Para fazer do limão uma limonada
O deputado
Vaccarezza é um dos maiores críticos da "reforma política" atualmente
em curso na Câmara dos Deputados.
Vaccarezza
considera que o Partido deveria ter outras prioridades (como a reforma
tributária).
Vaccarezza
considera, também, que o Partido deveria defender uma reforma política
abrangente (não apenas uma reforma do sistema eleitoral), centrada em medidas
democratizantes (como a participação popular na propositura de leis e o fim das
distorções nas eleições proporcionais).
Até aí, concordo
com Vaccarezza. Por isso, aliás, acho que o Partido deveria ter incluído na sua
plataforma, a defesa de uma Constituinte Exclusiva.
O problema é, a
partir daquelas reflexões iniciais, Vaccarezza transformou-se no maior opositor
(dentro do PT) da "reforma política realmente existente".
Vejamos os argumentos
utilizados pelo deputado Vaccarezza, tal como são apresentados numa das edições
do boletim eletrônico distribuído pelo seu mandato.
Os direitos do eleitor
Não há sistema
político perfeito; a reforma política que queremos não se restringe ao sistema
eleitoral; a reforma em discussão na Câmara é minimalista, contém enormes
problemas e, como quase tudo, pode ter efeitos colaterais negativos.
Isto posto, será
justo dizer, como diz o boletim do deputado Vaccarezza, que ele "defende o
direito do eleitor escolher seu representante" e, por isto, é "contra
o voto em lista pré-ordenada de candidatos"?
Noutras
palavras, será correto dizer que a lista pré-ordenada tira "o direito do
eleitor escolher seu representante"?
Deixemos de lado
o aspecto "constitucional" da discussão. Afinal, hoje as pessoas já podem
votar apenas na legenda. Logo, o "direito de escolher seu
representante" diretamente pode se traduzir tanto no voto nominal, quanto
no voto no Partido (o que equivale, conceitualmente falando, ao voto em lista).
Portanto, o voto
em lista também é um voto direto. Mesmo assim, cabe responder: eliminar o voto
nominal não significaria privar os eleitores de um direito?
Vejamos os
seguintes fatos: grande parte dos eleitores brasileiros não vota em deputados. Outra
parte vota em deputados que não são eleitos; neste caso, seus votos ajudam a
eleger outros parlamentares, às vezes pertencentes a outros partidos. Finalmente,
há os que votam na legenda, caso em que seus votos ajudam a eleger os demais.
Vejamos o mesmo
caso, do ponto de vista dos eleitos, tomando como exemplo o caso do PT: nas
eleições de 2006, apenas dois deputados federais do PT, no Brasil inteiro,
obtiveram uma votação nominal suficiente para sua eleição. O restante da
bancada federal do PT dependeu dos votos de legenda e de votos nominais dados a
outros candidatos.
Pergunto: que
"direito" é esse, que é exercido pelo eleitor tentando eleger
sicrano, mas que beneficia beltrano?
Na verdade, para
a imensa maioria dos eleitores do PT, o "direito" de votar
nominalmente num candidato não resulta na eleição de seu candidato e, ademais,
resulta na eleição de outros parlamentares, que o eleitor só fica sabendo quem são
ao final do processo.
Deste ponto de
vista, a existência de uma lista pré-ordenada dá ao eleitor o
"direito" de saber, antecipadamente, quem será beneficiado com seu
voto. Portanto, com a mudança do sistema eleitoral, podemos dizer que há uma
"troca de direitos": o "direito" de votar nominalmente (sem
saber quem será beneficiado pelo seu voto), pelo direito de votar na lista
(sabendo quem será beneficiado pelo seu voto).
O controle das cúpulas partidárias
O deputado
Cândido Vaccarezza acha que, com o sistema de lista, o eleitor perde o poder de
escolher seus representantes.
Como vimos, isto
não é verdade: ele deixa de votar nominalmente, o que é bem diferente de perder
o "poder de escolher seus representantes".
