quarta-feira, 9 de abril de 2014

Vaccarezza é coerente: erra há tempos

Para fazer do limão uma limonada

O deputado Vaccarezza é um dos maiores críticos da "reforma política" atualmente em curso na Câmara dos Deputados.

Vaccarezza considera que o Partido deveria ter outras prioridades (como a reforma tributária).

Vaccarezza considera, também, que o Partido deveria defender uma reforma política abrangente (não apenas uma reforma do sistema eleitoral), centrada em medidas democratizantes (como a participação popular na propositura de leis e o fim das distorções nas eleições proporcionais).

Até aí, concordo com Vaccarezza. Por isso, aliás, acho que o Partido deveria ter incluído na sua plataforma, a defesa de uma Constituinte Exclusiva.

O problema é, a partir daquelas reflexões iniciais, Vaccarezza transformou-se no maior opositor (dentro do PT) da "reforma política realmente existente".

Vejamos os argumentos utilizados pelo deputado Vaccarezza, tal como são apresentados numa das edições do boletim eletrônico distribuído pelo seu mandato.

Os direitos do eleitor

Não há sistema político perfeito; a reforma política que queremos não se restringe ao sistema eleitoral; a reforma em discussão na Câmara é minimalista, contém enormes problemas e, como quase tudo, pode ter efeitos colaterais negativos.

Isto posto, será justo dizer, como diz o boletim do deputado Vaccarezza, que ele "defende o direito do eleitor escolher seu representante" e, por isto, é "contra o voto em lista pré-ordenada de candidatos"?

Noutras palavras, será correto dizer que a lista pré-ordenada tira "o direito do eleitor escolher seu representante"?

Deixemos de lado o aspecto "constitucional" da discussão. Afinal, hoje as pessoas já podem votar apenas na legenda. Logo, o "direito de escolher seu representante" diretamente pode se traduzir tanto no voto nominal, quanto no voto no Partido (o que equivale, conceitualmente falando, ao voto em lista).

Portanto, o voto em lista também é um voto direto. Mesmo assim, cabe responder: eliminar o voto nominal não significaria privar os eleitores de um direito?

Vejamos os seguintes fatos: grande parte dos eleitores brasileiros não vota em deputados. Outra parte vota em deputados que não são eleitos; neste caso, seus votos ajudam a eleger outros parlamentares, às vezes pertencentes a outros partidos. Finalmente, há os que votam na legenda, caso em que seus votos ajudam a eleger os demais.

Vejamos o mesmo caso, do ponto de vista dos eleitos, tomando como exemplo o caso do PT: nas eleições de 2006, apenas dois deputados federais do PT, no Brasil inteiro, obtiveram uma votação nominal suficiente para sua eleição. O restante da bancada federal do PT dependeu dos votos de legenda e de votos nominais dados a outros candidatos.

Pergunto: que "direito" é esse, que é exercido pelo eleitor tentando eleger sicrano, mas que beneficia beltrano?

Na verdade, para a imensa maioria dos eleitores do PT, o "direito" de votar nominalmente num candidato não resulta na eleição de seu candidato e, ademais, resulta na eleição de outros parlamentares, que o eleitor só fica sabendo quem são ao final do processo.

Deste ponto de vista, a existência de uma lista pré-ordenada dá ao eleitor o "direito" de saber, antecipadamente, quem será beneficiado com seu voto. Portanto, com a mudança do sistema eleitoral, podemos dizer que há uma "troca de direitos": o "direito" de votar nominalmente (sem saber quem será beneficiado pelo seu voto), pelo direito de votar na lista (sabendo quem será beneficiado pelo seu voto).

O controle das cúpulas partidárias

O deputado Cândido Vaccarezza acha que, com o sistema de lista, o eleitor perde o poder de escolher seus representantes.

Como vimos, isto não é verdade: ele deixa de votar nominalmente, o que é bem diferente de perder o "poder de escolher seus representantes".

Este poder não é "perdido", pois na vida real a maioria dos eleitores que "escolhe" não "elege" seus representantes.

Hoje, a "eleição" depende do "livre mercado eleitoral", que como sabemos, está longe de ser "livre" da influência do poder econômico e dos meios de comunicação.

Mas como Vaccarezza pensa que a lista "tira poder" do eleitor, ele obviamente acha que este poder passa para as mãos de quem faz a lista. Segundo as palavras do deputado, tal como está no seu boletim eletrônico: “A escolha dos parlamentares fica nas mãos da cúpula dos partidos, dificultando a renovação de lideranças, e o poder econômico poderá ter grande espaço, por meio da compra de lugares na lista”.

Este raciocínio de Vaccarezza é um "método polêmico" paradoxal: atribui ao sistema de lista pré-ordenada problemas que já existem no atual sistema.

Quem compõe, hoje, a lista que os partidos apresentam aos processos eleitorais? Tirante alguns poucos casos (como o PT), já é exclusivamente a cúpula dos partidos.

