Em artigo intitulado A fábula petista, publicado na Folha de S. Paulo dia 10/11/2014, Frei Betto comete dois equívocos muito comuns entre figuras importantes do petismo.
Reproduzo abaixo a íntegra do texto a seguir criticado.
O primeiro equívoco consiste no que chamo de fazer autocrítica pelos outros. Quem tivesse vindo de outro planeta e lesse o texto de Betto poderia achar que ele nunca foi de fato petista, que ele nunca influenciou os principais dirigentes do PT, que suas ideias não foram dominantes nos anos decisivos de nossa história e que em sua passagem pelo governo Lula, Frei Betto nunca foi picado pela mosca azul.
Em grande medida por não fazer sua própria autocrítica, Betto comete o segundo equívoco: o de analisar a atual situação, a partir dos mesmos pressupostos teóricos que levaram o PT a cair na situação atual.
O exemplo máximo disto está na identificação que ele faz entre a "progressiva desconstrução" do PT e o "projeto de poder". Nas palavras de Betto: "O projeto de Brasil cedeu lugar ao projeto de poder."
Na verdade aconteceu exatamente o contrário do que diz Betto.
Ao longo dos anos 1990, o PT progressivamente substituiu sua estratégia de "conquistar o governo como parte do caminho para ser poder", por uma estratégia que supunha conquistar o governo e conviver com o poder dos grandes capitalistas.
Em parte por isto, grandes setores do PT passaram a preferir um péssimo acordo a uma boa briga.
Em parte por isto, a organização do Partido, do campo popular, da classe trabalhadora, perderam centralidade.
Em parte por isto, os êxitos de um bom governo chegavam no máximo até as fronteiras dos poderes capitalistas.
O problema do PT nunca foi e não é ter adotado um "projeto de poder".
Os problemas do PT derivam em grande medida do oposto: ter enfraquecido seu "projeto de poder".
Boa parte do que Betto diz acerca do poder deriva de uma idéia vulgar acerca do que é o "poder". Vulgaridade que a própria classe dominante estimula, para que a classe trabalhadora não queira ter o poder, esta coisa "nojenta" e "corruptora". Vulgaridade que convive bem com um discurso de matriz religiosa, um discurso sedutor e basista que foi muito funcional aos que empurraram o PT para o caminho trilhado a partir dos anos 1990.
Por conta desta abordagem vulgar do tema, Betto não consegue compreender nem explicar corretamente o aparente paradoxo destes 12 anos: uma esquerda moderada & uma direita radical.
Quem tiver interesse acerca das causas reais deste paradoxo, sugiro o texto:
Ao invés de explicar o aparente paradoxo, Betto afirma que "em 12 anos de governo, o PT despolitizou a nação." Nem Deus, nem Betto, seriam capazes de tal prodígio. Não há como despolitizar uma sociedade de classes, pois onde há luta de classes há luta política, ou seja, luta pelo poder. E quem recusa a luta pelo poder, ajuda os poderosos.
A fábula petista, na verdade, poderia ser apresentada assim: enquanto as formigas lutavam, certas cigarras produziram uma teoria e uma estratégia que nos levaram aos impasses atuais. O melhor que estas cigarras podem fazer agora é aprender a tocar outra música.
Folha, 10/11/2014
Frei Betto
Com o tempo, o PT deixou de valorizar o trabalho da formiga e passou a entoar o canto da cigarra. O projeto de Brasil deu lugar ao de poder
A disputa presidencial se resumiu em um verbo predominante na campanha: desconstruir. Em 12 anos de governo, o PT construiu, sim, um Brasil melhor, com índices sociais “nunca vistos antes na história deste país”. Porém, como partido, houve progressiva desconstrução.
A história do PT tem seu resumo emblemático na fábula “A cigarra e a formiga”, de Ésopo, popularizada por La Fontaine. Nas décadas de 80 e 90, o partido se fortaleceu com filiados e militantes trabalhando como formigas na base social, obtendo expressiva capilaridade nacional graças às Comunidades Eclesiais de Base, ao sindicalismo, aos movimentos sociais, respaldados por remanescentes da esquerda antiditadura e intelectuais renomados.
No fundo dos quintais, havia núcleos de base. Incutia-se na militância formação política, princípios ideológicos e metas programáticas. O PT se destacava como o partido da ética, dos pobres e da opção pelo socialismo.
À medida que alcançou funções de poder, o PT deixou de valorizar o trabalho da formiga e passou a entoar o canto presunçoso da cigarra. O projeto de Brasil cedeu lugar ao projeto de poder. O caixa do partido, antes abastecido por militantes, “profissionalizou-se”. Os núcleos de base desapareceram. E os princípios éticos foram maculados pela minoria de líderes envolvidos em maracutaias.
Agora, a cigarra está assustada. Seu canto já não é afinado nem ecoa com tanta credibilidade. Decresceu o número de sua bancada no Congresso Nacional. A proximidade do inverno é uma ameaça.
Mas onde está a formiga com suas provisões? Em 12 anos, os êxitos de políticas sociais e diplomacia independente não foram consolidados pela proposta originária do PT: “Organizar a classe trabalhadora” e os excluídos.
Os avanços socioeconômicos coincidiram com o retrocesso político. Em 12 anos de governo, o PT despolitizou a nação. Preferiu assegurar governabilidade com alianças partidárias, muitas delas espúrias, em vez de estreitar laços com seu esteio de origem, os movimentos sociais.
Tomara que Dilma cumpra sua promessa de campanha de avançar nesse quesito, sobretudo no que diz respeito ao diálogo permanente com a juventude, os sem-terra e os sem-teto, os povos indígenas e os quilombolas.
O PT até agora robusteceu o mercado financeiro e deu passos tímidos na reforma agrária. Agradou as empreiteiras e pouco fez pelos atingidos por barragens. Respaldou o agronegócio e aprovou um Código Florestal aplaudido por quem desmata e agride o meio ambiente.
É injusto e ingênuo pôr a culpa da apertada e sofrida vitória do PT nas eleições de 2014 no desempenho de Dilma.
Se o PT pretende se refundar, terá que abandonar a postura altiva de cigarra e voltar a pisar no chão duro do povo brasileiro, esse imenso formigueiro que, hoje, tem mais acesso a bens materiais, como carro e telefone celular, mas nem tanto a bens espirituais: consciência crítica, organização política e compromisso com a conquista de “outros mundos possíveis”.
CARLOS ALBERTO LIBANIO CHRISTO, 70, o Frei Betto, é assessor de movimentos sociais e escritor. É autor de “A Mosca Azul – Reflexão sobre o Poder” (Rocco), entre outros livros
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