sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Devaneios direitistas?

"Devaneios esquerdistas" é o título da coluna assinada por Merval Pereira, no jornal O Globo de 28 de novembro de 2014.
O texto de Merval é reproduzido ao final deste comentário.
O simpático título faz referência a um abaixo-assinado divulgado há poucos dias, intitulado "Em defesa do programa vitorioso nas urnas".
O texto do abaixo-assinado pode ser lido aqui: 
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Em-defesa-do-programa-vitorioso-nas-urnas/4/32296
Segundo Merval, "as diversas facções em que se divide a esquerda brasileira aliada ao governo petista estão atônitas com a chegada ao ministério do segundo mandato de Dilma de Joaquim 'mãos de tesoura' Levy, que pretende, como anunciou ontem em linguagem diplomática, colocar ordem na bagunça em que se encontra a economia nacional".
Procurando bem, sempre se pode achar alguém atônito. Mas a questão é muito simples: como os dois mandatos do presidente Lula e como foi seu primeiro mandato, o segundo mandato da presidenta Dilma será o de um governo em disputa.
Nas eleições, impedimos o retrocesso que seria resultante de uma vitória de Aécio Neves. Mas para conseguirmos um segundo mandato Dilma que seja superior ao primeiro -- entendo por superior principalmente contribuir para a implementação de reformas estruturais -- será preciso muito mais esforço.
Dada a correlação de forças no Congresso, bem como dadas as debilidades da esquerda política e social, para não falar dos constrangimentos objetivos derivados da economia nacional e internacional, está claro que não existem condições para fazermos o governo "ideal".
Agora, reconhecer a correlação de forças não é igual a capitular frente ao inimigo.
Quem capitula, faz concessões que nos impedem de alterar para melhor a correlação de forças. 
Para evitar este tipo de situação, esperamos que governo faça a parte que lhe cabe na democratização da comunicação, na reforma política, na manutenção e progresso da vida material e cultural da classe trabalhadora etc.
E para isto, não basta termos a presidenta Dilma; é necessário que ela nomeie uma equipe que sinalize e contribua no sentido indicado.
O abaixo-assinado significa que, do ponto de vista de uma parte dos/das que apoiaram e elegeram a presidenta Dilma Rousseff, nomes como o de Joaquim Levy e Kátia Abreu não correspondem ao que esperamos de seu segundo mandato.
Na nossa opinião, Kátia Abreu é defensora de uma política favorável ao agronegócio, política esta que vem desde 2003 e que precisa ser alterada.
Também na nossa opinião, Joaquim Levy é partidário das políticas gerenciadas por Palocci entre 2003 e 2005, políticas danosas então e agora.
Portanto, quem assinou o abaixo-assinado, seja pelas razões acima indicadas ou por outras, não está "atônito"; está apenas fazendo um movimento contrário ao que é feito por Merval. Com a legitimidade de quem lutou em favor de Dilma e contra o oligopólio a que Merval presta obediência.
Segundo Merval, o que "esse pessoal [do abaixo-assinado] "não quer enxergar, e que Dilma foi obrigada a entender, é que a vitória eleitoral do PT em outubro não correspondeu a uma vitória política, pois forjada à base do abuso da máquina pública e mentiras, sejam as divulgadas pela propaganda eleitoral, ou as espalhadas em diversas formas pelo país para amedrontar os menos informados".
Para quem não entendeu o raciocínio, Merval desenha assim: "Da mesma forma que Collor espalhava em 1989 que Lula confiscaria a poupança dos brasileiros para depois fazer ele mesmo o que criticava no adversário, também hoje estamos vendo o governo Dilma anunciar 'medidas impopulares' que seriam a base do governo de seu adversário 'neoliberal'."
Ou seja: Merval apóia-se na nomeação de Levy para acusar Dilma e o PT de estelionato eleitoral. 
Contra esta interpretação, vários porta-vozes de setores do PT ou do governo já disseram o óbvio: que é a presidenta quem decide e que a decisão da presidenta é manter o desenvolvimento com bem-estar social.
