processo de produção e reprodução das condições materiais de existência. Mas como não existe sociedade sem produção, as relações de produção constituem as relações fundamentais, que influenciam todas as demais.

 Ao longo da história, podemos identificar vários tipos de relações de produção. Por exemplo: a escravidão, a servidão e o assalariamento.

 Embora seja óbvio, vale lembrar: uma relação de produção é uma... relação, uma unidade de contrários: se há escravidão, há escravizados e escravizadores; se há servidão, há servos e senhores; se há assalariamento, há trabalhadores assalariados e capitalistas.

 Qual o nome que damos para estas diferentes “partes”, estes diferentes grupos de pessoas que ocupam determinado lugar numa relação social de produção? Classes sociais. E qual o nome que damos para a relação que estes grupos sociais estabelecem entre si? Luta de classes.

 Esta luta de classes se exprime das mais diversas maneiras e nos mais diferentes espaços. Quando um patrão e um empregado firmam um contrato, há luta de classes. No processo de produção – inclusive na definição sobre o direito de ir ao banheiro -- há luta de classes.

 A luta de classes também está presente nas definições públicas e privadas que decidem como será o transporte do trabalhador até sua casa, como serão suas condições de moradia, de saúde, de educação, de cultura e lazer.

 De igual maneira, a luta de classes está presente nas batalhas sindicais, nas batalhas eleitorais, nas definições de governo e parlamentares, em cada ato cotidiano da vida pública e, também, da vida privada. Inclusive nas telenovelas, nas missas, no esporte, nas redes sociais.

 As pessoas podem ou não ter consciência disto, mas numa sociedade dividida em classes sociais, tudo que fazem ou deixam de fazer está atravessado pela luta de classes.

 Ao longo da história não existiram sempre as mesmas classes sociais e, portanto, a luta de classes nem sempre foi a mesma. Claro que há semelhanças: os escravizados, os servos e os assalariados têm em comum o fato de serem produtores submetidos à exploração e à dominação. Da mesma forma, senhores de escravizados, senhores de terra e senhores de capital têm em comum o fato de serem proprietários não-produtores que exploram os produtores diretos.

 Mas há diferenças: o escravocrata é proprietário dos escravos e também dos bens materiais produzidos pelos escravos; os servos não são escravos, mas o senhor das terras tem vários “direitos”, inclusive o de se apropriar de parte do trabalho e do produto do trabalho dos servos; já o capitalista, embora se relacione com trabalhadores livres, que não são escravos nem servos, se apropria do mais valor produzido pelo assalariado e assim acumula e reproduz de forma ampliada seu capital.

 Por estes e outros motivos, falamos que há não apenas diferentes classes, mas também sociedades diferentes, em que predominam modos de produção diferentes. Noutros termos: em uma mesma sociedade podem coexistir diferentes tipos de cooperação, subordinação, exploração e conflito; o predomínio de uma determinada combinação destas variáveis que define a sociedade como um todo.

 Exemplo: no Brasil por volta de 1850, era a exploração do trabalho escravo, a dificuldade em continuar importando “peças escravas”, as fugas e revoltas, a organização de quilombos e o abolicionismo, tudo isso nos marcos da relação do Brasil com o mundo, especialmente com a Inglaterra, que determinavam o curso geral da sociedade.

 Já no Brasil de cem anos depois, por volta de 1950, era a exploração do trabalho assalariado, as reivindicações, lutas e greves dos trabalhadores, e a repercussão disto junto aos demais setores, tudo isso nos marcos da relação do Brasil com o mundo, especialmente com os Estados Unidos, que determinavam o curso geral da sociedade.

 Tanto num caso como noutro, ao lado da escravidão e do assalariamento, respectivamente, existiam outros tipos de relações de produção. Mas havia uma relação que era dominante: capital versus trabalho. Noutras palavras, havia um modo de produção que era dominante: o capitalismo.

 Falamos em modo de produção comunista primitivo, modo de produção escravista, modo de produção feudal e modo de produção capitalista exatamente para deixar claro qual a relação de produção que predomina (e, por decorrência, que tipo de cooperação/subordinação/exploração/conflito predomina).

 Mas devemos sempre lembrar que nas sociedades realmente existentes, é comum encontrarmos vários modos de produção coexistindo. E não apenas isto: em sociedades onde predomina um determinado modo de produção, é comum que ao longo do tempo este modo de produção assuma diferentes formas.

 Por exemplo, um capitalismo predominantemente agrário, ou predominantemente industrial, ou predominantemente financeiro etc.

 Tanto em 1921 quanto em 2021, o capitalismo é o modo de produção predominante nos EUA, Inglaterra, Brasil e Índia, porque em todos os casos citados predomina a exploração do trabalho assalariado; mas se há semelhanças, também há diferenças entre as sociedades citadas e diferenças dentro de cada uma delas, em diferentes períodos da história.

Nas sociedades onde predomina o modo de produção capitalista, sempre encontramos outras classes sociais, além dos proprietários capitalistas não-produtores e dos produtores assalariados não-proprietários. Encontramos, por exemplo, pequenos-proprietários de diferentes tipos (urbanos e rurais).

 Além disso, existem grandes diferenças no interior da classe dos capitalistas e da classe dos assalariados. Diferenças tão grandes, que muitos tratam uma fração da classe trabalhadora como se fosse uma classe social autônoma: a “classe média”.

 Para dar conta destas diferentes combinações, dessas diferenças que existem mesmo dentre as sociedades em que predomina um mesmo modo de produção, é que utilizamos o termo formação social (alguns preferem falar de formação socioeconômica).

 Por exemplo: o modo de produção de todos os países da América Latina em 1945 é o mesmo. Mas a formação social é diferente: o capitalismo brasileiro é diferente do argentino, tanto em 1945 quanto hoje. Assim como a formação social brasileira em 1945 é diferente da formação social brasileira de 2021, embora o modo de produção siga sendo o mesmo.

 Importante lembrar sempre que os conceitos de modo de produção, formação social e relações de produção  “derivam” das classes e da luta de classes. Dizendo de outra maneira: são as classes sociais e a luta de classes que existem em cada época e lugar que definem qual é o modo de produção e como é a formação social

 Por isto, a questão básica que deve ser respondida é: quais são as classes e como lutam entre si? Pois (Acácio dixit) uma classe social nunca existe sozinha. Se todas as pessoas fizessem parte de uma única classe, não haveria classes nem luta de classes...

 Estado e luta de classes

 Onde há classes, há luta de classes. Notem que isto é qualitativamente diferente de falar que “onde há tribos, há luta pelo controle do território”. Uma tribo pode derrotar outra e nada mudar no modo de produção. Mas se uma classe derrota outra, o modo de produção pode ser alterado.

 Nas épocas originárias, também havia luta entre os seres humanos. Mas esta luta era diferente da luta de classes, que surgiu quando as sociedades se dividiram internamente entre produtores não-proprietários e proprietários não-produtores.

 Quando uma sociedade está dividida em classes, é porque uns exploram outros. E para que a exploração possa existir continuamente e se converta em parte normal da vida cotidiana, é preciso que haja dominação. Ou seja: “argumentos” fortes para que prevaleça um determinado interesse. Tais argumentos podem, no limite, ser reduzidos a três: o controle dos meios de produção, o controle das mentes e o controle das armas.

 Dito de outra maneira: a dominação se exerce com maior êxito sobre quem não tem alternativa de sobrevivência material, sobre quem desconhece alternativa melhor e sobre quem acredita que – mesmo que tentasse - não conseguiria virar o mundo de ponta cabeça.

 Ao longo de séculos, as diferentes classes dominantes desenvolveram mecanismos, instrumentos, discursos, hábitos voltados a converter a exploração e a dominação em parte do cotidiano.

 Deste processo milenar surgiu o que hoje chamamos de Estado, uma instituição construída na luta entre as classes sociais, uma instituição que foi pouco a pouco assumindo um duplo propósito:

 a) por um lado impedir que os conflitos, inerentes a uma sociedade dividida por interesses antagônicos, terminem por paralisar esta sociedade, numa espécie de guerra civil permanente;

 b) por outro lado, ao fazer funcionar regularmente uma sociedade dividida em classes, proteger e perpetuar os interesses essenciais da respectiva classe dominante.

 Há tantos Estados quanto há sociedades. Podemos, para fins didáticos, falar em Estado escravista, Estado feudal e Estado capitalista. Mas estas palavras expressam algo tão óbvio quanto saber qual a cor do cavalo branco de Napoleão. Ou seja: cada tipo de modo de produção é protegido por um tipo específico de Estado.

 Conselheiro Acácio à parte, o mais importante é conhecer como a classe dominante faz, em cada formação social concreta, para proteger seus interesses essenciais. Dito de outra forma: como faz para impedir que a luta de classes -- inerente e inevitável em uma sociedade dividida por interesses de classe antagônicos – prejudique no curto, médio e longo prazo os interesses da classe dominante.

 Como por definição os dominados são sempre em maior número, a forma “normal” de fazer uma sociedade funcionar “em tempos normais” precisa estar baseada principalmente no convencimento dos dominados pelos dominantes. 

 Para usar outros termos, a forma “normal” de fazer uma sociedade funcionar tem que estar baseada no consentimento, na hegemonia, no convencer as maiorias a seguir as opiniões das minorias. Em tempos “normais”, o método “normal” não pode ser a subordinação explícita, a dominação, a repressão militar.

 Portanto, se queremos entender como uma classe dominante minúscula prevalece por tanto tempo sobre um número incrivelmente maior de pessoas, temos que conhecer os mecanismos através dos quais a classe dominante consegue que a classe dominada (as vezes, as classes) aceite, tolere e inclusive coopere com sua própria exploração.

 Aqui se faz necessário levar em conta a força do hábito (“sempre foi e sempre será assim”), o papel do racismo (“naturalizando” a inferioridade de um setor social frente a outro), o papel das religiões oficiais (definindo hierarquias e estimulando o conformismo), o papel da cooptação (confrontar africanos escravizados contra indígenas, brancos pobres contra escravizados negros, trabalhadores locais contra migrantes, trabalhadores homens contra mulheres etc.), o papel do medo (inclusive o medo da fome, da falta de ter onde morar, do desemprego) etc.