Este poder não é
"perdido", pois na vida real a maioria dos eleitores que
"escolhe" não "elege" seus representantes.
Hoje, a
"eleição" depende do "livre mercado eleitoral", que como
sabemos, está longe de ser "livre" da influência do poder econômico e dos
meios de comunicação.
Mas como
Vaccarezza pensa que a lista "tira poder" do eleitor, ele obviamente
acha que este poder passa para as mãos de quem faz a lista. Segundo as palavras
do deputado, tal como está no seu boletim eletrônico: “A escolha dos
parlamentares fica nas mãos da cúpula dos partidos, dificultando a renovação de
lideranças, e o poder
econômico poderá ter grande espaço, por meio da compra de
lugares na lista”.
Este raciocínio
de Vaccarezza é um "método polêmico" paradoxal: atribui ao sistema de
lista pré-ordenada problemas que já existem no atual sistema.
Quem compõe,
hoje, a lista que os partidos apresentam aos processos eleitorais? Tirante
alguns poucos casos (como o PT), já é exclusivamente a cúpula dos partidos.
O poder econômico
já se faz presente, em diversos partidos, tanto na conquista de espaços na
lista, quanto no processo eleitoral. Por isto há quem diga que certos
parlamentares não são eleitos: “compram” uma cadeira na Câmara.
Quanto à
renovação das "lideranças", perguntamos: o sistema atual tem possibilitado
a renovação? Ou existe uma oligarquização crescente, decorrente da combinação
perversa entre voto nominal, financiamento privado e monopólio da comunicação?
O deputado
Vaccarezza critica problemas reais, mas que já existem, não sendo portanto decorrências
do voto em lista pré-ordenada.
Esses problemas
podem ser agravados pelo voto em lista? Podem, no caso dos partidos de direita.
No caso dos partidos de esquerda, pode ocorrer exatamente o contrário. A
existência do voto em lista pré-ordenada, definida por métodos democráticos,
pode neutralizar ou minimizar tais problemas. Mudando as regras, pode acontecer
uma coisa ou outra. Mantendo as regras atuais, uma coisa é certa: no sistema
eleitoral vigente, os problemas apresentados e criticados por Vaccarezza não
serão resolvidos nunca.
Os métodos de composição da lista
O deputado
Vaccarezza acredita que com o voto em lista pré-ordenada, as cúpulas
partidárias podem "se eternizar no Congresso".
Trata-se de um
argumento curioso, uma vez que --
como todos sabemos -- o atual sistema eleitoral brasileiro promove mais
renovação no executivo do que no legislativo.
Este é um dos
motivos, aliás, que levou a maioria do PT -- Vaccarezza inclusive -- a apoiar, no plebiscito de
1993, o presidencialismo contra o parlamentarismo.
Uma das razões
desta diferença na "taxa de renovação" é que, na eleição majoritária,
ficam mais claras a diferença de projetos e as disputas ideológicas.
Além disso, nas
eleições majoritárias, partidos como o PT podem "concentrar esforços"
contra o inimigo comum. Já nas eleições proporcionais, nas regras atuais,
ocorre diluição das disputas programáticas, dispersão de esforços e -- inclusive -- disputa
dentro das forças de esquerda, inclusive dentro do PT.
Uma das
vantagens do voto em lista pré-ordenada é que, exatamente, permite concentrar
esforços na campanha do Partido.
É revelador do
estado de coisas atual, que tenhamos que lembrar disto que sempre foi um
be-a-bá para nós do PT, pois sempre defendemos fortalecer o voto na legenda, o
voto no 13, o voto no Partido.
Vaccarezza,
entretanto, parece só ter olhos para a fidelidade partidária. Mas a busca da
fidelidade partidária supõe o quê? Supõe, mais do que regras administrativas,
um contrato com o eleitorado, com a sociedade. No atual sistema, de voto
nominal, este contrato é imperfeito, pois uma parte dos eleitores vota em
"nomes", não num partido.
