quinta-feira, 23 de junho de 2022

Roteiro de análise de conjuntura

O roteiro abaixo foi utilizado em palestra feita no dia 22 de junho, para a direção nacional do MST.

1/ "Después de 214 años logramos un gobierno del pueblo, un gobierno popular. El gobierno de la gente, de las manos callosas, el gobierno de la gente de a pie, el gobierno de los nadies y las nadies de Colombia", disse Francia Márquez em seu primeiro discurso depois da vitória. Noutra mensagem ela dedicou a vitória aos setores populares. E enfatizou temas como o combate ao racismo e ao patriarcado, a defesa do meio ambiente, os direitos lgbt.

2/ No caso do Brasil, muitos de nós defendíamos uma vice mulher e negra, representante deste tipo de embocadura. Mas a “fórmula” que predominou foi outra, como sabemos.

3/ O mapa do resultado eleitoral na eleição presidencial da Colômbia mostra uma correspondência entre o voto dado em 2016, favoravelmente ao acordo de paz, e o voto dado em 2022 na “fórmula” Petro/Francia. Lembrando os números:

-NO ao acordo de paz: 50,21% versus SI ao acordo de paz: 49,78%

-votos em Hernandes: 47,31% versus votos em Petro: 50,44%

4/ Vitória na Colômbia foi resultado combinado de:

-acúmulo de forças

-organização

-dificuldades e divisões na direita

-situação econômico e social da Colômbia

-Paro Nacional de 2021

5/ "A responsabilidade do eleitor brasileiro só aumenta. Já não é mais ‘tão somente’ pelo Brasil, é por toda a região", escreveu o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL), filho do presidente Bolsonaro.

6/ Mais do que antes, a eleição brasileira de 2022 é um importante evento internacional. Principal agente internacional interessado no resultado das eleições brasileiras: os Estados Unidos.

7/ Dificuldades dos EUA:

-divisão na classe dominante dos EUA sobre a política externa correta neste momento

-Bolsonaro é alinhado com Trump, oposição a Biden

-acontecerão eleições este ano nos EUA (8 de novembro)

-governo Biden está focado no conflito Ucrânia x Rússia

8/ As dificuldades enumeradas não significam que não possa haver intervenção dos EUA no processo eleitoral brasileiro. Aliás, haverá, sempre há, já está havendo. Mas as dificuldades dos EUA indicam que teremos mais margem de manobra. Entretanto, não devemos esperar neutralidade, muito menos favorecimento (salvo se mudássemos totalmente de linha e nos dispuséssemos a nos alinhar com os EUA na batalha geopolítica global).

9/ Importante lembrar que há outros agentes internacionais intervindo: Israel, redes de extrema direita (Espanha e Portugal) etc.

10/ A hipótese principal é que -salvo acontecimentos extraordinários, como uma escalada na guerra ou uma nova crise – a intervenção estrangeira contra nós não se dará principalmente na eleição propriamente dita, mas principalmente no pós-eleição. Isto foi, em certa medida, demonstrado na eleição colombiana.

11/ Voltando à eleição colombiana:

-se confirmou o país estar dividido politicamente, socialmente, ideologicamente, regionalmente

-a divisão é confirmada pelo fato de 47% dos eleitores votarem a favor de um energúmeno

-apesar da maioria eleitoral, a maior parte dos poderes institucionais e fáticos estão alinhados contra o governo Petro/Francia

12/ Um agravante no caso da Colômbia: o histórico anterior (em 214 anos nunca fomos governo, direita muito violenta, aliança de esquerda recente).

13/ Vale destacar: não é coincidência a vitória eleitoral ter ocorrido depois dos acordos de paz, a divisão profunda entre duas estratégias distintas impedia ambas de terem sucesso. Mas é preciso interpretar corretamente o significado disto: uma maior unidade estratégica na esquerda em torno do papel da disputa eleitoral facilitou a vitória na peleia pelo governo, mas ter o governo NÃO resolve o problema do poder, NÃO resolve o problema do modelo econômico e muito menos garante o respeito do outro lado à democracia.

14/ O governo Petro/Francia enfrentará muitas dificuldades. Aliás os atuais governos progressistas e de esquerda estão enfrentando dificuldades em certo sentido maiores do que no período anterior.