 Estes e outros mecanismos vão se tornando mais sofisticados e poderosos, à medida que o tempo vai passando. Basta pensar no que era o Estado nos tempos em que predominava a escravidão e compará-lo com o Estado nos tempos em que predomina o capitalismo; ou comparar o Estado existente nos tempos do Brasil colônia ao Estado existente hoje em nosso país.

 O Estado em tempos de capitalismo

 Por qual motivo o Estado foi se tornando mais sofisticado e poderoso, seja no que diz respeito aos mecanismos de convencimento, seja no que diz respeito aos mecanismos de dominação?

 Entre outros motivos porque a sociedade se tornou mais complexa, tornando cada vez mais difícil impedir que os conflitos de classe paralisem esta sociedade.

 Evitar que a sociedade capitalista seja paralisada pelas crises do próprio capitalismo exige cada vez mais Estado, exige o que chamamos de um “Estado ampliado”, mesmo que este Estado sirva essencialmente para reprimir as periferias, cobrar tributos e transferir recursos para o capital financeiro.

 O interessante, politicamente falando, é que esta ampliação do Estado -- ampliação indispensável para que ele possa cumprir o papel de estabilizar o funcionamento de uma sociedade cada vez mais conflitiva – tem aspectos que são, em si mesmos, potencialmente conflitantes com o objetivo de usar o Estado para beneficiar os interesses essenciais da respectiva classe dominante.

 De maneira geral, o Estado em tempos de capitalismo é mais “ampliado” que o Estado em tempos de feudalismo e em tempos de escravidão. Também de maneira geral, o Estado predominante no século 21 é mais ampliado do que o Estado predominante no século 19.

 Parte desta ampliação implica em contratar grande número de funcionários públicos, que não têm origem na classe dominante. O que introduz contradições. Basta pensar na diferença de comportamento entre as cavalarias formadas por nobres, as tropas formadas por mercenários e os exércitos formados por alistamento.

 Outra parte da ampliação do Estado consiste no direito de outras classes sociais – que não a dominante - interferirem em algumas decisões do Estado, por exemplo através da eleição de presidentes, parlamentares e juízes. Óbvio que este tipo de ampliação também introduz contradições no papel do próprio Estado.

 Uma terceira variante desta ampliação se traduz na presença direta do Estado, seja na criação das condições de reprodução da força de trabalho (saúde, educação, moradia), seja no controle direto dos processos produtivos (empresas estatais).

 Estas e outras formas de ampliação do Estado deixam cada vez mais evidente a diferença entre as duas dimensões da ação estatal: aquela destinada a fazer funcionar uma sociedade cada vez mais complexa e coletiva (por exemplo, o SUS, a educação pública, o controle de trânsito) e aquela destinada a preservar os interesses da classe dominante (as forças armadas, as polícias, o judiciário).

 A ampliação do Estado, além de deixar cada vez mais evidentes aquelas duas dimensões, reforça a contradição potencial que existe entre elas. Contradição que se manifesta de maneira particularmente aguda nos períodos de crise e/ou de baixo crescimento econômico. Nestes períodos, os recursos são escassos e a luta por eles é maior. Por exemplo: mais impostos ou menos impostos? Impostos para pagar juros ou para financiar políticas sociais?

 Esta contradição potencial se manifesta, também, quando o eleitorado dá vitória a governos contrários, em maior ou menor medida, ao status quo. Em tese é apenas o governo e não o poder; em tese a classe dominante segue controlando as demais instituições do Estado; em tese... mas na prática, o estresse é imenso e muitas vezes ocorrem os golpes de Estado (explícitos ou implícitos), exatamente por iniciativa daquela parcela do Estado encarregada de preservar os interesses da classe dominante.

 Estado e democracia

 Quando acontecem os golpes de Estado, ficam evidenciadas as diferentes interpretações que cada setor da sociedade dá para o termo “democracia”.

 A palavra “democracia” tem um significado muito forte para a maioria das pessoas, significado geralmente carregado de significados positivos. Democracia seria o governo da maioria, portanto o oposto de uma ditadura. Mas quando observamos ao longo da história, constatamos que nem sempre foi nem é assim. Na origem, aliás, democracia era o governo dos homens proprietários de escravos. E durante muito tempo, não se exigia de um governo democrático que fosse efetivamente democrático para todos, pois durante o século 19 e boa parte do século 20 o “povo cidadão” não incluía todos os habitantes adultos.

 À medida que a luta da classe trabalhadora foi conquistando o direito de votar e ser votado, direito extensivo a todos as pessoas adultas, homens e mulheres, independentemente de raça, religião e propriedade, a classe dos capitalistas foi agindo para impedir que este direito universal de voto afetasse seus interesses fundamentais.

 Esta ação dos capitalistas assume várias formas, por exemplo desestimular a participação política dos trabalhadores, criar dificuldades para o registro eleitoral, corromper o processo através do dinheiro e da mídia, cooptar os partidos e os eleitos de esquerda, sabotar os governos de orientação popular e, no limite, praticar magnicídios e golpes de Estado.

 Ou seja: a democracia existente no capitalismo é plenamente democrática apenas para uma parte da sociedade. Para a classe dominante, existe muita democracia. Para a classe dominada, existe pouca democracia. O que, especialmente nos momentos de crise, pode ser dito assim: em alguns momentos e para alguns setores sociais, a democracia capitalista não passa de uma ditadura dos capitalistas. Constatação que traz muitas implicações para a ação política dos partidos vinculados à classe trabalhadora.

 A luta pelo poder de Estado

 A principal implicação é a seguinte: os capitalistas não lutam pelo poder, pois eles já controlam o poder. Portanto, os partidos capitalistas são instrumentos para ajudar na gestão dos negócios do Estado, por exemplo um dos instrumentos para selecionar o pessoal que vai gerir a máquina estatal. E nem sempre os partidos são o instrumento principal da classe dominante para cumprir esta função. Na história de países como o Brasil, a Venezuela e a Argentina, por exemplo, as forças armadas e as grandes empresas de comunicação já demonstraram ter, em algumas situações, maior importância do que os partidos.

 Já os partidos ligados à classe trabalhadora estão diante de uma disjuntiva. Podem ser um instrumento para ajudar a classe trabalhadora a participar da gestão da máquina do Estado; ou podem ser um instrumento para ajudar a classe trabalhadora a se converter em poder de Estado.

 Claro que na luta cotidiana, em tese não existe contradição absoluta entre estes dois objetivos. Afinal, quem luta contra o capitalismo como um todo também luta por atenuar seus efeitos aqui e agora, ampliando os salários, melhorando as condições de trabalho e vida, implementando reformas (agrária, urbana, política, sanitária, educacional, tributária), implantando políticas sociais etc.

 E quem luta por atenuar os efeitos do capitalismo também pode e deve lutar pela superação do capitalismo, o que exige transformações mais profundas, democrático-populares e socialistas: um Estado controlado pela classe trabalhadora, propriedade social dos meios de produção fundamentais, liberdades democráticas que busquem superar todas as formas de dominação, um desenvolvimento social e ambientalmente orientados etc.

 Mas embora as dimensões citadas -- ajudar a classe trabalhadora a participar da gestão da máquina do Estado e ajudar a classe trabalhadora a se converter em poder de Estado; atenuar os efeitos do capitalismo e lutar pela superação do capitalismo-- possam ser combinadas, existe sempre uma contradição potencial entre elas, pois no limite correspondem a metas diferentes: governo ou poder, reforma ou revolução, capitalismo ou socialismo.

 Os caminhos que levam a uma e a outra meta não são exatamente os mesmos, fato que nem sempre fica explícito no dia-a-dia, mas que se torna evidente nos momentos de crise aguda da sociedade.

 Por exemplo: aqueles que têm como objetivo final lutar por reformar o capitalismo tendem a se integrar aos mecanismos do Estado. As eleições se convertem no seu objetivo principal, seus partidos passam a ser financiados da mesma forma que os partidos burgueses, a vida interna de suas organizações vai ficando cada vez mais tradicional e seu programa é influenciado cada vez mais pelos capitalistas e seus interesses.

 Mas atenção: não se deve medir ninguém, partido ou pessoa, pelo que ela diz ou acha de si mesma. A prática é o critério da verdade. Assim, às vezes acontece de encontrarmos partidos que dizem que têm como objetivo final a revolução e socialismo, mas na prática se limitam a lutar por melhorias no capitalismo. E já que é assim, embora façam juras revolucionárias, acabam se integrando ao status quo, inclusive aos mecanismos do Estado.

 Por isto o debate estratégico é tão importante: para escolher os caminhos a seguir na luta de classes, não bastam os juramentos à bandeira. E o debate estratégico pode ser feito de várias maneiras. Há os que tomam como ponto de partida as revoluções de 1789, 1848, 1871, 1917, 1949 ou 1959. De nossa parte, achamos que tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Mas por diversos motivos, preferimos destacar a recente experiência dos governos progressistas e de esquerda na América Latina e Caribe, incluindo o que ocorreu depois da crise de 2008, no contexto da disputa entre China e EUA.

 Estratégia em debate

 Entre os que valorizam positivamente as experiências dos governos progressistas e de esquerda – ciclo iniciado entre 1998 e 2003, com as eleições de Chávez, Lula e Kirchner - existem diferentes pontos de vista tanto sobre as estratégias passadas quanto as estratégias adotadas desde então.

 Estas diferentes visões às vezes são expressas num mesmo vocabulário (as pessoas concordam quanto ao significado das categorias, conceitos e termos, mas discordam no mérito); outras vezes são expressas através de vocabulários distintos, em que uma mesma palavra ganha significados distintos a depender do interlocutor. Estratégia, poder, revolução e socialismo, por exemplo, nem sempre querem dizer a mesma coisa, a depender do “lugar de quem fala”.

