segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Os efeitos da queda do “Muro de Berlim” no Brasil

Este texto foi escrito como parte de uma coletânea que está sendo organizada para publicação pela FES-ILDIS e pela Universidad Andina Simón Bolívar-Ecuador.

Valter Pomar é doutor em história e professor de economia política internacional na Universidade Federal do ABC (São Paulo, Brasil). Militante do Partido dos Trabalhadores. Integrou entre 1997 e 2013 a Comissão Executiva Nacional do PT. Foi secretário de relações internacionais do PT e secretário executivo do Foro de São Paulo. Correio eletrônico: pomar.valter@gmail.com

No dia 9 de novembro de 1989, a esquerda brasileira estava totalmente concentrada nas eleições presidenciais, cujo primeiro turno aconteceria no dia 15 daquele mesmo mês e ano.
No Brasil, a eleição presidencial direta anterior havia ocorrido no dia 3 de outubro de 1960. Naquele ano, três candidatos disputaram o cargo: 1) Jânio Quadros, lançado por pequenos partidos e apoiado pela União Democrática Nacional, principal partido da direita brasileira; 2) Marechal Lott, lançado pelo Partido Social Democrático, de centro-direita e apoiado pelo Partido Trabalhista Brasileiro e pelo Partido Comunista; 3) Adhemar de Barros, do Partido Social Progressista, também de centro-direita.
Jânio Quadros venceu as eleições com 5.636.623 votos (48,27%). Marechal Lott recebeu 3.846.825 votos (32,93%). Adhemar de Barros alcançou 2.195.709 votos (19,56%). O total de votantes, incluindo quem votou em branco ou anulou, foi de 12.586.354, menos de 1/5 da população total do Brasil em 1960, estimada em 70.992.343 pessoas.
A legislação eleitoral brasileira vigente naquela época permitia que presidente e vice-presidente fossem eleitos separadamente. Por este motivo, o vice-presidente eleito em 3 de outubro de 1960 foi João Goulart, que concorrera na chapa encabeçada pelo Marechal Lott.
Jânio Quadros e João Goulart tomaram posse no dia 31 de janeiro de 1961. Poucos meses depois, em 25 de agosto de 1961 Jânio Quadros renunciou à presidência, com motivações que até hoje provocam polêmica entre os historiadores e cientistas políticos.
A direita política e militar buscou impedir a posse do vice-presidente João Goulart, que no momento da renúncia encontrava-se em visita oficial à República Popular da China. A esquerda desencadeou uma “campanha pela legalidade” para garantir a posse de João Goulart na presidência.
Regressando da China, no dia 1 de setembro Goulart já chegara ao Brasil. As forças de direita e João Goulart chegaram então a um acordo: ele tomaria posse na presidência da República, mas quem governaria seria um primeiro-ministro.
No dia 2 de setembro de 1961 o Congresso aprovou uma lei convertendo o Brasil ao parlamentarismo.  Entretanto, no dia 6 de janeiro de 1963 um plebiscito popular reintroduziu o presidencialismo. Vários sinais indicavam que a esquerda venceria as eleições presidenciais marcadas para o ano de 1965. Os setores de direita reagiram preventivamente com o golpe militar de 1 de abril de 1964.
A ditadura militar acabou com as eleições diretas para presidente da República, estabelecendo que a escolha do primeiro mandatário do país se faria de forma indireta, através de um “Colégio Eleitoral” cuja composição seria determinada pela legislação.
Durante a ditadura ocorreram várias eleições presidenciais indiretas, a última das quais em 15 de janeiro de 1985. Esta aconteceu logo após uma campanha por eleições diretas, que foi um sucesso de mobilização popular, mas que fracassou em obter os 2/3 de votos necessários no Congresso para reestabelecer o direito do povo escolher diretamente o presidente da República.
Após a derrota da campanha pelas Diretas Já, a oposição à ditadura dividiu-se: a maior parte decidiu participar das eleições indiretas para presidência da República, marcadas para 15 de janeiro de 1985. Um pequeno setor da oposição, encabeçado pelo Partido dos Trabalhadores (criado em 1980 e então com cinco anos de idade), recusou participar da eleição indireta e determinou a seus oito deputados federais que não comparecessem ao Colégio Eleitoral. Naquela época, todos os deputados federais eleitos em 1982 faziam parte do Colégio Eleitoral que escolheria o presidente da República.