É bom que isto seja dito, mas se é assim, por qual motivo era necessário nomear especificamente Levy? Afinal, dentre os eleitores e apoiadores de Dilma há vários empresários e economistas, inclusive gente conservadora e comprometida com o rigor fiscal. 
A escolha de Levy, entre seus muitos defeitos, tem este: abre espaço para que digam que "a presidente Dilma viu-se obrigada a dar um salto triplo carpado para tentar recuperar a credibilidade". 
Se ficasse só nisto, não seria um grande problema (especialmente se o PT tivesse um jornal para afirmar outro ponto de vista).
Ocorre que a oposição de direita irá muito além das piadinhas: fará de tudo para tentar converter Levy num "super-ministro", autônomo em relação à presidenta da República.
A mesma operação foi feita entre 2003 e 2005, contra Lula e em favor da dupla Meirelles/Palocci. E não existe memória seletiva capaz de esconder os danos causados.
Então como agora, era dito que tais ministros teriam como tarefa garantir "uma política econômica que os petistas chamam de 'neoliberal' mas que na verdade é apenas sensata e equilibrada, que usa o mercado privado para ajudar o governo a atingir metas que, sozinho, ele não conseguiu nos últimos quatro anos e nem conseguiria nos próximos quatro, mantidas as mesmas premissas que vigoravam e foram formalmente rejeitadas pela nova equipe econômica."
A oposição de direita, que em geral comemorou a escolha de Levy, incorporou ao seu "plano" o seguinte: 1) impedir o governo Dilma de aplicar o programa vitorioso nas urnas, 2) obrigar nosso governo a aplicar ao menos parcialmente o programa derrotado e 3) tirar vantagens eleitorais disto (a exemplo do que busca fazer uma recente manchete de capa do Correio Braziliense: "Trio do arrocho vai subir juros e cortar despesas".)
Parte da esquerda subestima as consequências da escolha de Levy & Cia. E acha que o plano resumido acima não passa de um devaneio direitista. 
Pode ser. Mas basta observar os resultados eleitorais entre 2002 e 2014 para perceber que não estamos em condições de errar; e que um dos graves erros que não podemos repetir é o de afastar aquela parte do eleitorado e da militância de esquerda que não estiveram conosco no primeiro turno, mas que foram decisivos no segundo turno.
Para os setores do PT que percebem isto, será preciso ter muita paciência e perseverança. 
Afinal, lutamos contra a pressão da mídia, que é na sua maioria favorável ao neoliberalismo e ao desenvolvimentismo conservador. 
Lutamos contra tucanos infiltrados em nossas fileiras (sempre é bom lembrar que Marina não se "converteu" depois que saiu do PT). 
Lutamos contra os que acham que conciliação é não apenas uma tática eventual, mas uma estratégia. 
E, por fim, temos que lembrar que acabamos de sair de uma dura campanha, momento em que as pessoas defendem primeiro e perguntam depois. 
Nada disto é novo: vivemos situação similar, por exemplo, em 2003-2005. E mesmo em agosto de 2014, parte da esquerda acreditava em vitória fácil no primeiro turno, o que dá uma boa medida da dificuldade que alguns setores têm para analisar a realidade é perceber nossas falhas. 
Considerando tudo isto, talvez o mais importante seja não repetir, agora, os erros cometidos naquele momento pela parte mais crítica da esquerda, por exemplo: a impaciência, achar que cada batalha é a última, perder de vista o cenário mais amplo da luta de classes no Brasil e da luta entre estados no mundo.
Assim, paciência, perseverança, didatismo e método. A disputa será longa. E o papel decisivo será jogado pela classe trabalhadora, por sua disposição de lutar por mais mudanças.

Segue o texto:
MERVAL PEREIRA28.11.2014 08h00m
As diversas facções em que se divide a esquerda brasileira aliada ao governo petista estão atônitas com a chegada ao ministério do segundo mandato de Dilma de Joaquim "mãos de tesoura" Levy, que pretende, como anunciou ontem em linguagem diplomática, colocar ordem na bagunça em que se encontra a economia nacional.