A fidelidade
partidária só será plena, se ela estiver baseada no voto do eleitorado em
partidos, não em pessoas.
Vaccarezza acha,
pelo contrário, que "o voto em lista vai incentivar a disputa interna. Os
candidatos deixarão de lutar na sociedade para lutar dentro dos partidos".
Primeiro, uma
correção: voto em lista já existe hoje. A discussão é se a lista deve ser
pós-ordenada (sistema atual) ou pré-ordenada (lista fechada), cabendo ainda
variantes mais ou menos flexíveis entre uma e outra.
Isto posto,
pergunto: hoje não há luta interna? E, ademais, toda luta interna é sempre nociva?
Por qual motivo a luta interna seria necessariamente prejudicial ao PT e/ou à
democracia? A "luta externa", em que candidatos de um mesmo partido
guerreiam entre si pelos mesmos votos, não é muito mais prejudicial??? Esta
"luta externa" não corrói, na prática, a razão de ser de qualquer
conceito de "partido político"???
Financiamento público já existe??!!
O boletim do
deputado Vaccarezza argumenta, ainda, que "80% dos entrevistados desejam
manter a possibilidade de escolher seus candidatos e eram contrários à lista
fechada".
Não acho
apropriado utilizar como argumento de autoridade um retrato da opinião pública,
num determinado momento. Mas é curioso que o argumento venha exatamente de quem
tem dito, nas instâncias partidárias, que não houve debate suficiente sobre o
tema da reforma política, nem no partido, nem no parlamento, nem na sociedade.
Se isto é
verdade, se não houve debate, qual então o valor desta ou de qualquer outra
pesquisa?
Na minha
opinião, serve apenas para constatar o óbvio: quando a esquerda não esclarece
adequadamente o que está em jogo, o povo tende a ser conservador, mesmo que
contra os seus interesses e especialmente se há meios de comunicação
trabalhando contra o esclarecimento e manipulando as informações.
Nessa linha, o
maior erro que Vaccarezza comete é falar contra o financiamento público de
campanha.
Segundo ele,
"já existe financiamento público. Os partidos e os candidatos têm acesso
gratuito ao rádio e à televisão e há o Fundo Partidário, composto basicamente
por recursos da União, que são distribuídos conforme a votação de cada
partido”.
Claro que já
existe financiamento público, que é distribuído de maneira relativamente
democrática.
Mas e o
financiamento privado empresarial? Este é distribuído do jeito que as empresas
querem. Em benefício de quem elas querem. E com os propósitos que sabemos. Isto
é democrático, por acaso?
Segundo o
boletim de Vaccarezza, o "financiamento público não impede a corrupção,
pois candidatos e partidos podem buscar recursos por fora para suas campanhas
(o chamado Caixa 2) e nem garante a igualdade de condições entre os candidatos,
uma vez que a distribuição dos recursos pode privilegiar alguns em detrimento
de outros".
O raciocínio
acima é um primor. Em primeiro lugar, nada "impede" em definitivo a corrupção, mas disto não
decorre que devamos defender um sistema de corrupção política
institucionalizada. E o sistema de financiamento empresarial de campanhas
eleitorais é isso: corrupção institucionalizada.
Em segundo
lugar, criminosos sempre haverá. A questão é saber se vamos ou não considerar crime
o financiamento empresarial. Neste terreno, todos devemos aprender com a crise
vivida pelo PT em 2005, que decorreu ao menos em parte do financiamento privado
de campanhas eleitorais.
Em terceiro
lugar, a "igualdade de condições entre os candidatos" não depende do
financiamento público, mas da combinação entre financiamento público e voto em
lista (pois, quando há voto em lista pré-ordenada, deixa de existir campanha
individualizada e passa a existir campanha partidária). E, neste caso, não cabe
falar em "igualdade de condições" entre candidatos, mas sim de distribuição
proporcional de recursos entre partidos.