A disputa no Colégio Eleitoral opôs duas candidaturas: 1) Paulo Maluf, um notório corrupto e aliado dos militares, lançado pelo Partido Democrático Social (PDS), partido que dava sustentação parlamentar à ditadura; 2) Tancredo Neves, quadro histórico do liberalismo brasileiro, ex-ministro da Justiça de Getúlio Vargas em 1954, arquiteto da solução parlamentarista em 1961. Tancredo foi lançado candidato pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), de oposição à ditadura.
Tancredo Neves venceu a disputa no Colégio Eleitoral mas nunca exerceu a presidência: morreu antes de tomar posse, devido a complicações originadas de uma diverticulite (inflamação no intestino).
Quem assumiu a presidência da República foi seu companheiro de chapa, o vice-presidente eleito José Sarney. Sarney era um recém-convertido à oposição depois de duas décadas servindo à ditadura militar, inclusive como presidente nacional do PDS até pouco antes das eleições indiretas.
Em 1986, no ano posterior às eleições indiretas, ocorreram eleições para o Congresso Constituinte. A proposta de convocar uma Assembleia Constituinte livre e soberana fora recusada pela oposição liberal e pelos militares. As forças de centro-direita alcançaram ampla maioria dentre os parlamentares eleitos.
O Congresso Constituinte (1987-1988) decidiu adiar as eleições presidenciais inicialmente previstas (pela legislação da ditadura) para o ano de 1988. O primeiro turno da eleição presidencial foi convocado para o dia 15 de novembro (em que se comemora a proclamação da República no Brasil) e o segundo turno previsto para o dia 17 de dezembro de 1989.
Para a maior parte do eleitorado brasileiro, a eleição presidencial de 1989 foi sua primeira oportunidade de escolher o presidente da República.
Todas as forças políticas do país lançaram candidato à presidência. O primeiro turno das eleições foi disputado por 22 candidatos, dos quais 18 eram patrocinados por um único partido, sem qualquer tipo de coligação.
Destas candidaturas, no máximo cinco defendiam posições que podemos classificar como de esquerda. Estamos falando de Luís Inácio Lula da Silva (apoiado pelo Partido dos Trabalhadores, pelo Partido Socialista Brasileiro e pelo Partido Comunista do Brasil), Leonel Brizola (apoiado pelo Partido Democrático Trabalhista, filiado a Internacional Socialista), Roberto Freire (do Partido Comunista Brasileiro), Fernando Gabeira (do Partido Verde) e Celso Brant (do Partido da Mobilização Nacional).
O segundo turno da eleição presidencial de 1989 foi disputado entre Collor e Lula. Pela primeira vez na história do Brasil, um operário militante de um partido socialista chegou às portas da presidência da República. Mas foi Fernando Collor de Mello, um playboy apoiado pelo establishment, quem ganhou as eleições, ainda que por relativamente pouco: 35 milhões (53,03%) contra 31 milhões de votos (46,97%).
Importante registrar que mais da metade da população brasileira teve direito a participar do processo eleitoral: 82.074.718 eleitores numa população total pouco inferior a 143 milhões.
O governo de Collor foi breve -- em 1992 o Congresso votou seu impeachment por corrupção --, mas a ele coube o lamentável papel de inaugurar oficialmente o neoliberalismo no Brasil. Em 2002, três eleições presidenciais depois, Lula seria eleito presidente da República.
Repassar estes acontecimentos serve para ilustrar por quais motivos a atenção da esquerda brasileira no dia 9 de novembro de 1989 estava concentrada na disputa presidencial.
Qualquer que tenha sido o impacto da “queda do Muro de Berlim” na política brasileira, este impacto esteve muito longe de ser determinante no desempenho surpreendente da candidatura de Lula ou na vitória de Collor.
Em certa medida isto é óbvio: a débâcle do socialismo de tipo soviético ocorreu entre 9 de novembro de 1989 (queda do Muro de Berlim) e 25 de dezembro de 1991 (fim da URSS). Por isto, seu impacto na esquerda brasileira foi mais forte ao longo da década dos 1990.
Além disto, há outro fator a ser considerado: nos anos 1980 a esquerda brasileira exalava otimismo. Embora a ditadura não tenha sido derrubada, ela foi derrotada. E isto aconteceu em grande medida graças a um processo de mobilização social, cujo epicentro foi a mobilização do operariado industrial.
Com isso, a década dos 1980 no Brasil teve uma dupla face: foram anos de profunda crise econômica e social, mas também foram anos de ascensão política e ideológica das classes trabalhadores, das organizações populares e dos partidos de esquerda.