-Argentina

-Chile

-Peru

-Venezuela

-Cuba

-Bolívia

-Nicarágua

-Honduras

15/ Tais dificuldades se originam:

-de uma situação objetiva interna pior que antes

-de uma situação externa pior que antes

-de uma extrema direita mais radicalizada que antes

-de problemas estratégicos presentes no ciclo anterior de governos e já então mal resolvidos, seguindo assim no atual ciclo

-do desaparecimento ou do enfraquecimento de certos “liderazgos” (exceto Lula, as principais figuras do ciclo anterior se foram ou estão em segundo plano)

-da fragilização (em comparação com o período anterior) das organizações coletivas

16/ Do ponto de vista da liderança e das organizações, o Brasil é uma meia exceção:

-por um lado, Lula segue protagonista e concentra mais poderes que antes

-por outro lado, partidos, sindicatos e movimentos estão mais fracos do que no período anterior

-se nada for feito para corrigir este descompasso, no médio prazo a situação tende a piorar muito, com alto risco de surgir um vácuo e uma forte dispersão e debilitamento plus

17/ As dificuldades enumeradas antes não seriam tão problemáticas em condições normais. Acontece que a situação atual exige mais radicalidade para conseguir o mesmo que conseguimos antes com menos radicalidade (exemplo: o papel da Petrobrás no ciclo anterior e o que se faz necessário para que a Petrobrás possa jogar um papel similar agora).

18/ A rigor, a situação atual exige mais audácia estratégica, sob pena de nos adaptarmos ao “novo normal”, ou seja: podemos ter sucesso em tirar o bode da sala, mas isto não alterará o fato da sala estar muito mais apertada que antes.

19/ A opção política feita até agora pela maior parte da esquerda brasileira, desde 2016 até agora, contorna este problema de fundo. A maior parte da esquerda brasileira – inclusive, ironicamente, setores que fizeram “oposição de esquerda” aos governos Lula e Dilma – trabalha como se estivéssemos enfrentando uma situação estratégica similar a de 2002. É por isso, aliás, que falam e agem como se o golpe de 2016 não tivesse existido e comprovado que havia um problema não resolvido na estratégia adotada em 2002 e nos anos seguintes)

-em decorrência da visão acima descrita, decorreu entre 2016 e 2022 uma concentração crescente das energias na disputa eleitoral (não apenas por isso, mas também por isso, nosso país não viveu grandes mobilizações comparáveis ao Chile, Bolívia, Colômbia, EUA etc.)

-também em decorrência da visão acima descrita, prevaleceu por ampla maioria a construção de uma aliança com parte dos neoliberais e golpistas responsáveis pelo golpe de 2016 [aliás, uma curiosidade: em ato recente em Natal, a companheira Gleisi Hoffmann, presidenta do PT, iniciou seu discurso falando do golpe contra a democracia em 2016 e terminou dizendo que em nossa coligação há diferenças, mas todos estamos unidos em defesa da democracia, raciocínio que só tem sentido lógico se a/parte de nossos aliados tivesse feito autocrítica sobre seu apoio ao golpe de 2016 OU se b/nós aceitássemos que em 2016 houve um impeachment, não um golpe)

-finalmente, como decorrência da visão exposta, no programa debatido há uma crescente ênfase na RECONSTRUÇÃO e um crescente secundarização da TRANSFORMAÇÃO [a esse respeito, ver o banner e a maioria dos discursos feitos no ato de apresentação das diretrizes]

20/ A opção política adotada pela maioria da esquerda tem como objetivos declarados:

-facilitar a vitória

-tornar possível uma vitória NO PRIMEIRO TURNO

-facilitar o governo

21/ Como estamos liderando as pesquisas, isto é apresentado como comprovação do sucesso da linha adotada. Obviamente é impossível comprovar o oposto: de que com outra linha estaríamos liderando da mesma forma. Mas se observarmos os dados desde o ano passado até hoje, eles indicam a/que a ampliação das alianças incide pouco ou nada nos resultados; b/que os motivos pelos quais Bolsonaro está atrás nas pesquisas NÃO decorrem das alianças feitas por nós, mas essencialmente de erros cometidos por eles. Obviamente, entretanto, as alianças reduziram o espaço da terceira via e nesse sentido podem contribuir para uma vitória no primeiro turno. Mas se essa vitória não vier, a antecipação das alianças pode – paradoxalmente – tornar muito mais difícil para nós o quadro do segundo turno (menos espaço para crescer).