 Da nossa parte, começamos lembrando algo conhecido: a palavra “estratégia” tem um significado originalmente militar, a saber, o conjunto de ações que têm como propósito ganhar uma guerra. Uma guerra é composta de várias batalhas. A estratégia é a maneira de articular entre si as batalhas, com a finalidade de ganhar a guerra. A palavra tática também tem um significado originalmente militar: o conjunto de ações que têm como propósito ganhar uma batalha.

 Os dois termos – estratégia e tática – foram incorporados na política em momentos diferentes. Até 1917, por exemplo, era comum se usar o termo tática em duplo sentido: no sentido que hoje atribuímos ao termo e, também, no sentido de estratégia. O famoso livro de Lenin – Duas táticas da socialdemocracia na revolução democrática (1905) – escrito nos dias de hoje deveria chamar-se “duas estratégias da socialdemocracia na revolução democrática”. Só depois da revolução de 1917, se generalizou o uso dos dois termos -estratégia e tática - no sentido que empregamos atualmente.

 Seja como for, definir a estratégia supõe responder de que “guerra” estamos falando, definir inimigos, aliados e objetivos estratégicos. Em termos gerais, a “guerra” de que falamos é a luta entre capitalismo e socialismo, que é parte da luta entre a classe dos trabalhadores assalariados e a classe dos capitalistas.

 É adequado falar de “guerra”? Sim, não apenas para destacar a dimensão violenta da luta por manter e por mudar a ordem, mas também para acentuar o que se pretende, de nossa parte: alterar completamente as relações atualmente dominantes entre capitalistas e assalariados, relações que são de subordinação, exploração e dominação.

 Embora capitalistas e assalariados existam há mais tempo, foi ao longo dos séculos 19 e 20 que foi se tornando predominante, no interior de cada país e no conjunto do mundo um tipo de sociedade baseado nas relações entre aquelas duas classes. Hoje o capitalismo é dominante, em escala local e global.

 Evidentemente, nem o mundo moderno é determinado apenas pela relação entre capitalistas e assalariados; nem os destinos de cada sociedade e do mundo como um todo são determinados apenas pelos rumos do capitalismo, ou seja, pelos resultados da luta entre trabalhadores e assalariados. Mas estes fenômenos são as variáveis fundamentais para compreender o conjunto dos conflitos sociais dentro de cada país e o conjunto dos conflitos internacionais.

 Por isto, aliás, é necessário falar de uma classe determinada (os trabalhadores assalariados), ao invés de adotar expressões genéricas como “o povo”, “os explorados”, “os oprimidos” ou “os excluídos”. Tais categorias genéricas expressam fenômenos reais, têm utilidade analítica e são particularmente úteis na retórica política, mas não são cientificamente adequadas para precisar o conteúdo das definições estratégicas mais gerais.

 Aceitas as premissas anteriores, podemos dizer que estratégia é o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados desenvolve para ganhar a guerra que trava contra a classe dos capitalistas.

 Entretanto, como já dissemos, a classe dos trabalhadores assalariados não é homogênea. Sua formação (no duplo sentido: sua história e sua composição) varia de região para região, e varia de época para época. Em cada momento dado convivem diferentes classes trabalhadoras assalariadas, assim como convivem diferentes frações da classe trabalhadora assalariada.

 Em âmbito internacional há diferenças entre os trabalhadores assalariados de um determinado país vis a vis os trabalhadores assalariados de outros países. E também há diferenças no terreno nacional: a classe trabalhadora assalariada possui diferentes “frações” internas, em função de fatores “objetivos” como a região, a idade, o sexo, o ramo de atividade; e em função de fatores “subjetivos”, tais como a experiência adquirida na própria luta de classe.

 Isto significa que quando nos referimos à “estratégia da classe dos trabalhadores assalariados”, estamos na verdade nos referindo à estratégia que nós defendemos que deva ser assumida e praticada por esta classe, mas que nunca é a estratégia de todos os integrantes da classe, pois sempre haverá diferenças objetivas e subjetivas no interior da classe, diferenças que constituem a base material de diferentes posições políticas e, portanto, de diferentes estratégias.

 A mais geral destas diferenças políticas existentes no interior da classe dos trabalhadores assalariados consiste no seguinte: em todo momento, o conjunto da classe está submetida à exploração, mas apenas uma parte da classe compreende plenamente e reage coletivamente a isto.

 Naqueles casos em que ocorre, a reação coletiva pode ter como propósito melhorar a vida, nos marcos do capitalismo; ou pode ter também o propósito de mudar a vida, superando o capitalismo.

 Ambos os propósitos (“melhorar a vida” e “mudar a vida”) exigem enfrentar o capitalismo. Mas no limite conduzem a diferentes raciocínios estratégicos, que historicamente foram denominados como reforma e revolução.

 Neste caso, a denominação -- “reformista”, “revolucionário” -- diz respeito ao objetivo final que se persegue - reformar ou revolucionar -, não aos caminhos utilizados. É por isto que vemos defensores da revolução dedicando a maior parte do seu tempo militante à educação política, à luta sindical, à atividade parlamentar ou governamental. Assim como podemos ver defensores da reforma envolvidos em guerrilhas, guerras de libertação nacional e outros tipos de mobilizações sociais e políticas extremamente radicais.

 Ter isto claro é bastante importante, quando nos colocamos a analisar as diferentes estratégias das esquerdas latino-americanas, pois nem sempre o radicalismo nos métodos e discursos equivale ao radicalismo nos conteúdos e propósitos.

 Diferentes estratégias

 Há no interior da classe trabalhadora vários pontos de vista, vários objetivos estratégicos, várias estratégias. Estas estratégias desdobram-se, em alguns casos, em alianças com outras classes. Por exemplo, alianças estratégicas com setores que também mantêm conflitos com o capitalismo, como é o caso dos trabalhadores que são pequenos proprietários (urbanos ou rurais), entre os quais também há quem se proponha enfrentar o capitalismo, seja para conviver com ele em melhores condições, seja para superá-lo.

 Em tese, as diferentes estratégias existentes no interior das classes trabalhadoras podem ser concorrentes, mas não precisam ser inimigas entre si. Na prática, entretanto, existem situações em que as diferentes estratégias entram em conflito agudo. É o caso, por exemplo, quando determinada orientação conduz a alianças estratégicas com a classe dominante. Não nos referimos a alianças pontuais, táticas, eleitorais: nos referimos a uma aliança estratégica.

 Uma pergunta que surge é: por qual motivo um setor da classe trabalhadora considera necessário fazer alianças estratégicas com a classe dominante? A resposta está em diferentes análises que se fazem acerca do funcionamento do capitalismo, em geral ou numa determinada etapa histórica.

 Por exemplo: diante do nazifascismo (na Segunda Guerra) e diante do neofascismo (na atualidade), parcelas importantes da esquerda defendem que se justifica uma aliança com partidos de direita e que defendem os interesses do grande capital.

 Outro exemplo: durante muitas décadas, parte do movimento comunista latino-americano defendeu que a luta por uma revolução socialista deveria ocorrer depois que se derrotasse o imperialismo e o latifúndio, que supostamente obstaculizavam o desenvolvimento capitalista. Dito de outra maneira, defendia-se que primeiro era preciso desenvolver o capitalismo e só depois caberia lutar pelo socialismo.

 No primeiro caso, argumenta-se que a ameaça transcendental proveniente do inimigo principal justificaria uma aliança mais duradoura com setores do inimigo de classe. No segundo caso, argumenta-se que a revolução necessitava de uma etapa anterior a socialista.

 Estas diferentes estratégias (cada qual com diferentes desdobramentos táticos) correspondem a diferentes interpretações acerca do funcionamento do capitalismo, no plano nacional e mundial; e, também, decorrem de diferentes interpretações acerca de como superar o capitalismo.

 A superação do capitalismo exige uma reorganização social profunda, que faça os produtores serem capazes de decidir como produzir, o que produzir e como distribuir a riqueza social. Na essência é isto que entendemos por socialismo e, aceita esta premissa, então estratégia é o nome que damos para o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para chegar ao socialismo. Fica clara, nesta definição, que existe uma distinção entre o objetivo estratégico (o socialismo) e a estratégia propriamente dita (o conjunto de ações), embora exista uma relação entre processo e objetivo, entre meios e fins.

 No que diz respeito ao objetivo estratégico, ele pode ser compreendido de duas maneiras diferentes, maneiras que ajudam a compreender alguns balanços que se faz da experiência soviética (1917-1991) e da experiência chinesa (1949-?).

 Alguns afirmam que nosso objetivo estratégico é a construção do socialismo, entendendo por socialismo o processo de transição do capitalismo em direção a uma nova sociedade. Esta nova sociedade, o comunismo, seria portanto o objetivo final.

 Outros defendem que nosso objetivo estratégico seria superar todas as formas de exploração, dominação e opressão. Não haveria, neste caso, diferença entre o objetivo estratégico e o objetivo final. Os que defendem este segundo ponto de vista geralmente consideram que a experiência soviética e chinesa não seriam socialistas, mas sim variantes do capitalismo.

 A polêmica – do ponto de vista teórico – remete para a clássica distinção que Marx faz entre "socialismo" e "comunismo" (Crítica ao programa de Gotha, 1875). E, do ponto de vista estritamente vocabular, a polêmica é complicada pelo fato de alguns interlocutores utilizarem apenas o termo “socialismo”, para referir-se a três realidades distintas: a socialdemocracia, a transição socialista e o comunismo.

 Ter como objetivo estratégico o comunismo nos colocaria diante do seguinte desafio: projetar um processo em escala mundial, com a duração de várias décadas ou séculos. Algo tão vasto quanto pouco operacional, um dos motivos pelos quais preferimos definir que o comunismo é o objetivo final e o socialismo o objetivo estratégico.

 Nesse caso, a estratégia compreende o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para dar início à transição socialista.

