Este texto é uma contribuição ao documento “Por um
plano de transformação do Brasil: outro mundo é necessário; outro país é
preciso”, elaborado a partir do trabalho desenvolvido pelos Núcleos de
Acompanhamento de Políticas Públicas do Centro de Altos Estudos da Fundação
Perseu Abramo.
Concentramo-nos na primeira parte do documento,
intitulada “MANIFESTO”, deixando para um segundo momento observações sobre as
“MEDIDAS EMERGENCIAIS”. Como se verá, não se trata de emendas de redação, mas
de uma abordagem diferente do que aquela que orienta o “plano de
transformação”, dito “ponto de partida e não ponto de chegada”.
Na nossa visão, vivemos um momento histórico que
exige maior aproximação entre política e economia, entre tática e estratégia,
entre emergência e médio prazo. Embora o documento apresentado ao debate aponte
num sentido correto, ele em nossa opinião não tira algumas conclusões
essenciais.
Estamos de acordo em apresentar a “vida” como
fundamento. E, também, com a necessidade de defender a vida, não apenas da
pandemia, mas de “todas as outras ameaças, de tudo aquilo que a limita e reduz
sua qualidade”.
Entretanto, chama atenção a parte inicial do
documento atacar o racismo, o machismo, o sexismo, os preconceitos e a
homofobia, o consumismo, os desequilíbrios ambientais e regionais, as políticas
de austeridade e Estado Mínimo, a desigualdade socioterritorial, o
autoritarismo, o ódio e a mentira.... mas não apontar o capitalismo como uma
ameaça (talvez a maior de todas) contra a vida.
Lembramos, a este respeito, o discurso feito por Lula
no 1º de Maio de 2020. A crítica por ele assestada contra o capitalismo é perfeitamente
condizente com a linguagem que percorre a parte inicial do documento.
No capítulo seguinte, “A crise além da pandemia”, há
o reconhecimento de que “estamos atravessando a maior crise econômica e social
da história do capitalismo, apenas comparável à devastação causada pela crise
de 1929”. Na sequência, descreve os “traços mais cruéis de um modo de produção
que já estava em crise e que é incapaz de eliminar a fome e a pobreza, e
responsável por perpetuar a desigualdade social, o racismo estrutural, a
violência de gênero e a exploração desmesurada de trabalhadores e recursos
naturais”.
E diz, ainda, que vivemos “uma crise sistêmica de
múltiplas dimensões, que projeta insegurança e medo generalizados, lançando
profundas dúvidas sobre o futuro da nossa civilização e do nosso planeta”.
A questão é: se o capitalismo está na origem da crise
sistêmica, daí decorre que deveríamos incluir, na parte anterior do “plano”, o
capitalismo como uma das ameaças à vida. Do mesmo modo, e por coerência, a
alternativa que nos caberia apresentar à crise sistêmica seria explicita e
imediatamente... socialista!
A explicação para tais omissões está, em nossa
opinião, na seguinte afirmação feita pelo documento: “A causa última dessa
gravíssima crise está em homens e mulheres contaminados por velhas ideias e por
políticas adoecidas. Na verdade, esta crise é fundamentalmente uma crise do
modelo neoliberal, associado à financeirização extrema da acumulação do
capital”.
Ou seja: a crise sistêmica do capitalismo é reduzida,
por um passe de mágica, a uma crise do modelo neoliberal. Modelo sustentado não
por uma classe social de capitalistas, mas por “homens e mulheres contaminados
por velhas ideias e por políticas adoecidas”.
Por óbvio, este tipo de raciocínio nos desobriga de
pensar uma alternativa socialista ao capitalismo: bastaria uma alternativa (ainda
que capitalista) ao neoliberalismo.