Para citar alguns fatos: em 1979 é reorganizada a União Nacional dos Estudantes, em 1980 é criado o Partido dos Trabalhadores, em 1983 é fundada a Central Única dos Trabalhadores, em 1986 teve início o Movimento Sem Terra, em 1987 o Partido Comunista Brasileiro e o Partido Comunista do Brasil já estão atuando na legalidade, em 1988 a esquerda elegeu prefeitos em cidades que reúnem 1/3 do produto interno bruto nacional e grande parte da população. Em 1989, Lula disputou o segundo turno presidencial e chegou “quase lá”.
O otimismo da esquerda brasileira nos anos 1980 ajuda a entender porque os acontecimentos na URSS e no Leste Europeu foram encarados, por grande parte da esquerda brasileira, como parte de um movimento de renovação do socialismo.
Aliás, quem ousasse dizer o contrário corria o risco de ser acusado de saudosismo, de nostalgia pouco autocrítica ou simplesmente anatemizado como “stalinista”, “palavrão” (xingamento) que se usava com abundância proporcional à falta de reflexão acerca do significado do termo.
O otimismo da esquerda brasileira resistiu à derrota de 1989 e esteve presente pelo menos até as eleições presidenciais de 1994, quando Lula foi derrotado ainda no primeiro turno pelo social-democrata Fernando Henrique Cardoso.
Só então ficou clara, para grande parte da esquerda brasileira, a força do capitalismo neoliberal e o grau de hegemonia alcançado pelos Estados Unidos depois da “queda do Muro”.
Frente a esta correlação de forças, a esquerda brasileira dividiu-se: 1) uma parte defendia manter a estratégia adotada pela esquerda nos anos 1980; 2) outra parte defendia atualizar aquela estratégia às novas condições; 3) um terceiro setor defendia mudar de estratégia para aproximar-se das posições que na Europa e na América Latina eram conhecidas como “centro-esquerda”.
Nos anos 1990, portanto, o debate travado na esquerda brasileira foi fortemente influenciado pelo balanço acerca da “queda do Muro”.
Em síntese, podemos dizer que a crise do socialismo de tipo soviético estimulou fortes mudanças no pensamento político e ideológico da maior parte da esquerda brasileira.
Algumas destas mudanças já vinham se acumulando de antes, como resultado de uma análise que se fazia desde os anos 1950 acerca dos limites do socialismo soviético e da estratégia proposta pelos partidos comunistas. 
Não foram mudanças uniformes, até porque a esquerda brasileira não é nem nunca foi homogênea, representando diferentes setores sociais e expressando diferentes visões político-ideológicas.
Qual foi o sentido predominante das mudanças no pensamento da esquerda brasileira, sob o efeito da crise do socialismo de tipo soviético?
Resumimos nos parágrafos a seguir as mudanças que nos parecem predominantes e fundamentais, ou seja, aquelas mudanças que afetaram a maior parte da esquerda e que determinaram a partir de que postura esta esquerda atuou num cenário marcado pelo deslocamento da correlação de forças em favor do Capital e do imperialismo.
Cresceu o questionamento acerca do papel protagonista da classe trabalhadora e, de maneira mais ampla, acerca do papel das classes e da luta de classes no funcionamento e na transformação da sociedade brasileira.
Cresceu também o questionamento acerca do papel dos sindicatos e dos partidos políticos, bem como do significado mesmo da “esquerda” e da “vanguarda”.
Houve uma progressiva substituição do socialismo pelo desenvolvimento como ideia estruturante do pensamento de grande parte da esquerda brasileira.
O que nos anos 1930 a 1980 era uma subordinação política – com setores da esquerda socialista e comunista apoiando os setores democráticos burgueses na luta contra os setores conservadores -- converteu-se pouco a pouco numa subordinação teórica e ideológica: setores da esquerda adotando como seu programa máximo o capitalismo.
Derivado disto, a “revolução política e social” e as “reformas estruturais” foram sendo deixadas de lado em favor da promoção de políticas públicas a serem implantadas por governos eleitos nos marcos de democracias eleitorais.
As grandes interpretações e narrativas típicas da tradição marxista foram sendo progressivamente substituídas, ou por visões tradicionalmente vinculadas a tradição liberal-democrática e a conservadora, ou por discursos fragmentários cuja matriz de fundo era um irracionalismo intelectual de tipo religioso.