 Poder e transição socialista

 Alguns compreendem que a construção do socialismo começa quando um trabalhador adere à sua organização coletiva de classe, quando a classe trabalhadora cria e fortalece estas organizações, quando a classe trabalhadora consegue vitórias concretas - econômicas, políticas, sociais, ideológicas, no plano nacional, regional ou mundial – na luta contra os capitalistas.

 Outros compreendem que a construção do socialismo supõe alterações mais profundas, que só são possíveis quando parcelas fundamentais da vida social passam a ser controladas pela classe trabalhadora. O que por sua vez supõe que a classe trabalhadora detenha um poder econômico e político pelo menos equivalente ao que hoje constitui monopólio da classe capitalista.

 Embora não sejam necessariamente antagônicas – pois no limite a construção do socialismo pressupõe uma acumulação de forças prévia à tomada do poder – existe uma diferença fundamental entre estas duas abordagens do problema: a maneira como enxergam a centralidade do chamado poder de Estado.

 O poder é uma relação de força, portanto nenhuma classe ou setor de classe detém todo o poder; assim como não existe classe que  não detenha poder algum. Mas na maior parte do tempo, na maior parte das sociedades, o poder é distribuído de maneira desigual entre os diferentes setores sociais.

 Por isto é correto afirmar que o poder de Estado está com as classes ou setores de classe que controlam um conjunto de mecanismos (produtivos, militares, comunicacionais, legislativos, executivos, nacionais e internacionais) que permitem a estes setores definir o rumo geral de funcionamento de uma dada sociedade.

 Por exemplo: na maior parte dos países do mundo, a classe dos capitalistas controla direta ou indiretamente o governo nacional, a maior parte dos governos regionais e locais, a maioria dos parlamentos em todos os níveis, a maior parte do judiciário, a maior parte das polícias e forças armadas, a maior parte dos meios de comunicação, da indústria cultural e educacional, bem como das igrejas. Não só controla, mas também construiu essas e outras instituições, com uma arquitetura adequada aos interesses e necessidades de sua classe social. Obviamente, os capitalistas também controlam a maior parte dos meios de produção.

 Para construir o socialismo, a classe trabalhadora necessita do poder necessário para alterar profundamente o funcionamento da sociedade. Isto supõe ampliar muito o poder da classe trabalhadora e reduzir muito o poder da classe dos capitalistas. Lembrando que na transição socialista existirão - por algum tempo, que pode ser longo – capitalismo e capitalistas; enquanto existirem capitalistas, estes terão algum nível de poder.

 Neste processo de ampliação/redução do poder relativo entre assalariados e capitalistas, há um momento fundamental: quando os trabalhadores adquirem poder suficiente para manter e/ou definir o rumo geral de funcionamento de uma sociedade. Num resumo grosseiro, quando detém o chamado “monopólio da violência”. Quando chegamos neste momento, falamos que a classe trabalhadora passou a deter o “poder de Estado” e reuniu as condições fundamentais para a construção do socialismo.

 Por isto, podemos definir estratégia como o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para ter o poder de Estado necessário à construção do socialismo.

 Esta definição acima é parte fundamental da análise que fazemos do conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados desenvolveu, nos diferentes países do mundo, ao longo dos séculos 19 e 20, bem como ao longo dos primeiros 16 anos deste terceiro milênio, para ter poder. O que inclui a auto-organização, a ocupação de espaços no Estado burguês, a luta revolucionária para derrotar o Estado vigente e construir outro, assim como as várias situações híbridas e intermediárias de que a história está sempre feita.

  “Reformistas” e “revolucionários”

 Reforma e revolução são termos utilizados para definir o objetivo final (“melhorar a vida” ou “mudar a vida”, capitalismo ou socialismo). Ao longo da história, os que buscaram estes diferentes objetivos muitas vezes trilharam os mesmos caminhos e utilizaram os mesmos métodos. Portanto, tivemos revolucionários extremamente moderados e reformistas extremamente radicais - no que diz respeito às formas de luta utilizadas para chegar a objetivos distintos.

 Ocorre que “reformista” e “revolucionário” também são termos utilizados para designar diferentes formas de chegar ao poder de Estado.

 Neste caso, chama-se de “reformista” quem defende que o caminho para a classe trabalhadora deter o poder é ocupando espaços no interior do Estado (por exemplo, disputando eleições e exercendo mandatos, mas também organizando a classe trabalhadora e seus aliados para pressionar e obter conquistas parciais).

 E chama-se de “revolucionário” quem considera que o “problema do poder” só será resolvido através da destruição do Estado burguês e sua substituição por outro de natureza distinta. Por conta do que as lutas parciais (inclusive eleitorais e institucionais) são consideradas momentos de acumulação de força, não um fim em si mesmo.

 Devido aos diferentes empregos dos termos "reforma" e "revolução", há inclusive quem se pretenda “reformista revolucionário”, ou seja, defende que lutemos através de meios reformistas para atingir um objetivo revolucionário.

 Já dissemos que estratégia é o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para ter o poder de Estado e poder assim iniciar a construção do socialismo. Nesta definição, ter o poder de Estado é uma preliminar. Como fazer isto é a questão a ser respondida.

 Para os que adotam uma resposta “reformista”, o como resulta da acumulação progressiva de forças, que num determinado momento resultará em que a classe trabalhadora detenha mais poder que a classe capitalista. Podem até existir vários momentos de embates profundos, de recuos e de avanços; mas o que predomina é a noção do acúmulo progressivo. Frente a esta tese, cabe a pergunta de Garrincha: está tudo combinado com os russos?  Se não está, o mais provável é que a classe dominante intervenha – por exemplo com um golpe de Estado – antes que se chegue a um ponto de não retorno, antes que a classe trabalhadora detenha o poder de Estado. Frente a esta objeção, os defensores da estratégia “reformista” respondem de diferentes maneiras. Citaremos duas.

 Um: caso haja um golpe estariam criadas as condições para uma resposta de tipo revolucionário. Ou seja: a resposta da classe dominante é que determinaria o curso dos acontecimentos, se o reformismo prevalecerá ou não. Esta posição foi defendida pelos chamados austro-marxistas e, também, por parte dos revolucionários chilenos. Um problema é que, neste tipo de situação em que a iniciativa está com a classe dominante, as chances de vitória revolucionária são reduzidas. Vide o que se passou em Viena (1934), Espanha (1936), Chile (1973). Como toda regra supõe exceção, vide também Venezuela (2002).

 Dois: o acúmulo progressivo (invertendo os termos da clássica boutade) não pode ser tão lento que pareça covardia, nem tão rápido que pareça provocação.  Dito de outra forma, se houve golpe vitorioso então é porque radicalizamos sem ter base. A estratégia não estaria errada, o erro teria sido cometido na sua implementação, cujo critério de sucesso inclui impedir que haja golpes. Tirando o aspecto lógico envolvido (segundo o qual se deu errado, nunca seria culpa da premissa mas sempre da execução), um outro problema é que uma derrota raramente nos leva ilesos de volta ao ponto de partida; geralmente nos causa imensos danos, nos empurra um pouco mais para trás e por relativamente bastante tempo. Sem falar no risco de concluirem que o jeito mais seguro de impedir golpes é eliminando seus motivos, a saber: não fazendo um governo de esquerda. Ou, quem sabe, desistindo de existir (como fizeram muitos partidos, que renunciaram a seus nomes, símbolos e programas).

 Em qualquer caso, os que defendem uma visão “reformista” acerca de como chegar ao poder de Estado têm dificuldades com a noção de "ruptura"; e tem mais dificuldade ainda com a pretensão de que se deva buscar ativamente este ponto de ruptura. Deixam para berrar "não vai ter golpe" depois que o golpe já é um fato consumado.

 Por outro lado, para os que adotam uma visão “revolucionária” acerca de como chegar ao poder de Estado, a estratégia precisa levar em conta a existência de dois momentos distintos, ainda que combinados. Um momento é de acúmulo progressivo de forças. Mas quando o acúmulo de forças chega próximo de dotar a classe trabalhadora do poder de Estado, inaugura-se um novo momento, uma nova etapa, de disputa pelo poder. Neste segundo momento, ou bem a classe trabalhadora resolve o problema do “poder de Estado”, ou bem ocorrerá uma profunda desacumulação de forças, causada pela reação preventiva da classe dominante.

 E, novamente apelando para um resumo grosseiro, resolver o problema do poder de Estado é – na essência - definir quem controla o monopólio da violência.

 Nesta visão “revolucionária”, o tema do poder é abordado de duas maneiras diferentes, em duas etapas diferentes. Numa primeira etapa, de acumulação, o poder é construído; numa segunda etapa, de disputa direta, o poder é conquistado (ou, dito de outra maneira, se destrói o essencial do poder inimigo).

 Quando falamos nestes termos, podemos estar passando a ideia de que a conquista do poder é um processo essencialmente rápido e definitivo. Até pode ser, mas até agora não foi assim. A revolução de outubro de 1917 só destruiu o essencial do poder inimigo ao término da guerra civil, em 1922. Na revolução chinesa e vietnamita, o processo durou décadas. Em Cuba durou de 1956 até 1959. E mesmo depois disso a luta pelo poder continuou, até porque os inimigos também  estão do lado de fora e podem ressurgir do lado de dentro - como Gorbachev demonstrou... O que muda é que são os inimigos que buscam (re)conquistar o poder.

 Portanto, o mais importante não é o tempo em si, mas a natureza do processo, a forma do enfrentamento entre as classes, que entra no terreno da luta militar, cujo desfecho definirá quem vai ter o monopólio da violência.

A luta de classes assume diferentes "formas": a luta econômica, a luta política, a luta ideológica. Cada uma destas formas possui sua dinâmica própria; e a combinação entre as diferentes formas depende de múltiplos fatores. Faz parte da dinâmica citada a transformação de uma forma em outro: como já disse alguém, a política é economia concentrada e a guerra é política feita de outra maneira.

