(versão ampliada do texto publicado pela revista eletrônica
Teoria e Debate)
Entre os
dias 29 de julho e 4 de agosto de 2013, a capital paulistana recebeu o XIX
Encontro do Foro de São Paulo, para debater como aprofundar as mudanças e como
acelerar a integração regional na região latino-americana e caribenha. Antes, o
Brasil já recebera o Foro em três outras ocasiões: 1990, 1997 e 2005.
O XIX
Encontro foi organizado por partidos brasileiros que integram o Foro de São
Paulo: o Partido dos Trabalhadores, o PC do B, o PSB, o PDT, o PPL e o PCB.
Formalmente,
o PPS também é integrante do Foro de São Paulo, mas o último Encontro de que
participou foi em 2010, em Buenos Aires.
Vale dizer,
também, que o PCB divulgou um documento, assinado por seu Comitê Central,
acusando o Foro de estar hegemonizado pelo reformismo. Quanto ao PSB e ao PDT,
participaram com baixo perfil das atividades. Quem mais se empenhou, na
organização e/ou na mobilização, foram o PT, o PCdoB e o PPL.
O XIX Encontro
do Foro foi o primeiro realizado depois da morte do presidente venezuelano Hugo
Chávez e da eleição de seu sucessor, Nicolas Maduro. Dois episódios que
deixaram claro, para os que resistiam a perceber e reconhecer, que estamos em
uma nova etapa política na região, marcada principalmente pela contra-ofensiva
da direita local, apoiada por seus aliados nos Estados Unidos e Europa.
Para
derrotar esta contra-ofensiva da direita, não bastam medidas táticas: é
necessário, também, um salto de qualidade no processo de mudanças em cada país
e também no processo de integração regional.
Isto se faz
necessário e urgente porque, além da contra-ofensiva da direita, vivemos também
o esgotamento do "padrão" que caracterizou a primeira etapa do ciclo
progressista e de esquerda.
Esta
primeira etapa se estendeu das eleições de Chávez e de Lula (1998-2002), até a
eclosão da crise internacional e a posse de Obama (2008).
A partir de
então, entramos em outra etapa, na qual estamos hoje, marcada exatamente pela
combinação entre a crise internacional, a contra-ofensiva da direita e o esgotamento
daquele “padrão", que basicamente consiste em redirecionar também para os
setores populares a renda e a riqueza geradas em nossas sociedades.
Este
redirecionamento foi possível de fazer, por algum tempo e com algum nível de
êxito, como demonstra a comparação entre os indicadores desta etapa vis a vis o
período neoliberal antecedente, em qualquer dos países governados pelas forças
progressistas e de esquerda.
Ocorre que a
organização política, social e econômica capitalista hegemônica em nossa região
não permite --especialmente num contexto de crise internacional-- a ampliação
continuada da igualdade, da democracia, da soberania e da integração regional.
É por isto
que, à medida que o tempo passa, tende a diminuir o ritmo e a qualidade das “mudanças”,
reafirmando-se as determinantes do status quo: a dependência, a democracia
restrita e a desigualdade. A crise internacional não causou, mas certamente
acelerou esta tendência ao esgotamento do padrão.
Por isto,
falar em continuar as mudanças exige mudança de padrão. É isto que nos leva a falar
da necessidade urgente de realizar reformas estruturais em nossas sociedades,
que nos permitam ampliar qualitativa e rapidamente a produtividade social, o
bem-estar, a democracia política e a integração regional. E a
“sustentabilidade” destas reformas estruturais depende, em boa medida, da
integração regional.
Destaco que
a necessidade de mudança de padrão também se aplica para países como a
Venezuela, altamente dependente da produção e comercialização do petróleo, o
que é insuficiente frente às necessidades econômicas, sociais, políticas e
militares da República Bolivariana.
O XIX
Encontrou ocorreu logo depois da visita do Papa Francisco ao Brasil. Os
governantes da região comemoraram um papa de nacionalidade argentina. E setores
da esquerda regional chegam a alimentar expectativas positivas, o que é
compreensível se lembrarmos do Papa anterior.
Mas há,
também, setores muito preocupados, por três motivos: primeiro, devido ao papel
da Igreja católica durante a ditadura militar argentina; segundo, devido ao papel
jogado por outro Papa no combate ao socialismo, tal como existia no Leste
Europeu; terceiro, devido à crescente influência dos conservadores no interior
da igreja católica.