Algumas destas mudanças deitam suas raízes nos anos 1950 e 1960. Outras nos anos 1970-1980, de luta contra a ditadura militar e contra a “transição conservadora para a democracia”. Várias ganharam ímpeto no período 1990-2002, marcado pela oposição da esquerda aos governos neoliberais. Todas repercutem ainda hoje, no período 2003-2015, quando parte da esquerda brasileira participa do governo do país.
Tais mudanças ideológicas devem ser vistas no contexto de um processo mais amplo, que alterou as condições objetivas e subjetivas em que vive e atua tanto a classe trabalhadora quanto a militância de esquerda.
Entre estas alterações, destacam-se: 1) a destruição e fragmentação do parque produtivo e a consequente redução, dispersão e fragmentação da classe trabalhadora assalariada, seja de sua fração industrial, seja de seus setores comerciais e de serviços; 2) a constituição de uma imensa massa humana que não encontra opções para vender sua força de trabalho, sendo muitas vezes obrigada a sobreviver de expedientes miseráveis e antissociais; 3) a cooptação de parcelas melhor remuneradas da classe trabalhadora, inclusive de amplos setores da intelectualidade profissional (professores, comunicadores, artistas) pelo modo de vida e pensamento neoliberal; 4) a renovação geracional da classe trabalhadora, num contexto de enfraquecimento da consciência e da solidariedade de classe; 5) e, ironicamente, a normalização da vida política do país, com eleições regulares de dois em dois anos, abrindo passo para americanizar as eleições brasileiras e domesticar paulatinamente parte das esquerdas.
Olhando em perspectiva histórica, o efeito global destas mudanças no pensamento político e ideológico da maior parte da esquerda brasileira teve um efeito paradoxal.
Por um lado, a flexibilização sem traição permitiu à esquerda brasileira vergar como junco, sem quebrar, conseguindo manter uma força social e institucional nos anos 1990 e ganhar a presidência da República em 2002.
Por outro lado, esta mesma flexibilização sem traição reduziu a capacidade da esquerda brasileira liderar transformações mais profundas na sociedade.
Pois as tais mudanças corresponderam a uma ampliação da hegemonia burguesa, tanto na classe trabalhadora quanto em vastos setores da esquerda, que incorporaram horizontes programáticos, paradigmas explicativos, prioridades políticas, métodos de financiamento, padrões de funcionamento e estilos de democracia interna típicos dos chamados partidos tradicionais.
Como exemplo, podemos citar: 1) a crescente moderação programática do Partido dos Trabalhadores, principal força política da esquerda brasileira; 2) as concessões que os governos democráticos e populares fazem a aspectos importantes do receituário neoliberal; 3) o paulatino distanciamento entre a esquerda eleitoral e os setores mais radicalizados do movimento social; 4) a incapacidade de estabilizar uma intelectualidade orgânica ou, noutros termos, de criar um pensamento capaz de servir de guia para a ação da classe trabalhadora brasileira em sua luta contra o capitalismo e pelo socialismo.
Não existe uma única esquerda no Brasil, mas o que predomina é um imenso déficit teórico, programático e estratégico.
Até mesmo os setores hegemônicos no Partido dos Trabalhadores reconhecem a pobreza crescente das interpretações que fazemos acerca do Brasil. O mesmo pode ser dito, embora em menor medida, acerca do que pensamos da região e do mundo.
Como o PT é parcela expressiva da esquerda brasileira, impactando fortemente os demais setores da esquerda, a resultante é a já apontada: um imenso déficit teórico, programático e estratégico.
É tentador, mas seria equivocado, atribuir a causa principal deste déficit aos efeitos colaterais da “queda do Muro”.
Para simplificar o argumento, a existência de um forte campo socialista (em algum momento entre 1945 e 1991) não necessariamente contribuiu para a esquerda brasileira construir uma interpretação adequada acerca da sociedade brasileira. Mutatis mutandis, a crise do socialismo soviético não pode ser vista como a variável fundamental. Noutras palavras, não cabe importar modelos nem exportar responsabilidades.