No fundamental, concordamos com as críticas que o
documento faz ao neoliberalismo. Mas:
1/não consideramos correto, nem teórica, nem
politicamente, distinguir de forma absoluta neoliberalismo
de capitalismo. O neoliberalismo é o “capitalismo realmente existente”. Por
isso, é incorreto separar de forma absoluta a luta contra o
neoliberalismo da luta contra o capitalismo;
2/supondo que fosse possível derrotar o
neoliberalismo, sem derrotar o capitalismo, isto nos levaria de volta a algum
tipo de “capitalismo organizado pelo estado com bem-estar social”. Que foi o
ponto de partida do neoliberalismo dos anos 1980, transformando nossa proposta
de “transformação do Brasil”, em certa medida, numa operação de volta ao passado;
3/a distinção incorreta (ver item 1 acima) entre
capitalismo e neoliberalismo, presente no documento, possibilita que as
políticas propostas para superar o neoliberalismo sejam tímidas e
insuficientes. Até mesmo para atingir o “programa mínimo”, superar o
neoliberalismo, é preciso almejar o “programa máximo”: superar o capitalismo;
4/a descrição sobre a insustentabilidade do mundo
neoliberal, somada à incorreta distinção absoluta entre neoliberalismo e
capitalismo, pode semear a confusão de que o neoliberalismo é uma ameaça ao
capitalismo. E que, portanto, por absurdo, seria do interesse dos próprios
capitalistas derrotar o neoliberalismo;
5/propomos que, na introdução do “programa”, haja uma
reflexão sobre os conflitos geopolíticos em curso no mundo. Se estamos falando
de um programa de transformação concreto, para uma sociedade concreta, em uma
época concreta, é preciso perceber que o capitalismo neoliberal não é o mesmo
em todos os lugares, da mesma maneira que a dinâmica dos grandes Estados
imperialistas não é a mesma dinâmica dos Estados das demais nações. Neste
sentido, se o documento carece de menções ao socialismo, também faz falta a
categoria “imperialismo”.
A propósito, entendemos que, nas condições atuais do
País, seja quem for o vencedor na disputa global em curso, o lugar estará
“naturalmente reservado” ao Brasil é o de fornecedor de matérias-primas e
importador de produtos industriais.
Sem alterar este “lugar” do Brasil no mundo, não há
como transformar profundamente o restante da situação social, econômica,
cultural e política em que nos precipitaram. A alteração tentada entre
1930/1980 foi, em grande medida, detida e revertida, não a partir de uma
guerra, não a partir da colonização direta do país, mas a partir da iniciativa
da própria classe dominante. Motivo pelo qual derrotá-la – no sentido mais
profundo da palavra derrotar – deve constituir a pedra de toque de todo o
programa.
No capítulo “O PT e os Valores de um Novo País”, se
aponta que a construção do futuro está em disputa. Que há quem queira “se
aproveitar da crise para aprofundar as mesmas políticas que levaram o mundo ao
beco sem saída e o Brasil ao abismo sombrio em que se encontra”. E que o PT
“propõe um novo modelo de desenvolvimento, uma nova forma de gerir a economia,
o Estado e a sociedade”.
O problema fundamental desta passagem reside no que
se entende por “modelo”. O PT não deve ter por objetivo adotar uma “nova forma
de gerir” a economia, o Estado e a sociedade. Nosso objetivo, segundo nossos
documentos de fundação e resoluções de vários Congressos, é mudar radicalmente,
profundamente, revolucionariamente, a economia, o Estado e a sociedade.
Tanto quanto na passagem anterior, em que o documento
inicia afirmando que a crise é sistêmica, mas termina concluindo que o problema
é o neoliberalismo; nesta passagem o documento indica que estamos caindo no
abismo, mas aponta o dedo para as “políticas”, como se a causa radicasse nas
“políticas” e não nas “estruturas”.
Nota-se aqui que, apesar da negativa de “uma volta ao
passado”, o documento acentua que "nosso projeto se assenta nos mesmos
objetivos básicos e nos mesmos valores que orientaram nossos governos”. Com as
ressalvas devidas aos muitos elogios a nossas realizações — cujo conjunto da
obra foi positivo — não podemos ignorar a rapidez com que foram desmontadas
TODAS as nossas realizações: é a comprovação de que implementamos políticas
públicas, mas não promovemos reformas estruturais. Bastou o golpe para que se
adotassem novas políticas, revertendo absolutamente tudo que realizamos.