 Agora, notem que a "guerra" - ou, em termos mais amplos, a chamada questão militar - aparece tanto no caso “reformista” quanto no caso “revolucionário”. E está muito longe de ser um tema fácil. No século XX, as únicas duas revoluções que triunfaram plenamente na América Latina foram a cubana e a nicaraguense, ambas pelo caminho da luta armada. Mas todas as demais tentativas de tomar o poder pela luta armada foram esmagadas sem dó nem piedade. Por outro lado, tirante Cuba e Nicarágua, o único dos governos progressistas e de esquerda que até agora não foi derrotado (seja por golpe, traição ou eleição) foi o da Venezuela, entre outros motivos porque tem um apoio orgânico nas forças armadas.

 Neste sentido, um bom indicador da seriedade com que se discute a estratégia é a seriedade com que se aborda o tema das forças armadas, das polícias, da ingerência imperialista, do monopólio da violência.

 Seja como for, para os “revolucionários” a estratégia deve responder a duas questões: quais as maneiras de acumular forças e quais as maneiras de conquistar o poder. Já para os “reformistas”, há no fundo uma única questão, pois a maneira de acumular forças também é a maneira pela qual (em tese) se poderia conseguir o poder.

 Isto também pode ser dito da seguinte forma: para os revolucionários, o poder deve ser construído, mas também deve ser conquistado. Já para os reformistas, o poder apenas se constrói (não existindo um momento onde se “toma” o poder, quando se “assalta o Palácio de Inverno”).

 Diferentes variantes

 Ao longo dos últimos duzentos anos, em diferentes países do mundo a classe trabalhadora experimentou diferentes “variantes” para tentar resolver o problema do poder.

 Uma delas foi a combinação entre a organização da classe (sindicatos, partidos, organizações populares diversas, e suas respectivas alianças) e a conquista de espaços institucionais (executivos, legislativos, democratização de outros aparatos de Estado).

 Em nenhum país do mundo, pelo menos até agora, esta variante desembocou na construção do socialismo. Porém, em diversos países, esta variante contribuiu para a construção de melhores condições de vida para a classe trabalhadora, ainda que nos marcos do capitalismo.

 Vale lembrar, entretanto, que onde estas condições de vida foram maiores e melhores, foi exatamente onde a classe dominante se beneficiava da exploração imperialista sobre outros povos, o que permitiu/facilitou concessões à sua própria classe trabalhadora. Ou seja, a melhoria das condições de vida da classe trabalhadora nos marcos do capitalismo foi maior onde se “combinaram” a luta por reformas por parte da classe trabalhadora com a exploração imperialista de outros povos por parte da classe capitalista.

Diferentes "variantes” foram a insurreição urbana, a guerra (com diversas formas: guerra de guerrilhas, guerra popular prolongada, guerra de libertação nacional, guerra de ocupação) e a “via chilena para o socialismo”.

 Vale dizer que o caso clássico da insurreição urbana - a Revolução Russa de 1917 – ocorreu em meio a uma guerra mundial e incluiu, depois da revolução, uma sangrenta guerra civil.  Por outro lado, a “via chilena” para o socialismo não resultou - até agora - na construção do socialismo em nenhum dos países em que foi tentada.

 A “via chilena” para o socialismo

 A “via chilena”, como o nome sugere, foi elaborada e experimentada no Chile, no período de governo da Unidade Popular (UP, 1970-1973).

 Deixemos de lado as características especificamente chilenas e nos concentremos no que é proposto por esta modalidade estratégica, enquanto solução para o problema do poder: a ideia central é utilizar os mecanismos de construção do poder (caminho “reformista”), para possibilitar a conquista do poder (caminho “revolucionário”).

 Dito de outra forma, a “via chilena” consiste em fazer da disputa e da conquista eleitoral de governos uma parte fundamental da disputa e da conquista do poder. Os defensores da “via chilena” pretendiam, desta forma, resolver vários problemas que angustiam os que se pretendem revolucionários:

 1/que estratégia adotar em sociedades ou em momentos históricos em que não estão ocorrendo, nem supostamente estão no horizonte visível, processos revolucionários, crises revolucionárias, revoluções;

 2/mas onde existe espaço para a classe trabalhadora acumular forças e inclusive conquistar governos nacionais.

 A “via chilena” oferecia, em tese, a seguinte resposta: utilizar a maioria eleitoral para viabilizar uma presença nos governos, governos que protagonizariam mudanças tanto de ordem econômico-social quanto de ordem política, mudanças que ao fim e ao cabo alterariam a natureza capitalista do Estado e da sociedade.

 Obviamente, os defensores da “via chilena” tinham consciência de que a implementação desta estratégia provocaria - mais cedo ou mais tarde - uma reação por parte dos capitalistas: a oposição, a sabotagem e no limite o golpe de Estado.

 Portanto, uma necessidade implícita era criar as condições para que esta reação não tivesse êxito. Uma primeira resposta era obter maiorias eleitorais, que permitissem controlar os órgãos executivos e legislativos, a partir dos quais se promoveria a democratização dos demais órgãos de Estado e/ou a convocação de processos constituintes, que no limite permitiriam substituir, a partir de processos eleitorais, o Estado capitalista por um Estado popular.

 Uma segunda resposta era neutralizar os instrumentos que a classe capitalista utiliza para fazer oposição, sabotar e dar golpes: o controle da economia, o controle dos meios de comunicação e o controle das forças armadas. Isto se traduziria na ampliação da presença do Estado na economia, na quebra do controle capitalista sobre os meios de comunicação e na submissão das forças armadas ao controle democrático.

 Este último aspecto teve grande importância no caso chileno. Mas, paradoxalmente, uma parcela da esquerda acreditou que o problema já estaria resolvido, acreditou que as forças armadas chilenas seriam fiéis a uma suposta tradição legalista e não apoiariam um golpe. Portanto, bastaria manter a tradição constitucionalista e profissional das forças armadas chilenas, o que aliás se buscou fazer mas de maneira tal que facilitou – ao fim e ao cabo – a operação golpista e dificultou a resistência popular (inclusive a resistência dos setores das forças armadas que defendiam o governo da UP).

 O tema das forças armadas teve e tem particular importância, como já foi destacado, no caso venezuelano. Em 2002, uma parcela das forças armadas apoiou um golpe contra o presidente Hugo Chávez, enquanto outra parcela apoiou a reação popular contra o golpe, forçando os golpistas a recuar e tornando possível uma reforma na instituição militar, reforma que ajuda a entender por quais motivos, pelo menos até o momento em que este texto está sendo escrito, predomine nas forças armadas venezuelanas o apoio ao governo popular.

 Tanto no caso venezuelano quanto no chileno, entretanto, a sabotagem econômica foi fundamental para o êxito (parcial ou total) da reação capitalista. O que remete para uma complexa discussão sobre a relação entre economia nacional e internacional, bem como sobre a relação entre Estado e mercado, discussões que também se fazem necessárias quando analisamos as experiências de construção do socialismo no século 20.

 Uma terceira resposta a como criar as condições para que a reação capitalista não tenha êxito consiste em defender a construção de um “poder popular” paralelo ao poder de Estado e/ou complementar ao governo popular. É importante perceber que esta e outras das respostas citadas têm, entre seus efeitos colaterais, o de acelerar a reação capitalista (além de "legitimar" a reação, pelo menos aos olhos dos setores legalistas). Isso nos remete para uma das principais dificuldades "práticas" da “via chilena”: o tempo.

 Quando a luta pelo socialismo entra numa etapa de insurreição ou de guerra, é porque a classe trabalhadora considera ter reunido os meios para tentar destruir os instrumentos de poder da classe dominante. E depois que conseguir isso, buscará fazer as principais transformações.

 Já na “via chilena”, a classe trabalhadora capitalista busca fazer parte importante das transformações pretendidas sem que – preliminarmente – tenha destruído o controle dos capitalistas sobre os principais instrumentos de poder (meios de comunicação, forças armadas, sistema judiciário, controle das empresas etc.). Portanto, a classe dominante tem muito mais facilidade para tentar utilizar aqueles instrumentos a favor da oposição, da sabotagem e, no limite, da promoção de golpes.

 A questão decisiva, portanto, é saber se os instrumentos que a classe trabalhadora vai conquistando, adquirindo e construindo através da combinação entre eleições e auto-organização serão capazes de "chegar lá" antes que comecem a sabotagem e o golpe. Trata-se de uma “corrida contra o tempo”, na qual tem imensa importância a disputa política e ideológica, geralmente denominada de “disputa de hegemonia” e/ou de "guerra de posições".

 Luta pelo poder e hegemonia

 As noções de "guerra de posições" e de "guerra de movimentos" remetem a formas diferentes de travar o combate militar entre dois exércitos. Neste âmbito, a guerra de movimentos se expressa, por exemplo, nos ataques velozes da cavalaria (animal ou blindada). Já a guerra de posições teve sua expressão típica nas trincheiras e casamatas, com longas esperas e avanços lentos.

 Na política, os dois termos são utilizados para designar métodos diferentes de luta pelo poder. Onde o Estado da classe dominante dispõe de várias “trincheiras protetivas” (os meios de comunicação, as escolas, as igrejas etc.), um assalto direto (guerra de movimentos) não terá êxito. O que pode ter êxito é uma guerra de posição, em que a classe trabalhadora cave “trincheiras” (imprensa, escolas, sindicatos, mandatos etc.) e vá avançando na medida do possível.

 Como se trata de uma “guerra”, pode chegar o momento em que será preciso sair das trincheiras e atacar. De fato, para alguns defensores da guerra de posições, seu desfecho envolveria algum tipo de guerra de movimento. Mas para outros defensores da guerra de posições, lançar mão da guerra de movimentos seria por definição contraditório. Segundo esta última visão, a “guerra de posições” seria uma eterna “disputa de hegemonia".

 O termo disputa de hegemonia, ao que tudo indica, foi utilizado pela primeira vez pelos revolucionários russos no final do século 19, início do século 20. Posteriormente, será retomado e desenvolvido pelo comunista Antonio Gramsci.

 “Hegemonizar” é convencer alguém diferente de nós a aceitar a nossa liderança. Disputar hegemonia é, portanto, tentar estabelecer a liderança sobre nossos adversários, mas também sobre o conjunto da sociedade – nossos inimigos incluídos.