Feita esta ressalva, é correto dizer que para superar o atual déficit teórico, programático e estratégico, os setores hegemônicos da esquerda brasileira terão que fazer um novo balanço da crise do socialismo; terão que reafirmar a centralidade da luta de classes e o papel protagonista da classe trabalhadora; terão que valorizar novamente o papel dos sindicatos, dos partidos políticos, das esquerdas e das vanguardas; terão que retomar o socialismo como ideia bússola; terão que combinar novamente políticas públicas, reformas estruturais e revolução política e social, vinculando participação nas democracias eleitorais com disposição de ir muito além dos limites deste tipo de democracia. E, finalmente, para superar o atual déficit teórico, programático e estratégico, os setores hegemônicos da esquerda brasileira terão que retomar as grandes interpretações e narrativas típicas da tradição marxista.
Não se confunda nada disto com a defesa das estratégias, dos programas e das teorias que caracterizavam o chamado socialismo soviético.
Podemos e devemos debater que contribuição tais estratégias, programas e teorias deram à luta pelo socialismo entre 1917 e 1991.
Mas se entendemos realmente a teoria como guia para a ação, então nosso desafio atual é fazer análise concreta da situação concreta, produzindo uma teoria, um programa e uma estratégia que sejam adequadas ao período atual. Tarefa na qual terão pouca utilidade tanto os idólatras quanto os apóstatas do socialismo de tipo soviético.
Hoje, um balanço da “queda do Muro” deve forçosamente constatar que a débâcle do socialismo de tipo soviético abriu um período de defensiva estratégica para as forças anticapitalistas. Inclusive para aquelas que nunca compartilharam o socialismo de tipo soviético ou que dele distanciaram-se em algum momento (como é o caso do Partido Comunista da China).
Desde 1991, o capitalismo tornou-se mais hegemônico do que nunca. E como não podia deixar de ser, empurrou o mundo para uma crise de vastas proporções, como vimos a partir de 2007-2008. Crise que é acompanhada pelo declínio relativo da hegemonia dos Estados Unidos e pela ascensão de outros polos de poder em escala mundial.
Um quarto de século depois da “queda do Muro” e do fim da URSS, o cenário mundial é de instabilidade, crise, guerras, revoltas e busca de alternativas. Revoluções como as de 1917 e de 1949, por enquanto ainda não.
Vista por quem mantém compromissos com o socialismo, o “breve século XX” (1917-1991) recorda Sísifo, condenado a empurrar uma pedra morro acima, para vê-la desabar mais adiante e ter que recomeçar novamente, eternamente.
Esta imagem diz respeito, como é óbvio, apenas aos que continuam tentando dar bases teóricas e viabilizar praticamente o socialismo, neste início do terceiro milênio. Mas não afeta, ou não atinge com a mesma força, aqueles setores da esquerda que acreditam no socialismo como agente civilizatório do capitalismo.
Estes parecem se contentar com o fato da história dos últimos 150 anos ter confirmado que tudo aquilo que a sociedade capitalista moderna possui de “civilizada”, o possui graças ao esforço e ao sacrifício do movimento socialista e da classe trabalhadora.
Do ângulo destes setores da esquerda, o socialismo é encarado como uma “etapa superior” do movimento democrático, liberal e progressista iniciado pela burguesia contra a sociedade feudal. Deste mesmo ângulo, episódios mais “desagradáveis” da história do movimento socialista podem ser apresentados exatamente como “desvios” resultantes da vã tentativa de superar o capitalismo. Para os partidários deste ângulo de visão, ao se tornar radicalmente anticapitalista, o socialismo abandona seus propósitos reformistas e humanitários e converte-se em “totalitarismo”. Ou seja: adulterando a famosa frase de Marx, para esta esquerda o limite do “socialismo” que defendem é o próprio capitalismo.
Já para aqueles setores da esquerda que defendem superar o modo de produção capitalista, a história oferece muitas interrogações.
É verdade que o capitalismo se confirmou como profundamente contraditório, sofrendo crises cíclicas e cada vez mais devastadoras. Ocorre que só muito raramente tais crises desdobraram-se em processos revolucionários.
Desde as referências de Marx ao espectro do comunismo (1847-1848), até as notícias da ofensiva final da esquerda salvadorenha (1988-1989), a história da esquerda tem sido marcada por muitas “revoluções que faltaram ao encontro”.
Além disso, apenas uma parte dos processos revolucionários resultou na vitória de forças ligadas ao movimento socialista e na constituição de governos estáveis pós-revolucionários. Mais relevante ainda: não há até hoje caso de revolução socialista triunfante em nenhum dos países capitalistas mais avançados. O que significa dizer que a transição socialista foi empurrada para começar exatamente onde o capitalismo desenvolveu-se tardiamente, obrigando as forças socialistas a empenhar enormes esforços no desenvolvimento das forças produtivas.