O poder econômico já se faz presente, em diversos partidos, tanto na conquista de espaços na lista, quanto no processo eleitoral. Por isto há quem diga que certos parlamentares não são eleitos: “compram” uma cadeira na Câmara.

Quanto à renovação das "lideranças", perguntamos: o sistema atual tem possibilitado a renovação? Ou existe uma oligarquização crescente, decorrente da combinação perversa entre voto nominal, financiamento privado e monopólio da comunicação?

O deputado Vaccarezza critica problemas reais, mas que já existem, não sendo portanto decorrências do voto em lista pré-ordenada.

Esses problemas podem ser agravados pelo voto em lista? Podem, no caso dos partidos de direita. No caso dos partidos de esquerda, pode ocorrer exatamente o contrário. A existência do voto em lista pré-ordenada, definida por métodos democráticos, pode neutralizar ou minimizar tais problemas. Mudando as regras, pode acontecer uma coisa ou outra. Mantendo as regras atuais, uma coisa é certa: no sistema eleitoral vigente, os problemas apresentados e criticados por Vaccarezza não serão resolvidos nunca.

Os métodos de composição da lista

O deputado Vaccarezza acredita que com o voto em lista pré-ordenada, as cúpulas partidárias podem "se eternizar no Congresso".

Trata-se de um argumento curioso, uma vez que -- como todos sabemos -- o atual sistema eleitoral brasileiro promove mais renovação no executivo do que no legislativo.

Este é um dos motivos, aliás, que levou a maioria do PT -- Vaccarezza inclusive -- a apoiar, no plebiscito de 1993, o presidencialismo contra o parlamentarismo.

Uma das razões desta diferença na "taxa de renovação" é que, na eleição majoritária, ficam mais claras a diferença de projetos e as disputas ideológicas.

Além disso, nas eleições majoritárias, partidos como o PT podem "concentrar esforços" contra o inimigo comum. Já nas eleições proporcionais, nas regras atuais, ocorre diluição das disputas programáticas, dispersão de esforços e -- inclusive -- disputa dentro das forças de esquerda, inclusive dentro do PT.

Uma das vantagens do voto em lista pré-ordenada é que, exatamente, permite concentrar esforços na campanha do Partido.

É revelador do estado de coisas atual, que tenhamos que lembrar disto que sempre foi um be-a-bá para nós do PT, pois sempre defendemos fortalecer o voto na legenda, o voto no 13, o voto no Partido.

Vaccarezza, entretanto, parece só ter olhos para a fidelidade partidária. Mas a busca da fidelidade partidária supõe o quê? Supõe, mais do que regras administrativas, um contrato com o eleitorado, com a sociedade. No atual sistema, de voto nominal, este contrato é imperfeito, pois uma parte dos eleitores vota em "nomes", não num partido.

A fidelidade partidária só será plena, se ela estiver baseada no voto do eleitorado em partidos, não em pessoas.

Vaccarezza acha, pelo contrário, que "o voto em lista vai incentivar a disputa interna. Os candidatos deixarão de lutar na sociedade para lutar dentro dos partidos".

Primeiro, uma correção: voto em lista já existe hoje. A discussão é se a lista deve ser pós-ordenada (sistema atual) ou pré-ordenada (lista fechada), cabendo ainda variantes mais ou menos flexíveis entre uma e outra.

Isto posto, pergunto: hoje não há luta interna? E, ademais, toda luta interna é sempre nociva? Por qual motivo a luta interna seria necessariamente prejudicial ao PT e/ou à democracia? A "luta externa", em que candidatos de um mesmo partido guerreiam entre si pelos mesmos votos, não é muito mais prejudicial??? Esta "luta externa" não corrói, na prática, a razão de ser de qualquer conceito de "partido político"???

Financiamento público já existe??!!

O boletim do deputado Vaccarezza argumenta, ainda, que "80% dos entrevistados desejam manter a possibilidade de escolher seus candidatos e eram contrários à lista fechada".

Não acho apropriado utilizar como argumento de autoridade um retrato da opinião pública, num determinado momento. Mas é curioso que o argumento venha exatamente de quem tem dito, nas instâncias partidárias, que não houve debate suficiente sobre o tema da reforma política, nem no partido, nem no parlamento, nem na sociedade.

Se isto é verdade, se não houve debate, qual então o valor desta ou de qualquer outra pesquisa?

Na minha opinião, serve apenas para constatar o óbvio: quando a esquerda não esclarece adequadamente o que está em jogo, o povo tende a ser conservador, mesmo que contra os seus interesses e especialmente se há meios de comunicação trabalhando contra o esclarecimento e manipulando as informações.

Nessa linha, o maior erro que Vaccarezza comete é falar contra o financiamento público de campanha.

Segundo ele, "já existe financiamento público. Os partidos e os candidatos têm acesso gratuito ao rádio e à televisão e há o Fundo Partidário, composto basicamente por recursos da União, que são distribuídos conforme a votação de cada partido”.

Claro que já existe financiamento público, que é distribuído de maneira relativamente democrática.