Reforçando
estes motivos de preocupação, recordo o papel da Democracia Cristã no
pós-Segunda Guerra, para neutralizar e combater a esquerda socialdemocrata e
comunista em vários países europeus.
Durante o
XIX Encontro, também foi muito discutido o processo de mobilização social
ocorrido no Brasil no mês de junho, seus impactos presentes e futuros.
Havia uma
grande curiosidade a respeito, especialmente por parte daqueles que ainda analisam
a política regional em termos de "duas esquerdas". Vale dizer que um
dos ensinamentos que se pode extrair das mobilizações de junho é que a direita
brasileira, como a venezuelana, disputa a mídia, as urnas e agora também as
ruas conosco. E que as esquerdas, apesar das diferenças existentes entre os
vários países da região, enfrentam alguns dilemas muito semelhantes.
Sobre a
integração regional, ficou claro mais uma vez tratar-se de um processo em
disputa.
Primeiro,
disputa contra o imperialismo, que deseja uma integração subalterna às
metrópoles, como no projeto da Alca.
Segundo,
disputa contra a grande burguesia, que deseja uma integração focada nos
mercados e no lucro de curto prazo, o que levaria a uma integração que
aprofundaria as disparidades regionais e sociais, o que por sua vez acabaria
nos levando a uma integração subalterna aos gringos.
Terceiro, existe
ainda a disputa, no campo progressista e de esquerda, entre diferentes ritmos e
vias de desenvolvimento e integração. Um de nossos desafios é, precisamente,
evitar que estas diferenças convertam-se em antagonismos --o que até agora
temos conseguido.
A integração
é, portanto, um processo “a quente”, no curso do qual a esquerda precisa operar,
simultaneamente, no plano político, econômico e cultural. Para isto, os governos
são fundamentais, mas insuficientes. Os partidos, assim como os movimentos
sociais e o mundo da cultura são essenciais.
Outro dos
desafios da integração, para além daqueles provocados pelo imperialismo
estadounidense e europeu, pelos governos de direita e pelas burguesias locais,
é a relação com a China, especialmente neste momento de inflexão em direção ao
seu mercado interno.
Esta inflexão pode ter vários efeitos
colaterais, entre os quais nos fazer voltar ao "estado normal" de
economias dependentes, vítimas de desigualdade crescente nos termos de troca
entre produtos de baixo e de alto valor agregado. Risco ao qual devemos
responder, não reforçando o reclamo anti-China estimulado pelas “viúvas” dos
EUA, mas sim optando para valer por um ciclo de desenvolvimento econômico interno
e regional, impulsionado pelo Estado e baseado na ampliação de infraestruturas,
políticas universais e capacidade de consumo, caminho para o que já foi dito
antes: a ampliação qualitativa, rápida e “sustentável” da produtividade social,
do bem-estar, da democracia política e da integração regional.
Observando
de conjunto a situação, constata-se um acirramento da luta de classes na
região, um acirramento no conflito entre alguns países da região, bem como um
acirramento de nossa relação com as potências imperialistas.
O que foi
descrito até agora tem como pano de fundo o deslocamento do centro geopolítico
do mundo, do Ocidente em direção ao Oriente; o declínio da hegemonia dos
Estados Unidos; e a crise internacional do capitalismo.
Trata-se de
processos em curso, de desfecho incerto e que ainda podem ser revertidos em
favor das classes sociais e dos Estados que hegemonizaram o mundo no período
neoliberal.
Independente
do desfecho, as três variáveis citadas criam um ambiente de instabilidade e
crises, sociais, políticas e militares. O que conduz à formação de blocos
regionais, inclusive enquanto instrumentos de proteção.
Este é,
precisamente, o divisor de águas no continente americano: o conflito entre dois
grandes projetos de integração regional. Por um lado o projeto de integração
subordinada aos Estados Unidos, simbolizado pela Alca (Área de Livre Comércio
das Américas); por outro lado, o projeto de integração autônoma, simbolizado
pela Celac (Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos).
O projeto de
integração autônomo não é, em si, socialista. Mas a integração é uma condição
fundamental para o sucesso econômico e político de uma transição socialista.
A integração
permite limitar as ações que o imperialismo e as classes dominantes de cada
país promovem, de maneira permanente, contra a esquerda latino-americana.
A
integração, por outro lado, cria a “economia de escala” e a “sinergia”
indispensáveis para superar as limitações materiais, produtivas, econômicas,
que dificultam a transição socialista em cada país da região.