A fim de que
esta história não se repita, é preciso avançar além de uma “nova forma de
gerir” a economia, o Estado e a sociedade.
Motivo pelo qual a palavra “revolução”, presente no nosso ideário,
precisa voltar a fazer parte do nosso vocabulário.
Sugerimos que o documento suprima a fórmula o “Brasil
vive hoje uma repetição de um antigo fracasso, o fracasso histórico das nossas
oligarquias em construir um país justo, inclusivo e solidário”. A rigor, só
haveria fracasso se houvesse esta disposição – o que nunca ocorreu. Na verdade,
nossas elites têm sido muito exitosas em alcançar seu objetivo: ganhar muito
dinheiro.
Num certo sentido, o documento coincide conosco, pois
reconhece que “as circunstâncias internacionais e nacionais são atualmente
bastante diferentes das do início deste século, de forma que a construção desse
novo país exigirá medidas e políticas mais profundas, inovadoras e radicais”.
Na mesma linha, afirma que é “preciso superar de uma vez por todas os vetos
ideológicos contra a atuação do Estado, que tem se mostrado o único agente
capaz de enfrentar os efeitos depressivos da pandemia”.
Cabe, pois, acrescentar, ser também necessário
“superar de uma vez por todas os vetos ideológicos” ao socialismo. Para ser
mais específico, não é suficiente defender a atuação do Estado. Fundamental é
propor também a expropriação, estatização, nacionalização, de parte da
propriedade capitalista.
Não podemos incorrer numa lógica socialdemocrata,
segundo a qual o papel do Estado é cobrar impostos e executar políticas
públicas. Evidente que somos favoráveis, mas isto não basta. Frente ao
gigantismo dos concorrentes internacionais, frente ao nanismo dos capitalistas
“produtivos” e à voracidade pantagruélica dos especuladores brasileiros, é
preciso colocar sob controle estatal áreas estratégicas da nossa economia, a
começar pelo setor financeiro.
Por qual motivo não chamar isso apenas de expansão do
capitalismo de Estado? Entre outros motivos porque, nas atuais condições
históricas, a coalizão de forças capaz de fazer isso não é “capitalista”.
Agregamos o seguinte argumento: é verdade que “a
distribuição de renda e o investimento social são extremamente funcionais ao
crescimento econômico e à diversificação produtiva e tecnológica e, por isso,
devem se apresentar como motores do desenvolvimento econômico”. Mas isto NÃO é
verdade numa sociedade capitalista controlada pelo agronegócio e por
mineradoras, por empresas exportadoras e importadoras, por bancos e empresas
financeiras, todas associadas a interesses internacionais.
Esta noção ingênua, segundo a qual nossa proposta é
compatível e útil para o próprio capitalismo, é uma ficção. Vale para os
pequenos e médios capitalistas, não vale para os grandes capitalistas. Aliás, a
Operação Lava Jato mostrou de que modo a classe dominante como um todo trata os
“colaboracionistas”.
E por falar em classe, o documento fala, com razão,
que “classe, gênero e raça são relações estruturantes no capitalismo”. Contudo,
faltou ao documento mencionar uma questão chave: a da propriedade dos meios de
produção. Sempre haverá alguém a ponderar que, na atual correlação de forças,
não é possível tocar na propriedade dos meios de produção. Ocorre que, num
debate programático, o ponto relevante é outro: para dar conta dos problemas
que pretendemos resolver, é necessário ou não encarar o tema da propriedade dos
meios de produção? Se não é preciso, sigamos adiante. Mas se é necessário,
então a correlação de forças precisa ser criada.
A nossa opinião é que, para solucionar os problemas a
que o “programa de transformação” se propõe, não basta um novo modo de gerir, é
preciso alterar algumas das bases estruturais de nossa sociedade.
Notem que, na passagem seguinte, o documento admite
isso. Referimo-nos ao capítulo intitulado “Os Alicerces de um Novo País”, onde
se fala que “o crescente e intenso aumento da desigualdade de renda e de
patrimônio, causado pelo velho modelo neoliberal e a financeirização do
capital, vem se constituindo num gravíssimo problema em quase todo o mundo”.