22/ Seja como for, é importante analisar os problemas existentes e ver como se pode enfrentar e prevenir.  Entre eles:

-um problema acumulado já citado é a reduzida aposta e investimento em lutas sociais e também no Fora Bolsonaro. Isto evidentemente não impede uma vitória eleitoral, mas funciona como um freio contra a massificação da campanha (massificação dificultada também por inúmeros outros fatores);

-ilusão indevida nos aliados (já citamos anteriormente a confusão entre tomada e focinho de porco: os neoliberais golpistas de 2016 podem ser antibolsonaristas e podem ser nossos aliados, mas isto não os converte em democratas. Tal confusão é ainda mais intensa nos estados, onde figuras conservadoras vem recebendo nosso apoio ou compondo nossas chapas. Novamente um episódio ocorrido no ato de Natal é ilustrativo a respeito: a governadora Fátima denunciou a herança maldita deixada pelas oligarquias, relatou tudo o que foi feito no nosso governo, ressaltou a importância de não perder a eleição e concluiu dizendo que para isso é fundamental fazer aliança... com parte das mesmas oligarquias que deixaram a tal herança maldita. Por óbvio, isso significa que se tudo correr bem teremos um segundo governo de coabitação com parte dos promotores da herança maldita). Como as alianças já estão feitas, o tema é: não se deve esperar destes aliados muita firmeza na defesa da democracia e, pelo contrário, se deve esperar deles exigências programáticas no sentido oposto ao defendido por nós.

23/ Estas concessões apareceram no debate petista acerca das diretrizes de governo da coligação de 7 partidos apoiadores da pré-candidatura de Lula.

24/Supostamente, PT, PSOL e PCdoB deveriam ser a ala esquerda da coligação. Mas vem prevalecendo uma postura de “ceder antes da negociação começar”. Concordemos ou não, da parte do PCdoB trata-se de uma atitude perfeitamente coerente com a estratégia geral deste partido. No caso do PSOL, há uma evidente contradição com a atitude adotada por este partido frente aos governos Lula e Dilma e, também, uma contradição com a imagem construída por este partido, de estar supostamente “à esquerda” do PT. Mas como já foi dito por alguém, não se deve medir um partido pelo que ele diz de si mesmo.

25/ No caso do PT, os argumentos para adotar tal postura de “ceder antes de negociar” são variados, mas podem ser resumidos a três:

-primeiro, a clássica “vamos fazer, mas não vamos falar agora disto”

-segundo, a também clássica “vamos ganhar primeiro, depois a gente decide os detalhes do que faremos”

-terceiro, a igualmente clássica afirmação de que “a correlação de forças não é boa e, portanto, precisamos escolher nossas batalhas”;

Os três argumentos, resumidos acima de forma evidentemente grosseira e caricatural, não são descabelados. Nem tudo precisa ser dito, é preciso ganhar primeiro e a correlação de forças realmente é difícil. Mas atenção: há problemas inescapáveis (Petrobrás, forças armadas, segurança pública, agronegócio, setor financeiro e BC) e correlação de forças não se altera espontaneamente. Assim, a conclusão é: as concessões programáticas estão sendo feitas porque prevalece o “espírito de 2002”: achar que é possível melhorar substancialmente a vida do povo essencialmente através de políticas públicas, sem fazer reformas estruturais. Se isto for verdade, ótimo. Se não for, teremos muitos problemas.

26/ Além das dificuldades de mobilização, da ilusão nos aliados e das concessões programáticas, é preciso citar outro problema: em grande número de estados, não teremos candidaturas de esquerda, nem a governador, nem ao senado. Em grande número de estados a esquerda apoia candidaturas de direita, ou de centro, ou abriu espaço nas chapas, ou está um pouco atrapalhada devido a tentativa de fazer ou manter certas alianças

-a esse respeito, vale atenção especial para a situação da Bahia, Ceará, SP, RJ e MG

-a ver qual será a decorrência eleitoral deste movimento (inclusive seu efeito nas campanhas proporcionais) e a ver também qual será a postura dos governadores de centro e direita que venham a ser eleitos

27/ Outro ponto a considerar é a ofensiva neoliberal no Congresso nacional. Esta ofensiva é em parte precaução: a direita busca aproveitar o tempo restante. Mas os efeitos desta ofensiva sobre a campanha e inclusive sobre nosso futuro governo são ou podem ser imensos.