Durante muito tempo, estes problemas foram fartamente compensados, no imaginário do movimento socialista revolucionário, pelo impacto mundial de revoluções vitoriosas (com destaque para Rússia, China, Cuba e Vietnã); pela importância geopolítica dos países cujos governos surgiram dessas revoluções; bem como pelos efeitos que a existência de um “campo socialista” produziu nas condições de luta e vida dos trabalhadores dos países capitalistas “avançados”.
Enquanto o reformismo social-democrata alimentava-se dos progressos “civilizatórios” que a esquerda obtivera sob o capitalismo, o socialismo revolucionário alimentava-se do progresso político e social verificado nas regiões do mundo que (acreditava-se então) a revolução teria definitivamente libertado do capitalismo.
Isto, combinado com os avanços do movimento de libertação nacional e do desenvolvimentismo nos países da periferia capitalista, gerou durante a segunda metade do século XX, a impressão de que, apesar dos problemas, o socialismo avançava.
Impressão reforçada pela crise estrutural do capitalismo, visível a partir de 1970-1975. Num aparente paradoxo, foi exatamente em seguida a esta crise que todos aqueles “progressos” anteriormente citados foram detidos, tendo início um movimento de regressão.
O paradoxo é aparente, pois do que se trata é algo na verdade simples: o socialismo de tipo soviético soube combater e inclusive vencer na luta contra o tipo de capitalismo existente até 1945. Mas não conseguiu combater e terminou derrotado na luta contra o tipo de capitalismo surgido da crise de 1970-1975.
A partir de então, os países libertos da opressão colonial foram novamente subordinados a interesses metropolitanos.  Os países que se industrializaram após a Segunda Guerra Mundial passaram a experimentar a “desindustrialização”. As conquistas obtidas pela classe trabalhadora nos países capitalistas centrais, materializadas no chamado Estado de bem-estar social, foram atacadas e ainda hoje seguem sendo parcialmente anuladas. Durante os anos 1990, o desmanche do socialismo soviético abriu uma nova fronteira de expansão para o capitalismo.
O retrocesso generalizado das posições conquistadas pela esquerda, ao longo do século XX, foi acompanhado por transformações no funcionamento do capitalismo, bem como por transformações nas classes trabalhadoras, tais como a redução do campesinato e a ampliação da proletarização vis a vis a perda de peso relativo do operariado industrial.
Todos estes fenômenos tiveram duríssimos efeitos sobre os partidos de esquerda. No ângulo programático, muitos partidos comunistas derivaram para formulações de tipo social-democrata, centradas na ideia de realizar reformas que melhorem as condições de vida para as maiorias sociais, sem tocar nos fundamentos do capitalismo.
Muitos partidos social-democratas e também comunistas derivaram para formulações de tipo neoliberal, centradas na ideia de que o bom funcionamento da sociedade e, inclusive, a possibilidade de melhoria nas condições de vida das maiorias sociais, depende do livre-funcionamento do capitalismo, que deve ser liberto das regulamentações típicas do welfare state.
Um dos efeitos mais profundos da contra-ofensiva do Capital foi no terreno ideológico e afetou duramente os setores de vanguarda da classe trabalhadora.
No Brasil, toda uma geração de trabalhadores adquiriu sua consciência de classe através das lutas travadas a partir do final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Esta geração evoluiu progressivamente das reivindicações básicas para um programa democrático e popular, que -- consciente ou inconscientemente -- articulava a execução das chamadas tarefas inconclusas da revolução democrático-burguesa, com as tarefas socialistas.
A polarização dominante, no debate travado pelas esquerdas neste período, se dava entre os adeptos de uma estratégia revolucionária e os adeptos de uma estratégia reformista de transformação social. Mas para ambas, o socialismo era o objetivo estratégico.
O resultado das eleições presidenciais de 1989 e 1994 impactou profundamente a esquerda brasileira. O balanço feito por grande parte dos trabalhadores conscientes pode ser resumido em três ideias-chave: 1) nosso caminho para o poder passa pela vitória nas eleições presidenciais; 2) uma vitória nas eleições presidenciais exige moderar o programa e ampliar as alianças; 3) esta moderação é inevitável numa situação mundial de triunfo do capitalismo e desaparecimento do socialismo soviético.