Como, então, resolver o problema da desigualdade de
patrimônio?
O documento é praticamente omisso a este respeito.
Fato que, a nosso ver, tem relação com a abordagem incorreta a cerca da origem
dos nossos problemas.
Vejamos a seguinte frase, para exemplificar: “A crise
atual do capitalismo é, fundamentalmente, uma crise causada por um modelo que
produz desigualdade e pobreza, limitando o crescimento da economia real e
propiciando o surgimento de bolhas especulativas assentadas na financeirização
excessiva das atividades econômicas”.
Ou seja, a crise do capitalismo é causada por um
“modelo”. Fica implícito que o problema não é o capitalismo em si, mas um
“modelo”, o neoliberalismo financeirizado. Portanto, para enfrentar este
problema, bastaria enfrentar o modelo, não o próprio capitalismo.
Até que é possível reduzir desigualdades, apenas
mexendo no modelo. Mas isto não é sustentável, nem economicamente, nem
politicamente. Se queremos uma “transformação” sustentável, então ela deve ser
bem mais profunda.
O documento lembra que, nos nossos governos, “ainda
havia muito a fazer, mas estávamos no rumo correto”. A questão é que este tipo
de raciocínio seria ótimo, se não houvesse inimigos. Como há inimigos, de pouco
adianta o raciocínio segundo o qual “devagar se vai ao longe”.
E por falar em inimigos, é inexato dizer que eles
apostam “de forma inteiramente equivocada, na desigualdade, na redução dos
direitos trabalhistas e sociais e em nossa histórica exclusão, herdada da
escravidão, como supostos vetores para estimular os investimentos e o
crescimento econômico”.
A questão central do capitalismo não é o
investimento, nem é o crescimento; a questão central é o lucro. Desde o final
dos anos 1960 há um movimento mundial de queda nas taxas de crescimento. Isto
reduz as taxas de lucro, mas os capitalistas compensaram isto com uma brutal
ofensiva sobre o trabalho. Portanto, não há “equívoco”, há uma opção
deliberada, que não tem por objetivo “estimular investimentos” nem obter
“crescimento”. Aqui, novamente, o documento adota uma linguagem
"capitalista utópica", ou seja, parece querer explicar aos
capitalistas como eles deveriam fazer para que as coisas acontecessem como está
previsto nos manuais de economia.
Concordamos com o documento, quando propõe que
devemos fazer, “em linhas gerais, o inverso” do que defendem os neoliberais.
Mas, repetimos, o documento é, digamos, tímido a
respeito das medidas que produzam “distribuição do patrimônio”. A rigor, a
única proposta neste sentido é a que fala em “garantir o direito à terra, ao
território, ao trabalho e à cultura das comunidades quilombolas, dos povos e
comunidades tradicionais, do campo, das águas e das florestas”. Entretanto,
falta ao nosso programa de transformação propor, por exemplo, a estatização do
capital financeiro, que é o núcleo da classe capitalista e o principal
concentrador patrimonial.
O documento acerta ao sugerir que é preciso fazer uma
“transição ecológica do atual modelo de desenvolvimento, tendo como perspectiva
histórica a construção de uma sociedade socialista, democrática e sustentável”.
Mas o máximo a que chega é afirmar que “os poderosos interesses econômicos,
financeiros e empresariais sobre o setor energético precisam ser regulados e
colocados a serviço de uma transição energética justa”.
É conhecido o dito sobre as “empresas grandes demais
para quebrar”. Pois então: há interesses que são poderosos demais para serem apenas
regulados. Ou são quebrados em empresas menores, ou são colocados sob
propriedade pública.
Por outro lado, a “a agricultura familiar e camponesa”
só vai conseguir “exercer protagonismo nesse projeto”, se os latifúndios forem
submetidos à reforma agrária. E não há
como fazer uma transição ecológica nas cidades, sem que se enfrente o
latifúndio urbano.