Desde 1998,
as forças favoráveis à uma integração autônoma da região conquistaram eleições
em importantes países da região. Mas a partir de 2008, como já dissemos, começou
uma contra-ofensiva das forças favoráveis à integração subordinada aos Estados
Unidos.
Hoje vivemos
uma situação de “equilíbrio relativo” entre os dois projetos de integração
(autônoma e subordinada).
Politicamente,
uma situação de equilíbrio relativo pode ser favorável às forças da esquerda.
Mas historicamente, uma situação de equilíbrio relativo tende a favorecer as
forças que representam o status quo, pois o equilíbrio significa a continuidade
da ordem hegemônica, que em nosso caso ainda é capitalista, dependente e
neoliberal.
Neste sentido,
é fundamental buscar caminhos para seguir avançando.
É para isto
que apontam as resoluções do XIX Encontro, quando falam em aprofundar as
mudanças e acelerar a integração; ou quando falamos em buscar vitórias no ciclo
eleitoral que começa em novembro de 2013 (Chile e Honduras) e prossegue até
dezembro de 2014 (Bolívia); ou, ainda, quando falamos de fortalecer as lutas
sociais, os partidos de esquerda e os governos progressistas da região.
Entretanto,
para seguir avançando há que derrotar obstáculos poderosos. Vários deles foram
objeto de discussão e deliberação pelo XIX Encontro, cujas resoluções,
Declaração Final e Documento base devem ser estudados com atenção.
Mas há um
obstáculo que não foi adequadamente debatido, a saber, nosso déficit teórico em
pelo menos três grandes temas: o balanço das tentativas de construção do
socialismo no século XX; a análise do capitalismo no século XXI; e a estratégia
socialista, na América Latina de hoje.
Quando
falamos em déficit teórico, nos referimos simultaneamente à necessidade de
superar interpretações equivocadas e à necessidade de construir interpretações
novas, que sirvam como núcleo central de uma cultura socialista de massas para
este século XXI.
O imaginário
da esquerda latino-americana é ainda fortemente influenciado por paradigmas que
certamente contribuíram muito para que chegássemos até aqui; mas que, ao mesmo
tempo, criam algumas dificuldades quando se trata de enfrentar os desafios
presentes e futuros.
Ainda é
muito forte, entre nós, a influência de paradigmas oriundos do idealismo
religioso, seja na versão cristã, seja na versão “pachamamica”. Influências que
levam alguns a confundir marxismo com “machismo”, como se a certamente
indispensável dose de “sacrifício” e “valentia” fosse suficiente para superar
qualquer obstáculo.
Outras
fortes influências são o movimentismo, por um lado, e por outro lado o
paradigma revolucionário representado pela heroica Cuba de 1953-1959, em boa
medida representada na figura do Che.
Finalmente, há
uma fortíssima influência tanto do nacional-desenvolvimentismo (base para
defesa de “alianças estratégicas” com setores da burguesia), quanto do
socialismo de Estado (fonte de muitas das dificuldades para entender o papel do
mercado na transição socialista).
A formação
de uma cultura socialista de massas, bem como a construção de um programa e de uma
estratégia adequados ao período histórico que vivemos, exigirá superar (no
sentido dialético do termo, o que implica também em preservar num patamar
distinto) estas influências.
Nesta tarefa
de superação, será muito útil estudar duas experiências históricas e o debate
travado a partir delas: o cercano Chile da Unidade Popular
(1970-1973) e a lejana China das reformas (1978-2013).
Afinal, na
América Latina e Caribe de hoje vivemos, no fundamental, experiências nas quais
não se tomou o poder revolucionariamente; onde se está tentando construindo um
novo poder através de uma complexa guerra de posições; onde é fundamental
impulsionar o desenvolvimento produtivo; mas onde também é fundamental definir a
natureza deste desenvolvimento e qual o papel que o capitalismo pode e deve
jogar nele.
Especificamente
no caso do Chile, o aniversário dos 40 anos do golpe de Estado será uma
oportunidade ímpar para discutir os caminhos para a construção do “poder
popular” e da “área de propriedade social”, propostas pela Unidade Popular e que
constituem temas atuais para as esquerdas agrupadas no Foro de São Paulo.
Valter Pomar
é membro do Diretório Nacional do PT e secretário-executivo do Foro de São
Paulo
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