A questão de fundo -- chegar ao governo federal, para fazer exatamente o quê, numa conjuntura que supostamente bloqueava o socialismo -- foi sendo “respondida” ao longo dos anos, através de sucessivas alterações no programa das esquerdas brasileiras.
Estas alterações foram feitas sob o impacto da conjuntura e, também, sob o impacto de uma intensa revisão ideológica. A análise da crise do socialismo foi parte integrante da revisão geral do programa e da ideologia socialista que animavam grande parte da esquerda brasileira até o final dos anos 1980.
Este processo de revisão seguiu seu curso, durante os anos 1990, em várias direções distintas, simultâneas e complementares.
Por exemplo, reafirmar o socialismo, mas como “horizonte”. Abandonar o socialismo enquanto alternativa globalmente superior ao capitalismo, transformando-o em missão civilizatória do próprio capitalismo (ou seja, em “valores” socialistas). Identificar socialismo com democracia, economia de mercado e Estado de bem-estar. Ou seja, com social-democracia.
O enfraquecimento do socialismo como bússola e como alternativa concreta foi acompanhado pela conversão de amplos setores da esquerda, até então influenciados pelo marxismo, às ideias keynesianas e neoliberais.
Como fruto dessas alterações, a polarização dominante no debate da esquerda brasileira nos anos 1990 passou a dar-se entre duas correntes de opinião, ambas reformistas: o reformismo desenvolvimentista e o reformismo social-liberal, com as correntes socialistas (revolucionárias ou reformistas) apoiando as posições expressas pela corrente desenvolvimentista.
Desta polarização surge a base real da lenda segundo a qual haveria identidades entre o Partido dos Trabalhadores e o Partido da Social-Democracia Brasileira. A afinidade realmente existente se limita ao reformismo social-liberal defendido por setores do PT, setores que realmente estavam e seguem estando próximos dos neoliberais do PSDB.
Ao longo dos anos 1990, os setores hegemônicos da esquerda brasileira foram colocando em terceiro plano as tarefas de natureza socialista, mantendo em segundo plano as reformas estruturais de natureza democrático-burguesas, deixando em primeiro plano como objetivo principal “combater o neoliberalismo”, não mais com o objetivo de superar o capitalismo e sim com o objetivo de desenvolver um capitalismo que fosse “progressista”.
Os resultados práticos disto só ficariam claros quando a esquerda venceu as eleições presidenciais de 2002 e passou a governar o país. Por exemplo, a “reforma agrária” realizada durante os governos Lula e Dilma tem uma natureza qualitativamente distinta daquela defendida pela maior parte da esquerda até 1994.
Resumindo o que dissemos até agora: a revisão geral do programa, da estratégia e da ideologia que animavam grande parte da esquerda brasileira até o final dos anos 1980 ocorreu sob o duplo impacto da situação nacional e internacional. E a situação internacional incluía não apenas os efeitos da “queda do Muro” (ou seja, do desmanche do socialismo de tipo soviético), mas também os efeitos da ascensão do neoliberalismo.
Nos anos 1990, quando o ciclo neoliberal dava sinais de esgotamento, vários autores começam a fazer o balanço dos acontecimentos das décadas anteriores de 1970 e 1980, buscando entre outras coisas entender porque as forças de esquerda não tiveram êxito frente às possibilidades abertas pela “grande crise” de 1970-1975. 
No caso da América Latina, este balanço foi muito focado na derrota das tentativas guerrilheiras, bem como na derrota do governo Allende, derrotas geralmente associadas à suposta ou real predominância, na esquerda, de posições e de atitudes “vanguardistas”, “voluntaristas” e “esquerdistas”.
Como desdobramento deste balanço, parte da esquerda passou a realizar uma defesa da democracia como método e/ou como valor universal.
Caberia mais estudo para verificar em qual medida, mas certamente este viés de análise favoreceu um ambiente propício para a recepção de um balanço também enviesado das derrotas sofridas pela esquerda na Europa e nos Estados Unidos, derrotas que tiveram na moderação (e não no esquerdismo) programática e política seu componente fundamental. 
A adesão formalista à “democracia eleitoral” contribuiu para colocar amplos setores da esquerda sob influência ideológica da estratégia democratizante que assumiu grande importância no arsenal utilizado pelas forças capitalistas no ataque às posições socialistas nos anos 1980.
Toda esta mutação intelectual possui uma base objetiva: o enfraquecimento relativo da classe trabalhadora, no Brasil e no mundo, vis a vis o fortalecimento da burguesia.