Portanto, não estamos diante da necessidade de um
“pacto”, mas sim de uma revolução patrimonial. Não se trata apenas, como diz o
documento no capítulo sobre “Desenvolvimento Econômico e Estado”, de uma
“profunda reorganização das relações entre o Estado, o mercado e a sociedade,
que possibilite recriar, no contexto da nossa especificidade histórica, mundial
e nacional, uma modalidade inovadora e mais inclusiva de Estado de Bem Estar
Social”.
Não se trata de mudar as “relações” do mercado com a
sociedade e com o Estado, para gerar um Estado de bem-estar. Trata-se, sim, é
de mudar a estrutura do mercado, colocando o oligopólio financeiro sob controle
público, realizando uma reforma agrária e urbana, criando empresas estatais em
várias áreas e estimulando uma ampliação fenomenal no número de pequenas e médias
empresas.
Não basta falar, portanto, que “caberá ao Estado
planejar, projetar, induzir e estimular a retomada do crescimento e a geração
de empregos”. O Estado tem que voltar a
ser proprietário em larga escala.
O documento afirma que “será necessário promover
profundas mudanças na estrutura tributária, na estrutura bancária e nas regras
fiscais para habilitar o Estado brasileiro a cumprir suas funções”.
Concordamos, mas queremos qualificar a profunda mudança que julgamos necessária
na “estrutura bancária”. Desde os anos 1980, a classe dominante implementou uma
“contra-revolução” na área bancária:
chegou a hora de reverter isso. Esta é a premissa, aliás, para um
conjunto de medidas que o documento aponta, de investimento público nas mais
variadas áreas.
Ressaltamos concordância com inúmeros objetivos que o
documento lista. Todavia, essa lista é irrealizável economicamente e
insustentável economicamente, sem libertar o país da ditadura do capital
financeiro.
Alguém sempre poderá argumentar que é possível
libertar-se do jugo do capital financeiro nos marcos do capitalismo. A tese
procede. Entretanto, vista na dinâmica política e histórica, tal tese é uma
abstração sem vida. Aliás, é curioso que as vezes se argumente que a medida é
inexequível por ser radical demais, outras vezes se argumente que ela na
verdade não seria de natureza socialista. Debates terminológicos a parte, nosso
argumento é: o oligopólio financeiro privado bloqueia o desenvolvimento que
almejamos. Para romper este bloqueio, é preciso romper o oligopólio.
Também estamos de acordo quando o documento afirma
que “tudo depende da soberania”. Neste sentido, reiteramos que falta ao
documento uma análise da geopolítica mundial, em particular do fenômeno do
imperialismo. Tratar de soberania, sem falar explicitamente de enfrentar o
imperialismo, é estimular ilusões. O próprio documento elogia nossa política
externa, mas parece se esquecer que foi exatamente esta política que gerou
reações, contra as quais não nos
preparamos para resistir adequadamente, porque nos faltava clareza sobre o
fenômeno do imperialismo.
O documento menciona também que precisamos de uma
“política de defesa sólida”. Resta saber
se o que foi realizado, entre 2003 e
2016, foi o correto? Foi o suficiente? Ou precisaremos de algo muito diferente?
Nesse ponto, ressaltamos não se tratar de fazer uma lista de desejos ou de
metas, mas sim de estabelecer a premissa: como demonstrado recentemente, um
país como o Brasil não será governado pela esquerda impunemente.
O capítulo que trata da “radicalização da democracia”
constata que em “todo o mundo, as democracias estão sendo fragilizadas”. E que,
no caso do Brasil, esse quadro geral de enfraquecimento das democracias e dos
sistemas de representação "foi muito agravado pelo golpe”.
Aqui há, em nossa opinião, um equívoco de abordagem.
Embora haja um fenômeno mundial, é imprescindível lembrar que o Brasil sempre
teve imensas restrições às liberdades democráticas. Aliás, o próprio documento
lembra que “o frágil pacto constitucional de 1988” foi assentado em uma
“democratização limitada pela impunidade dos crimes da ditadura, pela estrutura
de poder militar incrustada no Estado, pelo latifúndio, pela propriedade
privada e pelo conservadorismo”.