 Neste sentido, “disputar hegemonia” é algo que vem sendo feito – com mais ou menos êxito - pela classe trabalhadora, ao longo dos últimos 200 anos. Esta disputa de hegemonia não acontece apenas nos momentos “pacíficos”, mas também nos momentos de enfrentamento militar, que no fundo são expressões concentradas da luta política e, portanto, neles também ocorre uma disputa de hegemonia, de influência, de convencimento, “quem dirige quem”.

 Claro que quando a luta de classes chega ao estágio da “batalha final” pelo poder de Estado, a busca do “convencimento” tende a tornar-se secundária frente ao confronto direto de forças. Portanto, a disputa de hegemonia tem maior relevância nos momentos “pacíficos” de acúmulo de forças, nos momentos prévios à “conquista do poder” e, também, durante a consolidação de uma nova ordem política, econômica e social.

 Pelos motivos citados, os que defendem uma variante "reformista", um processo mais ou menos contínuo de acúmulo de forças, muitas vezes apresentam a disputa de hegemonia como algo contraposto à variante revolucionária. Mas nos processos revolucionários (Rússia, China, Cuba etc.) houve muita disputa de hegemonia – aliás, com extremo sucesso, pois se houve vitória militar dos revolucionários, foi em primeiro lugar porque tinham amplo apoio popular.

 Estratégia, período e etapa

 Ao longo deste texto, o termo estratégia foi utilizado em um duplo sentido: como uma formulação teórica e como uma prática social.

 A estratégia como prática social designa o sentido geral da ação implementada - durante longos períodos – pelas vanguardas da classe. Não apenas o discurso que produzem, não apenas as propostas que fazem, mas o conjunto efetivo de atos que praticam. De forma análoga, a tática como prática social designa o sentido geral da ação implementada durante períodos mais curtos de tempo.

 Já quando falamos de estratégia enquanto formulação teórica, estamos nos referindo ao “plano de ação” formulado pelos dirigentes das diferentes forças políticas e sociais. Aqui cabe novamente lembrar da piada: ao ouvir as detalhadas orientações do técnico de futebol, orientações que sempre terminavam com drible e bola na rede, o craque perguntou se o técnico havia combinado tudo aquilo com os adversários. Como na piada, sempre tende a haver importantes diferenças entre o projeto e a ação real.

 Estas diferenças podem ter várias causas, mas a principal delas é que a ação real se desenvolve em combate com outras forças sociais e políticas, portanto em choque com outras estratégias, das quais surge uma resultante que sempre tende a diferir das intenções e propósitos originais. Tudo isto num dado contexto internacional que também é mutável.

 Falando em tese, a melhor estratégia é aquela que tenta considerar – nas suas formulações e projeções – as decorrências do choque com as demais forças políticas e sociais e a evolução da situação mundial.

 Uma das maneiras de tentar prever estas e outras potenciais decorrências futuras é o estudo da história, embora esta não se repita nunca, motivo pelo qual os “modelos” tendem a ser muito enganosos.

 Outra das maneiras de considerar as potenciais decorrências futuras é tentar detectar quais as tendências mais gerais de um período histórico, no plano nacional, regional e internacional. Estas tendências resultam de choques anteriores, que definem o quadro geral, a superfície, o ambiente em que se travam as batalhas do presente.

 Alguns autores e dirigentes dão a este contexto estratégico o nome de "etapa" e consideram que sua análise define os limites mínimos e máximos que uma estratégia pode obter na respectiva etapa.  Por exemplo: num contexto histórico de bipolaridade entre URSS e EUA, todos os processos nacionais eram levados a “posicionar-se” em relação aos polos. O que “empurrava” em direção ao socialismo processos que, em outros contextos, poderiam ter outros desdobramentos.

 É bom dizer que acreditava-se também que era aquela bipolaridade que empurrava as classes dominantes para o golpe. Hoje sabe-se que não é bem assim: a URSS não existe mais e os golpes voltaram à moda. Motivo? Essencialmente a natureza do imperialismo e das classes dominantes, independentemente do pretexto da vez.

 Estratégica, tática e análise de conjuntura

 As definições estratégicas podem ser perfeitas, mas se a tática acumular noutro sentido (ou simplesmente for equivocada), de pouco adiantará.

 Ou seja: não é provável que vença uma guerra alguém que perde todas as batalhas de que participa. Pois de derrota em derrota não se constrói a vitória final, embora seja impossível vencer sem antes ter sido derrotado e sem antes extrair lições das derrotas. 

 A estratégia visa alterar a correlação de forças entre as classes sociais num plano fundamental: o do poder de Estado. Ou seja: se a estratégica for exitosa, a classe trabalhadora terá o poder de Estado. E a partir daí poderá impulsionar uma transição socialista.

 Assim como a estratégia, a tática visa alterar a correlação de forças, em todos os terrenos possíveis, em favor da classe trabalhadora. Da mesma forma que na guerra, vencer uma batalha contribui para a vitória final. Mas cada batalha, tomada isoladamente, não decide a guerra. O que decide uma guerra é o conjunto das batalhas. 

Muitas vezes pensamos o contrário: nos concentramos no final do processo, esquecendo como se chegou até ali. A batalha decisiva, a batalha tática que decide a disputa estratégica, depende de tudo o que ocorreu antes.

Por tudo isso, estratégia e tática se articulam objetivamente, ou seja, se articulam no plano da realidade. E, portanto, precisam se articular também no plano do pensamento. Mas para que isto ocorra, é preciso atenção aos fundamentos: tudo gira em torno das classes sociais e da luta de classes (no âmbito de cada país) e da luta entre os Estados (expressão daquela luta de classes no âmbito internacional). 

Se o “objeto” é o mesmo, como diferenciar a análise conjuntural da análise estratégica?

Nos dicionários, a estranha palavra “conjuntura” é definida mais ou menos assim: “Concorrência ou coincidência de fatos ou circunstâncias em determinada situação ou ocasião; acontecimentos, circunstâncias ou situação característica de um dado momento”. Notem que há duas variáveis envolvidas: uma delas é o tempo (dado momento, determinada situação, determinada ocasião); outra delas é uma coleção de fatos, circunstâncias, acontecimentos, situações que compõem este tempo.

Vejamos cada uma destas variáveis. Comecemos pelo tempo. 

Digamos que alguém se propusesse a falar sobre a conjuntura do Império Romano, sobre a conjuntura do Renascimento; sobre a conjuntura da Revolução Francesa; sobre a conjuntura da Revolução Russa; sobre a conjuntura do Entreguerras; sobre a conjuntura da Guerra Fria; ou sobre a conjuntura do conflito China e EUA entre 2008 e 2020... 

Intuitivamente percebemos que o “tempo” da conjuntura é um tempo curto (dias, semanas, meses), não um tempo longo (anos, décadas, séculos). Mas por qual motivo é assim? Será só uma convenção ou existe uma razão mais ou menos objetiva (assim como existe uma relação objetiva que nos leva a distinguir os dias dos anos, a saber, a rotação da Terra e dela em relação ao Sol)? 

Deixemos esta questão pendente e sigamos adiante, rumo à segunda variável: a coleção de fatos, circunstâncias, acontecimentos, situações que compõem este tempo.

Novamente um exemplo: se alguém se propusesse a analisar a conjuntura de uma cidade no período da pandemia e começasse a análise descrevendo a vida de cada um dos moradores desta cidade, certamente haveria questionamentos. Assim como haveria questionamento, também, se alguém quisesse fazer uma análise da conjuntura de uma cidade no período da pandemia e fizesse isso com base apenas nos acontecimentos que envolvem os moradores de uma única rua. 

Num caso minha coleção de fatos seria extensa demais, noutro caso minha coleção de fatos seria estreita demais, não representativa.

Donde vem a pergunta: quais fatos, circunstâncias, acontecimentos, devem ser percorridos numa análise de conjuntura? Também intuitivamente nos damos conta de que isto depende dos objetivos do “sujeito oculto” da análise: o analista, a pessoa ou instituição que faz a análise.

Claro que uma análise de conjuntura pode ser feita por diletantismo (por exemplo para entender como as coisas estão e para onde elas podem caminhar), mas o mais comum é que ela seja feita com objetivos específicos. Por exemplo decidir onde investir (no caso de uma empresa, de um capitalista) ou decidir como atuar (no caso de um dirigente político).

Nesses casos citados ou similares, o recorte temporal e a seleção dos fatos são definidos na relação entre os objetivos de quem faz a análise & o objeto que está sendo analisado.

Imaginemos por exemplo um grupo de trabalhadores que resolveu disputar a direção de seu sindicato. A eleição tem data pré-definida, dezembro de 2021 por exemplo. E o dissídio da categoria é em maio de 2021. O que ocorra no dissídio vai impactar fortemente o ambiente da eleição de dezembro. Portanto, interessa àquele grupo de trabalhadores que o dissídio ocorra de determinada maneira. Imaginemos também que estamos falando de trabalhadores de baixa renda, que vinham recebendo auxílio emergencial. O auxílio foi interrompido em janeiro e essa interrupção criou uma situação objetiva nova. Portanto, a análise de conjuntura pode ser feita a partir do dia X de janeiro (última parcela do auxílio emergencial) e o dia de hoje. E quais são os aspectos que devem ser levados em conta? Tudo aquilo que impactar no estado de ânimo dos trabalhadores e na postura dos empresários do setor, bem como tudo aquilo que interferir no conflito entre os dois setores sociais.

A essa altura, temos já quatro elementos: quem faz, para o que faz, qual o recorte temporal e qual a seleção de aspectos. Vou falar um pouco mais do “para que”. A rigor, todos nós fazemos análise de conjuntura o tempo todo; a mais comum é “com que roupa vou sair hoje, será que vai chover, fazer sol, fazer frio, ventar?” Mas atenção: podemos escolher a roupa que quiser e isso não definirá o comportamento do tempo. Na vida social é diferente: nossas opções impactam os acontecimentos. Não apenas a ação que desenvolvemos a partir da análise de conjuntura, mas a própria análise que fazemos afeta os demais envolvidos e assim vai se criando um conjunto de ações e reações que vão definindo a conjuntura de amanhã a partir da conjuntura de ontem e hoje. Por isso, aliás, muita gente não diz exatamente aquilo que pensa. Por isso, também, a análise de conjuntura tem um pouco de ciência e muito de “arte”, no sentido de aposta, de jogo.