Num primeiro momento, correntes diversas uniram-se para tentar barrar a nomeação, sob o argumento fantasioso de que ela ia de encontro ao modelo econômico que fora vitorioso nas urnas. Como se a presidente Dilma, reeleita por estreita margem, tivesse perdido a noção de que era a grande vencedora das eleições de outubro e, do nada, tivesse escolhido um ministro da Fazenda para fazer tudo ao contrário do que defendia no seu primeiro mandato.
Como se o próprio Lula, que batalhou para nomear Luiz Trabuco, o presidente do Bradesco, para o ministério da Fazenda, tivesse perdido a sanidade da noite para o dia. O que esse pessoal não quer enxergar, e que Dilma foi obrigada a entender, é que a vitória eleitoral do PT em outubro não correspondeu a uma vitória política, pois forjada à base do abuso da máquina pública e mentiras, sejam as divulgadas pela propaganda eleitoral, ou as espalhadas em diversas formas pelo país para amedrontar os menos informados.
Da mesma forma que Collor espalhava em 1989 que Lula confiscaria a poupança dos brasileiros para depois fazer ele mesmo o que criticava no adversário, também hoje estamos vendo o governo Dilma anunciar "medidas impopulares" que seriam a base do governo de seu adversário "neoliberal".
Os que assinaram o tal manifesto contra a nomeação do economista Joaquim Levy para o ministério da Fazenda acreditam piamente que banqueiros roubam comida dos pratos dos pobres, e se chocaram com a decisão de colocar o Bradesco no lugar do Itaú na Fazenda, e de ter um colaborador de Arminio Fraga em seu lugar no ministério.
Quem, ao que tudo indica, já desconfiava do que seu marqueteiro dizia era a própria Dilma, insegura de suas próprias convicções que na prática deram errado, e talvez por isso se enrolasse toda quando tentava explicar alguma coisa. Provavelmente nem mesmo o próprio João Santana acreditasse no que seus filmetes mostravam, já que ele confessadamente diz que não lida com conceitos como verdade, mas com a percepção do cidadão.
O fato é que, acreditando ou não no que defendia, a presidente Dilma viu-se obrigada a dar um salto triplo carpado para tentar recuperar a credibilidade de um governo que termina seu primeiro mandato com os piores indicadores econômicos de todos os tempos de nossa República, salvo dois outros governos, um dos quais o do próprio Collor.
E a nova equipe econômica pontuou durante sua apresentação o que talvez seja a chave para o entendimento do que está acontecendo: ter uma economia saudável é bom para as famílias brasileiras, e garante a manutenção dos avanços sociais conquistados.
O que estava sendo ameaçado com a performance dos últimos anos era justamente a jóia da coroa petista, os programas sociais, que agora serão garantidos por uma política econômica que os petistas chamam de "neoliberal" mas que na verdade é apenas sensata e equilibrada, que usa o mercado privado para ajudar o governo a atingir metas que, sózinho, ele não conseguiu nos últimos quatro anos e nem conseguiria nos próximos quatro, mantidas as mesmas premissas que vigoravam e foram formalmente rejeitadas pela nova equipe econômica.
Talvez constatando que espernear não levará a nada, o futuro ex-ministro Gilberto Carvalho, que já tem até substituto dentro do próprio PT no Palácio do Planalto, tentou ele sim dar um salto triplo carpado para encontrar uma explicação que não deixasse mal os petistas revoltados.
Disse Carvalho que, ao contrário do que parece, é Joaquim Levy quem está aderindo ao projeto econômico petista. Por este estranho raciocínio, o mesmo economista que já trabalhou no primeiro governo Lula e era execrado pelos petistas assim como outros do mesmo grupo, como Murilo Portugal e Marcos Lisboa, teria sido chamado de volta ao governo petista não por suas virtudes necessárias à mudança de rumos, mas por que aderiu ao projeto que está para ser mudado.
Por essa lógica, Mantega pode perfeitamente substituir Levy no Bradesco, afinal pensam de maneira semelhante. O que estraga a tentativa de Carvalho de fingir que não houve mudanças de orientação econômica é o estranho caso de um ministro nomeado para um governo de continuidade fazer parte da equipe de transição desse mesmo governo, formalizando assim a mudança de postura.

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