Mas se é assim, de que instituições cuidamos, quando
se afirma que “mais do que nunca, precisamos defender a democracia e as
instituições que a sustentam”?
Na mesma linha, julgamos insuficiente assinalar que nosso “combate estrutural às causas de
uma corrupção histórica e renitente” foi “algumas vezes deturpado por motivos
políticos, ideológicos e pelo lawfare, como ficou evidenciado em
episódios da Operação Lava Jato”. Cabe reconhecer que nós criamos e reforçamos
instrumentos — e uma legislação de cunho punitivista — que hoje se voltam
contra nós e viabilizaram a instalação de um verdadeiro Estado de exceção.
Por outro lado, quando se diz que procuramos
“incorporar também os pobres e os excluídos à democracia”, é preciso lembrar
que tal incorporação não deu conta de alguns temas básicos: o direito à comunicação
continuou sequestrado pelo oligopólio privado; o princípio de uma pessoa um
voto seguiu distorcido; as forças armadas seguiram com o direito de tutelar a
democracia; as polícias seguiram militarizadas; o judiciário manteve-se
partidarizado, e assim por diante.
Como explicamos antes, não trataríamos neste texto da
segunda parte do documento, intitulada “Plano emergencial em defesa da vida, do
emprego, da renda, da democracia e da soberania”.
Para concluir nossa crítica, sugerimos que nosso
programa de transformação se organize em torno de 5 pontos (as cinco pontas da
estrela):
1/Converter o Brasil e a região latino-americana e
caribenha num dos polos do mundo. Não aceitamos o papel de consumidores e
fornecedoras de matérias-primas.
2/Garantir o desenvolvimento nacional, colocando o
Estado no comando; colocando o oligopólio financeiro privado sob controle
público; consolidando a pequena e a média propriedade rurais, como base de
nossa soberania alimentar; levando a todo o Brasil energia elétrica, cabeamento
ótico, ferrovias e hidrovias; reurbanizando nossas cidades, atendendo 100% das
necessidades de saneamento, moradia, transporte e equipamentos públicos
(educação, saúde, cultura, esportes e lazer). A produção destes bens públicos,
combinada com a ampliação do consumo de bens privados, será o carro-chefe da
reindustrialização nacional. No lugar de uma economia organizada em torno do
lucro, do lucro de poucos, de um lucro especulativo, destruidor da natureza,
social e culturalmente degradante, uma sociedade baseada na igualdade, na
riqueza coletiva, na integração ao meio ambiente, no desenvolvimento
sustentável, na defesa da humanidade.
3/Edificar um Estado de Bem-Estar Social, financiado
através da adoção do imposto progressivo sobre a renda e grandes propriedades,
da tributação dos milionários e das grandes heranças, garantindo saúde e
educação pública, universal e gratuita; emprego com direitos trabalhistas;
salário mínimo valorizado; aposentadoria digna. Políticas especiais voltadas
para os direitos das mulheres, dos negros e das negras, setores majoritários da
classe trabalhadora, que recebem menos e trabalham mais. Políticas especiais
destinadas às populações originárias, aos amplos setores sociais vítimas de
histórica exclusão e desigualdade, às regiões submetidas a décadas e séculos de
desenvolvimento desigual.
4/Construir um Estado democrático e popular,
convocando uma Assembleia Nacional Constituinte e ajustando as contas com a
democracia seletiva, o racismo, o patriarcado, a lgbtfobia, o colonialismo, a
tutela militar, a ditadura comunicacional, o judiciário partidarizado, o
parlamento oligárquico e os governos arbitrários, a polícia militarizada.
5/Um país verdadeiramente soberano, desenvolvido,
igualitário e democrático é um país socialista. Uma alternativa sistêmica para
uma crise sistêmica.
Assinam esta contribuição inicial, sem prejuízo de
correções pontuais ou acréscimos que serão feitos proximamente:
Jandyra Uehara, da direção executiva da CUT e do DNPT
José Genoíno, ex-presidente nacional do PT
Natália Sena, da CEN do PT
Rui Falcão, deputado federal e da CEN do PT
Valter Pomar, do DNPT
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