Qual é a parte da ciência? A análise do ocorrido anteriormente (quem vai falar da conjuntura atual do Brasil e não conhece a história do país tem uma imensa chance de falar bobagem) e a definição dos fatores que obrigatoriamente tem que ser analisados (quem vai falar de qualquer conjuntura brasileira e desconsidera as classes sociais e a relação do Brasil com o mundo, produzirá uma análise necessariamente incompleta).

Qual é a parte da arte, da aposta, do jogo? A análise dos desdobramentos, do que virá pela frente. Pois a análise de conjuntura não é principalmente uma descrição dos fatos passados e presentes, mas sim uma tentativa de detectar tendências futuras. Está mais para a análise meteorológica, da qual se espera que acerte sobre as chuvas e o frio futuro, não sobre o calor passado, que todos já sabem o quão quente foi. 

Sistematizando: a análise de conjuntura é uma análise da correlação de forças em luta, correlação que em última análise envolve dois “sujeitos”: as classes sociais (no âmbito de cada país) e os Estados (expressão desta luta de classes no âmbito internacional).

A correlação de forças se altera com muita rapidez ao longo do tempo; e num mesmo momento, mas em territórios diferentes, também apresenta enormes diferenças.

Por isto, analisar a conjuntura de um século ou analisar a conjuntura do mundo inteiro é, na verdade, estudar várias conjunturas encadeadas ou simultâneas.

Isto é perfeitamente possível de fazer, mas neste caso estaríamos realizando não uma “análise de conjuntura” --ou seja, das tendências de curto/médio prazo-- mas sim uma análise das tendências de médio/longo prazo, portanto uma “análise de estrutura”.

A análise “estrutural” é fundamental, até porque sem ela a análise de conjuntura torna-se volúvel. Da análise de conjuntura deriva a tática, da análise de estrutura deriva a estratégia.

Evidentemente, a estrutura também se altera. Por exemplo: o fim da União Soviética encerrou um período e abriu outro período na relação entre os Estados em âmbito mundial. Outro exemplo: as crises de 1930, de 1970 e de 2008 alteraram o padrão de acumulação do capitalismo, o que interfere tanto na relação entre Estados, quanto na relação entre classes sociais. Sem levar em conta a dinâmica estrutural, a análise de conjuntura torna-se míope, politicista, episódica, “curtoprazista”.

Vejamos a seguir algumas variáveis da dinâmica estrutural.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial até 1991 a principal variável da situação mundial foi o conflito entre os Estados Unidos e União Soviética. Em 1991 ocorreu a dissolução da União Soviética, abrindo um período de instabilidade nas relações internacionais, tendo como variável principal a tentativa dos Estados Unidos de converter-se numa espécie de “império global unilateral”. Diversas foram as reações àquela tentativa, entre as quais destacamos o ciclo de governos progressistas e de esquerda na América Latina e a ascensão da República Popular da China. 

Hoje, trinta anos depois do fim da URSS, a principal variável da situação mundial é o conflito entre EUA e China. Neste conflito a América Latina e o Caribe são território de combate econômico, político, ideológico e, em menor escala, militar. Isto já havia ocorrido durante a Guerra Fria entre EUA e URSS. Agora, entretanto, há três novidades importantes: a decadência dos Estados Unidos, a penetração econômica chinesa e a experiência de integração latino-americana e caribenha.

Os Estados Unidos seguem sendo a principal potência econômica, política e militar do mundo. Entretanto, por uma combinação de fatores internos e externos, há um declínio acentuado na capacidade dos Estados Unidos exercer sua hegemonia. Há dois cenários fundamentais: ou bem os EUA recuperam sua hegemonia global; ou bem recuam no sentido de converter-se em uma importante potência regional que participa das questões mundiais. Nos dois casos, os Estados Unidos manterão pressão intensa sobre a América Latina e o Caribe. E, qualquer que seja o cenário final, tudo indica que para tentar reverter seu declínio os Estados Unidos seguirão lançando mão de sua potência militar, uma vez que são imensas as dificuldades de reverter a situação de declínio no terreno econômico-social e político-ideológico.

A República Popular da China é a principal competidora dos Estados Unidos no plano mundial. Diferente da União Soviética no período 1945-1991, a China adotou uma política econômica que teve como efeito sua penetração em todo o mundo e, também, a ultrapassagem dos Estados Unidos em vários terrenos. Diferente dos Estados Unidos no período 1945-1991, a expansão econômica chinesa não veio acompanhada de um aumento correspondente da presença militar. E tudo indica que os chineses farão quase tudo que for possível para evitar um conflito militar generalizado.  Seja como for, o sucesso econômico da China e a evidente relação deste sucesso – até o momento – com a estabilidade de seu regime político interno mandam uma forte mensagem positiva em favor do papel diretor do Estado de tipo socialista, na contramão do discurso capitalista neoliberal difundido pelos Estados Unidos.

Um eventual sucesso da China no conflito com os Estados Unidos não produzirá, necessariamente, uma alteração no “lugar” da América Latina e Caribe no mundo. Afinal, seja qual for o desfecho, é funcional às principais potências do mundo que a região, o Brasil em particular, perpetue sua condição de exportadora de matérias-primas e importadora de produtos industriais e pacotes tecnológicos. 

A classe dominante nos diferentes países da região (com a exceção de Cuba) parece conformada com esta situação de sócia menor de interesses estrangeiros. Esta condição dependente tem várias implicações, entre as quais destacamos: a superexploração da força de trabalho, a permanente ameaça às liberdades democráticas da maioria do povo, a perpetuação de uma mentalidade colonizada e padrões de desenvolvimento inferiores aos das potências mundiais. 

Alterar esta situação estrutural exigiria concluir a tarefa que foi apenas insinuada pelo ciclo de governos progressistas e de esquerda, que se fosse continuada poderia converter a região em uma potência coletiva mundial. Mas para isso seriam/serão necessárias mudanças estruturais. Caso isto não ocorra, viveremos como região e como Brasil uma regressão secular, no nosso caso de certa maneira voltando ao que éramos antes da Revolução de 1930, mas em condições muito piores do que então, já que se trataria de fazer caber um país de 210 milhões de habitantes na moldura estreita vigente quando o país tinha 40 milhões de habitantes.

Resumindo os marcos estratégicos que devemos levar em conta, ao fazer uma análise de conjuntura, seja local, regional, nacional, subcontinental, mundial:

a) hegemonia do capitalismo;

b) crise do capitalismo;

c) declínio da potência hegemônica;

d) ascensão de outros polos de poder;

e) disputa entre diferentes vias de desenvolvimento capitalista;

f) disputa entre capitalismo e socialismo;

g) formação de blocos regionais;

h) hegemonia do neoliberalismo em âmbito regional;

i) disputa entre diferentes modelos de desenvolvimento nacional e regional;

j) vitórias eleitorais e forte protagonismo dos governos progressistas até 2008;

k) desde então, contraofensiva das forças conservadoras

l) ofensiva conservadora contida parcialmente na Argentina, na Bolívia, no Peru e no México

m) o papel decisivo do Brasil.

Estes últimos tópicos ensejam a seguinte discussão: se podemos falar em “conjuntura latino-americana e caribenha” ou se na verdade existem conjunturas, no plural, mas não uma conjuntura. 

O ponto de vista 

“Análise de conjuntura” é uma expressão que faz parte do jargão das pessoas que fazem política de forma militante. E o analista da conjuntura é alguém envolvido nela, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente. Isto vale inclusive para os que se apresentam como “cientistas políticos” (não importando sua coloração política). Qualquer ponto de vista é a vista a partir de um ponto.

Não há nenhuma relação direta, mecânica, entre o ponto de vista de quem analisa e a qualidade (no sentido de maior ou menor correção) da análise. Aliás, o fato de alguém se julgar porta-voz autorizado da ciência pura, da nação, da democracia, da classe, de Deus ou de Marx não torna “verdade” nada do que ele diz, nem muito menos garante uma adequada análise dos fenômenos conjunturais.

Entretanto, não é irrelevante a questão do sujeito da análise, pois as análises da conjuntura fazem parte... da conjuntura. A difusão de determinadas interpretações, narrativas, conclusões, propostas faz parte da luta política permanente que se trava em nossa sociedade. Por isto é fundamental lembrar sempre que não existe análise neutra, acima ou à parte daquela luta. Determinar a correlação de forças e definir o centro da tática é também tomar partido, é definir como devemos nos comportar diante da situação.

Lembrando que a noção de "correlação de forças" não se limita a correlação de forças partidária, eleitoral ou institucional. Este tipo de reducionismo é compreensível no caso dos que acreditam que é possível transformar o país essencialmente a partir de dinâmicas eleitorais e institucionais. Mas especialmente em épocas de crise, há outras variáveis que devem ser levadas em conta  na determinação da correlação de forças. Aliás, são estas variáveis que explicam por quais motivos ocorrem mudanças inclusive no terreno eleitoral e institucional. As recentes eleições no Chile e no Peru demonstram a incidência das lutas de massa e, também, tudo aquilo que muitas vezes está fora das vistas dos poderosos e dos que vivem da política tradicional.

Uma política pensada e organizada em torno do estritamente eleitoral e institucional pode dar eleitoralmente certo e isto pode ter efeitos positivos no curto e médio prazo. Mas uma política organizada em torno do estritamente eleitoral nao é suficiente para transformar o Brasil de maneira mais profunda e permanente. A experiência do PT é sintomática: ganhamos 4 eleições presidenciais, mas não conseguimos colocar o povo na rua para resistir ao golpe de 2016. E o retrocesso que veio em seguida foi e segue sendo brutal. É como se Sisifo tivesse empurrado a pedra morro acima e ela rolasse e caísse num despenhadeiro, bem abaixo de onde estava no início. O que nos leva a um último tema: os momentos de "defensiva" ou "ofensiva".