Breve reflexão estratégica
A estratégia de
acumulação de forças do PT inclui a dimensão institucional, principalmente
governos e parlamentos.
Há
discordâncias, dentro do Partido, sobre como fazer isto; sobre o que fazer uma
vez conquistados determinados espaços; sobre a combinação entre o acúmulo
institucional e as demais dimensões do acúmulo de forças.
Mas ninguém
discorda de que continuaremos disputando eleições.
Se isto é
verdade, precisamos perceber que nosso acúmulo de forças institucional está
dando sinais de certo esgotamento. Ou, para ser mais preciso: se não superarmos
determinados obstáculos, não seguiremos avançando e podemos inclusive
retroceder.
Um exemplo
disto: ganhamos governos e não conseguimos chegar perto de ter maioria nos
legislativos.
Outro exemplo: a
combinação entre voto nominal e financiamento privado está introduzindo, no PT,
uma forte degeneração política (cada mandato se torna um pequeno partido) e também
“ética”.
Não se trata de
um problema apenas do PT. Devido, em parte, aos mesmos motivos, vem crescendo o
desgaste da política em geral e dos parlamentares em particular.
Se nossa
estratégia fosse outra, poderíamos comemorar este desgaste. Mas tendo em conta
nossa estratégia, este desgaste ajuda as forças de direita, não ajuda as forças
de esquerda.
Finalmente, se é
verdade que nossa estratégia implica em conquistar espaços institucionais para
mudar a vida do povo, então é urgente mudar a correlação de forças existente nos
legislativos, criando as pré-condições institucionais para mudanças mais
profundas.
A correlação de
forças existente no Congresso Nacional não é apenas
"conjunturalmente" favorável à direita. Ela é estruturalmente
favorável à direita,
devido (entre outros fatores) a combinação perversa entre financiamento privado
e monopólio da comunicação.
Por isto
precisamos de financiamento público das campanhas eleitorais, por isto
precisamos de democratização da comunicação social.
A oposição que
Vaccarezza faz à reforma política "realmente possível", em alguns
casos utilizando argumentos formalmente “radicais”, na prática pode favorecer o
conservadorismo.
Vitoriosa a
tática e os argumentos de Vaccarezza, corremos o risco de não ter reforma
alguma. Com isso, não teremos alteração para melhor da correlação de forças do
Congresso Nacional. Com isso, ao menos nos marcos da atual estratégia seguida
pelo Partido, fica praticamente inviabilizada qualquer reforma mais ampla
(tributária, política etc.). Que é exatamente aquilo que Vaccarezza diz que o
PT deve perseguir.
Ao menos nesta
questão, o reformismo maximalista (“ou quase tudo, ou nada presta”) pode servir
ao antireformismo radical, nos conduzindo para uma armadilha tucana.
Se não sair voto
em lista pré-ordenada (no sistema flexível, que permite agregar mais apoios no
Partido e também fora dele) e financiamento público, enfrentaremos uma campanha
pelo financiamento privado com voto distrital, tal como propõem os tucanos.
Este é o principal
risco que corremos, neste estágio da reforma política realmente em debate no
Congresso Nacional.
Por isso, melhor
alguma reforma (que viabilize o financiamento público, que por sua vez supõe
algum tipo de voto em lista), do que nenhuma reforma.
Certamente Vaccarezza,
que ao contrário de mim é doutrinariamente um reformista, compreenderá isto e
dará todo apoio para o movimento de unidade que está em curso, tanto na bancada
quanto no Partido, em torno da proposta de lista flexível, que pode ajudar a
viabilizar os demais pontos em debate.
A reunião que o
Diretório Nacional do PT fará na próxima segunda-feira será, neste sentido, o
momento de fazer do limão colhido nos últimos dias, uma boa limonada.
15 de junho de 2007
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