Mas e o financiamento privado empresarial? Este é distribuído do jeito que as empresas querem. Em benefício de quem elas querem. E com os propósitos que sabemos. Isto é democrático, por acaso?

Segundo o boletim de Vaccarezza, o "financiamento público não impede a corrupção, pois candidatos e partidos podem buscar recursos por fora para suas campanhas (o chamado Caixa 2) e nem garante a igualdade de condições entre os candidatos, uma vez que a distribuição dos recursos pode privilegiar alguns em detrimento de outros".

O raciocínio acima é um primor. Em primeiro lugar, nada "impede" em definitivo a corrupção, mas disto não decorre que devamos defender um sistema de corrupção política institucionalizada. E o sistema de financiamento empresarial de campanhas eleitorais é isso: corrupção institucionalizada.

Em segundo lugar, criminosos sempre haverá. A questão é saber se vamos ou não considerar crime o financiamento empresarial. Neste terreno, todos devemos aprender com a crise vivida pelo PT em 2005, que decorreu ao menos em parte do financiamento privado de campanhas eleitorais.

Em terceiro lugar, a "igualdade de condições entre os candidatos" não depende do financiamento público, mas da combinação entre financiamento público e voto em lista (pois, quando há voto em lista pré-ordenada, deixa de existir campanha individualizada e passa a existir campanha partidária). E, neste caso, não cabe falar em "igualdade de condições" entre candidatos, mas sim de distribuição proporcional de recursos entre partidos.

Breve reflexão estratégica

A estratégia de acumulação de forças do PT inclui a dimensão institucional, principalmente governos e parlamentos.

Há discordâncias, dentro do Partido, sobre como fazer isto; sobre o que fazer uma vez conquistados determinados espaços; sobre a combinação entre o acúmulo institucional e as demais dimensões do acúmulo de forças.

Mas ninguém discorda de que continuaremos disputando eleições.

Se isto é verdade, precisamos perceber que nosso acúmulo de forças institucional está dando sinais de certo esgotamento. Ou, para ser mais preciso: se não superarmos determinados obstáculos, não seguiremos avançando e podemos inclusive retroceder.

Um exemplo disto: ganhamos governos e não conseguimos chegar perto de ter maioria nos legislativos.

Outro exemplo: a combinação entre voto nominal e financiamento privado está introduzindo, no PT, uma forte degeneração política (cada mandato se torna um pequeno partido) e também “ética”.

Não se trata de um problema apenas do PT. Devido, em parte, aos mesmos motivos, vem crescendo o desgaste da política em geral e dos parlamentares em particular.

Se nossa estratégia fosse outra, poderíamos comemorar este desgaste. Mas tendo em conta nossa estratégia, este desgaste ajuda as forças de direita, não ajuda as forças de esquerda.

Finalmente, se é verdade que nossa estratégia implica em conquistar espaços institucionais para mudar a vida do povo, então é urgente mudar a correlação de forças existente nos legislativos, criando as pré-condições institucionais para mudanças mais profundas.

A correlação de forças existente no Congresso Nacional não é apenas "conjunturalmente" favorável à direita. Ela é estruturalmente favorável à direita, devido (entre outros fatores) a combinação perversa entre financiamento privado e monopólio da comunicação.

Por isto precisamos de financiamento público das campanhas eleitorais, por isto precisamos de democratização da comunicação social.

A oposição que Vaccarezza faz à reforma política "realmente possível", em alguns casos utilizando argumentos formalmente “radicais”, na prática pode favorecer o conservadorismo.

Vitoriosa a tática e os argumentos de Vaccarezza, corremos o risco de não ter reforma alguma. Com isso, não teremos alteração para melhor da correlação de forças do Congresso Nacional. Com isso, ao menos nos marcos da atual estratégia seguida pelo Partido, fica praticamente inviabilizada qualquer reforma mais ampla (tributária, política etc.). Que é exatamente aquilo que Vaccarezza diz que o PT deve perseguir.

Ao menos nesta questão, o reformismo maximalista (“ou quase tudo, ou nada presta”) pode servir ao antireformismo radical, nos conduzindo para uma armadilha tucana.

Se não sair voto em lista pré-ordenada (no sistema flexível, que permite agregar mais apoios no Partido e também fora dele) e financiamento público, enfrentaremos uma campanha pelo financiamento privado com voto distrital, tal como propõem os tucanos.

Este é o principal risco que corremos, neste estágio da reforma política realmente em debate no Congresso Nacional.

Por isso, melhor alguma reforma (que viabilize o financiamento público, que por sua vez supõe algum tipo de voto em lista), do que nenhuma reforma.

Certamente Vaccarezza, que ao contrário de mim é doutrinariamente um reformista, compreenderá isto e dará todo apoio para o movimento de unidade que está em curso, tanto na bancada quanto no Partido, em torno da proposta de lista flexível, que pode ajudar a viabilizar os demais pontos em debate.

A reunião que o Diretório Nacional do PT fará na próxima segunda-feira será, neste sentido, o momento de fazer do limão colhido nos últimos dias, uma boa limonada.


15 de junho de 2007

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