A contraofensiva reacionária

 Tanto no Brasil, quanto nos demais países da América Latina e Caribe, a maior parte das forças de esquerda tentaram implementar uma estratégia aparentada com a “via chilena”. E a partir de 2008, todos os governos progressistas e de maneira geral o conjunto da esquerda passamos a enfrentar uma contraofensiva reacionária, que inclui golpes, derrotas eleitorais, traições e cerco.

Apesar do que ocorreu nas eleições presidenciais mais recentes do México, da Argentina, da Bolívia e do Peru, não se pode dizer que a contraofensiva tenha sido detida, derrotada e revertida. Pelo contrário, é possível que sob o governo Biden a pressão aumente.

No caso brasileiro, a contraofensiva envolveu e envolve ações simultâneas da direita partidária, da direita social, da alta burocracia de Estado, do grande capital, do oligopólio da mídia, do sistema judiciário e das forças armadas e de segurança. Apesar de diferenças táticas, ainda há um amplo consenso estratégico entre as forças reacionárias, em torno dos seguintes objetivos:

a) realinhar o Brasil ao bloco internacional comandado pelos Estados Unidos (afastando-o tanto dos BRICS quanto da integração latino-americana);

b) reduzir os níveis de remuneração, direta e indireta, da classe trabalhadora brasileira (o que inclui desde alterações na legislação trabalhista até cobrança de serviços públicos, passando por revisão nas políticas de reajuste do salário mínimo e repressão aos movimentos sociais reivindicatórios);

c) reduzir o acesso dos setores populares às liberdades democráticas em particular e aos direitos humanos e sociais;

d) reprimarizar a economia nacional.

Caso esta ofensiva reacionária tenha pleno êxito, não estaríamos apenas de volta aos governos 100% neoliberais de 1994-2002. Nem estaríamos apenas diante do desmanche dos direitos inscritos na (em geral conservadora) Constituição “Cidadã”. Mais do que isto, sob pelo menos dois aspectos importantes estaríamos “rumando” em direção a características do Brasil pré-revolução de 1930: no que diz respeito aos direitos trabalhistas (a questão social enquanto caso de polícia) e no que diz respeito ao lugar do Brasil na “divisão internacional do trabalho”.

contraofensiva reacionária conformou um novo ambiente estratégico na região e dentro de cada um dos países. Quais as implicações estratégicas que podem ser extraídas desta constatação? Entre as várias implicações possíveis, destacamos a situação de "defensiva estratégica".

 Entramos num período de defensiva estratégia, que pode ser mais longo ou mais curto, com uma duração que depende de um conjunto de variáveis, inclusive internacionais.

Um período de defensiva não significa um período de passividade. Num período de defensiva travam-se grandes lutas, se obtém vitórias e até avanços. O que caracteriza um período como sendo de defensiva estratégica é o que está em jogo nele.  Num período de defensiva, um dos objetivos é defender as conquistas antigas e recuperar o terreno perdido; ou seja, lograr recuperar o status quo ante, o que já tínhamos e agora perdemos. Contudo, como veremos adiante, há outros aspectos a considerar.

A defensiva não dura para sempre. Uma situação de defensiva pode se converter em uma situação de equilíbrio (relativo, como qualquer equilíbrio) e esta pode se converter numa situação de ofensiva estratégica.

O que permite a defensiva se converter em ofensiva é a mudança no estado de ânimo da classe trabalhadora. E esta mudança ocorre em parte como reação à ação dos inimigos e em parte por ação das diferentes vanguardas da classe, numa combinação de elementos.

Evidente, se existe o propósito de criar as condições para sair de uma situação de defensiva, então a ação das vanguardas deve ajudar a classe trabalhadora a mudar seu estado de ânimo.

Portanto, além de debater a necessidade e o conteúdo de uma nova estratégia, estamos chamados a debater quais as táticas adequadas para reagrupar forças e retomar a ofensiva.

No Brasil de 2021, as esquerdas estão divididas em relação à tática. Por exemplo os que apostam na mobilização de massa agora e os que preferem adiar a mobilização. Embora o argumento público de muitos dos que defendem adiar seja a pandemia, no fundo existe a crença de que o melhor momento para o embate final com o cavernícola não é agora, mas sim 2022. Esta crença tem motivações diferentes: há os que acham que ele estaria derretendo, há os que acham que o impeachment agora beneficiaria a terceira via, há os que acreditam no poder taumatúrgico das eleições e assim por diante.

Há também quem prefira não jogar todas as fichas na mobilização agora, por achar que iso poderia criar dificuldades para a  sonhada (por alguns) frente ampla com a direita gourmet. A respeito da tática eleitoral frente à direita não bolsonarista, existem pelo menos três posições: 1/quem prefere uma candidatura de centro-direita apoiada pela esquerda; 2/quem prefere que apresentemos uma candidatura de esquerda fantasiada de centro-esquerda, para tentar conseguir o apoio da direita; e 3/e quem defende uma candidatura de esquerda e da esquerda.

Vale lembrar que a conquista de maiorias eleitorais faz parte da disputa pelo poder, mas não “resolve” a maior parte do “problema” do poder. Em primeiro lugar, porque a classe dominante -- e seus partidos -- mantêm seus direitos eleitorais e, portanto, minorias eleitorais mais ou menos expressivas. Além disso, há elementos de poder que não sofrem influência direta da disputa eleitoral, tais como a ingerência externa, o poder econômico, o oligopólio da mídia, o judiciário, as forças de segurança.

Embora não resolvam o problema do poder, as vitórias eleitorais da esquerda aguçam a disputa pelo poder, tornando mais violenta a disputa de hegemonia cultural, comunicacional, ideológica, política e econômica. E quando as forças reacionárias conseguem afastar a esquerda do governo (seja pela via eleitoral ou do golpe, seja este clássico ou jurídico-parlamentar), elas voltam dispostas a reduzir ao mínimo as possibilidades de que a história se repita.

As forças reacionárias aprenderam com as derrotas que sofreram a partir de 1998 e até 2014. Além disso, a situação do capitalismo as empurra a adotar medidas que visam recompor rapidamente sua rentabilidade e controle, medidas que só serão politicamente viáveis se forem acompanhadas de alterações profundas na correlação de forças entre as classes; o que por sua vez as leva a tentar fechar e colocar ferrolhos nas “portas” que permitiram à esquerda acessar espaços executivos e legislativos e implementar políticas públicas que melhorem a vida do povo.

 Por tudo isso, a ofensiva reacionária não é apenas eleitoral: ela abriu um novo período estratégico, no qual a classe dominante aceita cada vez menos a possibilidade de sofrer derrotas eleitorais e no qual a classe trabalhadora vive e viverá situações táticas mais difíceis do que as experimentadas entre 1989 e 2014. É também por conta destas mudanças que afirmamos que, para atuar neste novo período, será necessário não apenas uma tática acertada, é preciso adotar outra estratégia.

A situação é muito grave e muito complexa. Os inimigos são muitos, não apenas a pessoa de Bolsonaro. E o inimigo principal adota ao mesmo tempo duas táticas: a tradicional e a neofascista.  Frente a tantas dificuldades, não podemos  repetir a estratégia antiga nem tampouco nos limitar a contrapor uma tática exclusiva ou principalmente eleitoral, uma tática pré-datada para 2022, quase que totalmente dependente de um "homem só", crente na sinceridade democrática e social dos golpistas arrependidos. Por tudo isso e por outros motivos, os defensores da tática organizada em torno do Fora Bolsonaro e das mobilizações em 2021 consideram que manifestações como as de 29 de maio e de 19 de junho têm uma importância transcendental.

Para concluir: apesar de estarmos em um período de defensiva estratégica, nossa política não deve nem pode se limitar a defender as conquistas antigas e tentar recuperar o terreno perdido, na expectativa de voltarmos ao status quo ante. Entre outros motivos porque -especiamente nesta momento de crise sistêmica mundial e de profunda crise nacional - simplesmente não é possível colocar a pasta de volta no tubo. 

No concreto, a situação de 2021-2023 já é e continuará sendo muito diferente da situação de 2001-2003. Até mesmo para fazer algo parecido com o que foi feito quando estivemos no governo federal, seria preciso radicalizar muito mais. E devemos lembrar que a história não anda em círculos entre outros motivos porque, nos momentos de crise, algumas forças políticas e sociais esticam o limite do possível. Se não fosse assim, viveríamos uma eterna volta ao ponto de partida. Hoje a extrema direita está causando mais dano do que os neoliberais entre 1990-2002. Nós de esquerda devemos nos propor a ir mais longe do que fomos até agora.

Parte da esquerda não pensa assim. E o predomínio desta esquerda ajuda a entender por qual motivo o Brasil é do jeito que é. Não dá para reclamar da herança da escravidão, do comportamento vira-lata, da falta de democracia, da desigualdade, da precariedade das políticas públicas e, ao mesmo tempo, adotar um jeito de fazer política baseado na lógica do devagar se vai ao longe, cuidado com o andor que o santo é de barro, apressado come cru e outras platitudes conformistas. Pois esta é a ideologia que o andar de cima propõe ao andar de baixo: esperar, esperar, esperar, como o Pedro Pedreiro da música de Chico.

Detalhe importante: não defendemos posições mais radicais porque gostamos. Não se trata de gostar ou não gostar. Se trata de perceber que tempestades existem. E estamos no meio de uma, gostemos ou não. Quem não perceber isto e optar por agir como em tempos normais, quem preferir não correr riscos e apostar no "centro", quem quiser sair deste período de defensiva estratégica com bom gosto, bom senso e bons modos, vai mais uma vez descobrir que não se combate Al Capone com Woodstok.


ps. Agradeço aos comentários e correções feitas pela Rita Camacho e pelo Marcos Jakoby.






 


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