28/ Apesar dos problemas citados e de outros não comentados, continuamos liderando, em parte por qualidades nossas, em parte em decorrência da situação geral do país, em parte devido a imensa confusão do lado de lá:

-crise social

-política econômica

-dificuldades políticas do governo e seus aliados

-conflitos dentro do aparato de Estado (vide a prisão do ex-ministro Milton Ribeiro, ou a “novela” entre FFAA e TSE)

29/ Esses e outros elementos contribuem para a nossa dianteira. Entretanto, apesar dos resultados favoráveis das pesquisas, é preciso reafirmar: a vitória na eleição presidencial não está garantida. Entre outros motivos pelos seguintes: o inimigo não desistiu, não entregou os pontos, luta pela sua (deles) vida e pela sua (deles) liberdade, está motivado, tem força e tem muito ódio.

-atenção para o simbólico Projeto “Desenvolvimento Brasil 2035 – o país que queremos”

30/ O que pode ser feito pelo lado de lá? Primeiro, política. A ênfase com que falamos de “golpe” reflete – além das ameaças reais – a crença de grande parte de nós de que só assim eles poderiam nos derrotar. E essa visão é incorreta. O nosso inimigo ainda pode vencer as eleições. No momento, o esforço principal do cavernícola é levar a eleição para o segundo turno. Para isto podem, entre outras coisas, inflar um pouco (alguns pontos percentuais) a terceira via e a candidatura de Ciro. Cabe lembrar, ainda, a existência de uma grande reserva de eleitores que votam em branco, nulo ou se ausentam das eleições; um movimento de parte destes eleitores pode levar a disputa para o segundo turno. Finalmente, existem os mecanismos tradicionais da política, acessíveis para quem controla a máquina do governo.

31/ Evidentemente, além da política estrito senso, o cavernícola e seus apoiadores vão lançar mão de operações extraordinárias de variados tipos, desde as organizadas pelo “gabinete do ódio”, ações de violência sistemática, sabotagem nas urnas, questionamento do resultado, tumultuar o processo. Sem descartar nunca, pois estamos diante de gente com mentalidade e prática assassina, a hipótese indizível.

32/O que devemos fazer?

-o essencial é massificar a campanha: sobre isto há um acordo muito grande entre todos os setores da esquerda, diferenças outras a parte

-tomar as medidas preventivas para neutralizar operações golpistas

-não baixar a guarda e não acreditar que “já ganhamos”

33/ Além disso, há ações com foco na campanha mas principalmente no day after.

-debate programático (é preciso criar uma correlação de forças que nos permita transformar o país)

-ampliar a organicidade (dos partidos, sindicatos e movimentos) para enfrentar os neoliberais e os neofascistas, que aconteça o que acontecer, seguirão atuando

-construir um polo de esquerda (um dos balanços do ocorrido entre 2003-2016 é: se estaremos diante de um governo em disputa, é preciso travar esta disputa de maneira explícita e organizada)

34/ Finalmente, como não podemos deixar de falar das flores, é preciso pelo menos tentar usar o vice para ganhar votos e apoios do lado de lá. Até agora temos levado o Alckmin para falar para nosso povo. E, vamos reconhecer, cada vez que ele fala cresce a impressão de que este Alckmin estava preso num calabouço e que era seu irmão gêmeo que estava governando São Paulo. Entretanto, cantar a Internacional não ajuda no diálogo com o eleitorado do lado de lá

35/ Temos muitos motivos para ter otimismo e podemos ganhar a eleição, mas como já foi dito não podemos baixar a guarda. E isso inclui lembrar do seguinte: a eleição de Lula abre a possibilidade de retomarmos o processo de transformação do Brasil, soberania, bem-estar social, desenvolvimento e socialismo. Mas para transformar esta possibilidade em realidade, será preciso muito suor e linha justa.

(sem revisão)

2 comentários:

  1. De fato, não temos como "observar" o resultado se outra linha fosse proposta. Mas é certo que os desafios eleitorais e mudança na estrutura (econômica e política) não se resolvem com a mesma tática. E antes de escolher um ou outro (desafio), não seria o caso de pensar em que momento (e como) passar de um desafio a outro!?

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