Sua possível reversão depende no fundamental de uma alteração também objetiva nesta correlação de forças. Mas a construção de outra visão de mundo (um processo “subjetivo”) joga um papel neste processo “objetivo”. E a construção de outra visão de mundo depende, nas condições atuais, não apenas de uma crítica teórica ao desenvolvimento capitalista, acompanhado da formulação de uma alternativa, mas também de uma autocrítica do percurso desenvolvido pela esquerda brasileira no último período.
Podem contribuir positivamente neste processo de autocrítica certas mediações que ajudam a compreender diferenças importantes entre determinadas correntes da esquerda brasileira e seus similares europeus. Como é perceptível, a esquerda moderada brasileira tende a ser mais radical que seus congêneres no Velho Mundo.
Vejamos a seguir algumas destas mediações, que funcionaram como uma espécie de airbag ideológico durante o acidentado período da “queda do Muro” e do fim da URSS.
Uma primeira medição importante é dada pela luta de classes no Brasil. Aqui o neoliberalismo é um visitante tardio, que foi recebido com muita resistência por uma esquerda que possuía relevante influência social e institucional. Nestas condições, o balanço da “queda do Muro” corria paralelo à análise dos efeitos das reformas neoliberais no Leste Europeu. E uma pessoa de esquerda não precisava de muito esforço para perceber que o fortalecimento do capitalismo não resultara em mais democracia, nem ampliara o bem-estar dos que viviam nos antigos países socialistas, o que por sua vez dizia algo sobre o regime social que havia nestes países antes da “queda do Muro”, tornando mais difícil jogar fora a criança junto com a água de banho.
Uma segunda mediação importante é que o principal protagonista das políticas neoliberais no Brasil era o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Embora este partido tivesse pouco que ver com a social-democracia europeia -- cujas raízes estão no movimento socialista do século XIX, sob forte influência do marxismo -- o fato é que importantes próceres do PSDB, como Fernando Henrique Cardoso e José Serra, justificavam alguns de suas opções a partir de uma leitura inspirada nas críticas da “segunda internacional” acerca do que teria ocorrido ao socialismo soviético. O resultado prático foi vacinar parcelas importantes da esquerda e reduzir a influência de algumas posições da Internacional Socialista e similares.
Uma terceira mediação importante diz respeito a Cuba. O governo cubano não foi derrubado e o Partido Comunista conseguiu não apenas manter importante apoio e legitimidade popular, como preservar parte das políticas públicas que até então garantiram ao povo da Ilha um padrão de vida superior a países similares na América Latina. Isto introduzia variáveis importantes no debate sobre a crise do socialismo, evitando a tabula rasa e as generalizações abusivas típicas do anticomunismo vulgar.
Uma quarta mediação é o papel dos Estados Unidos na região, com um histórico imperialista e liberticida, fato que dificultava o trânsito que alguns faziam, de posições dogmáticas em favor do “socialismo real” para posições dogmáticas em favor das “democracias” capitalistas e contra as “ditaduras” socialistas. Grande parte da esquerda brasileira não tinha como não perceber que o fortalecimento dos Estados Unidos e seus aliados, o fortalecimento do capitalismo em sua versão neoliberal, pioravam as condições sociais e políticas da classe trabalhadora em todo o mundo, Brasil inclusive.
Uma quinta mediação é dada pelo fato de, nos anos 1980 e 1990, grande parte da esquerda brasileira não se identificar com o socialismo soviético tout court. Especialmente no PT, mas também noutras organizações, existia uma profusão de correntes críticas (pela direita ou pela esquerda) ao “modelo soviético”. Não importa aqui analisar o mérito destas críticas: o que importa é perceber que esta “diversidade ecológica” é um dos fatores pelos quais a “queda do Muro” não impactou a esquerda brasileira da mesma forma que impactou outras esquerdas, em outras regiões do mundo.
Resta saber se esta e outras mediações ajudarão neste momento, em que se faz necessário e com a mais absoluta urgência alterar a estratégia, o programa, bem como as visões teóricas e ideológicas predominantes na esquerda brasileira desde meados dos anos 1990 até os dias de hoje.
Se a esquerda socialista e a classe trabalhadora brasileira conseguirem fazer esta alteração de linha, no tempo e na direção corretas, o Brasil poderá continuar contribuindo para que algum dia o debate sobre a “queda do Muro” e sobre o fim do socialismo soviético sejam apenas parte da pré-história da humanidade.

25 de maio de 2015

2 comentários: