O texto abaixo foi escrito, no início de 2006, para uma revista teórica marxista chamada Margem Esquerda. No conselho editorial desta revista, prevalece uma posição extremamente crítica ao PT e ao governo Lula. O texto busca dialogar com as tais posições críticas.
Desafios estratégicos, tática possível
O Partido dos Trabalhadores foi fundado em 10 de fevereiro de 1980. Em 1989, encabeçou a Frente Brasil Popular e quase venceu a eleição presidencial daquele ano. Durante a década dos 1990, alcançou uma presença institucional e social equivalente à força que tinham trabalhistas e comunistas na década de 1950. Como expressão disso, mas também como resultado do desgaste político-ideológico das forças neoliberais, a principal liderança do PT foi eleita, em outubro de 2002, presidente da República.
Desde 1989 até 2002, a candidatura de Lula constituiu um ponto de aglutinação para as forças políticas e sociais que denominamos de “campo democrático e popular”. Mesmo com divergências táticas, estratégicas e programáticas, o conjunto da esquerda brasileira encontrava-se então sob a hegemonia da política defendida pelo PT. A partir de 2003, esta situação começou a mudar, abrindo-se um período de contestação àquela hegemonia e de dispersão no campo democrático e popular.
O governo Lula
Embora com nuances e diferentes desdobramentos estratégicos, derrotar a ditadura militar foi o objetivo central da esquerda brasileira nos anos 1970. Já nos anos 1990, nosso objetivo central foi derrotar o neoliberalismo, ou seja: a hegemonia do imperialismo norte-americano, do capital financeiro e da ideologia do Estado mínimo.
A eleição do presidente da República era vista como importante para alcançar aquele objetivo, seja na forma de ruptura com o neoliberalismo (12º Encontro, final de 2001), seja na forma de transição de modelo (Diretório Nacional, início de 2003). Em qualquer dos casos, tratava-se construir, no médio prazo, outra hegemonia política, econômica e cultural. O governo Lula atuou em consonância com isto?
Entre os que respondem “não”, há tanto os que aplaudem quanto os que deploram as opções feitas pelo governo. No primeiro caso, estão os que aderiram ao liberalismo, elogiam a política do governo FHC, propõem uma aliança estratégica entre PT e PSDB, além de defenderem uma política de juros altos, ajuste fiscal permanente e déficit zero. No segundo caso, estão aqueles que consideram que o governo capitulou frente aos interesses dominantes, ao ponto de tornar-se submisso ou até instrumento dos interesses do capital financeiro e do imperialismo norte-americano. Motivo pelo qual defendem que a recomposição do campo popular supõe derrotar o governo Lula e o PT.
Entre os que respondem “sim”, as inegáveis contradições existentes na prática do governo são debitadas na conta dos limites impostos pela correlação de forças e pela herança de dez anos de neoliberalismo, duas décadas perdidas, cinqüenta anos de desenvolvimentismo conservador e quinhentos anos de dominação. Muitos reconhecem, entretanto, a existência de erros na aplicação de uma estratégia geral considerada correta, atual e conforme com o objetivo de construir o pós-neoliberalismo.
Os que respondem “em termos”, consideram que o governo Lula não se organizou em torno de uma estratégia de combate e superação do neoliberalismo. Criticam a adesão de parcelas importantes do governo a concepções e práticas hegemônicas no governo FHC. Ao mesmo tempo, sustentam que a existência do governo Lula seria objetivamente positiva, seja por ter deslocado parte das forças políticas e sociais que ocuparam o governo durante o tucanato; seja por ter detido, retardado ou revertido processos que estavam em curso no governo anterior (como o programa de privatizações, a adesão ao Alca e a repressão aos movimentos sociais). Por estes motivos, argumentam que será mais fácil recompor o campo democrático e popular, nos marcos mesmo que contraditórios de um segundo governo Lula, do que nos marcos de uma derrota eleitoral e de uma contra-ofensiva da direita.
As eleições de 2006
O quadro das eleições de 2006 ainda não está definido, nem em termos de candidaturas, nem em termos de coligações, nem em termos de alternativas programáticas.
As pesquisas divulgadas até fevereiro indicam, entretanto, uma tendência de polarização política e social, entre Lula e quem vier a ser o candidato do PSDB. No tocante a polarização programática, contudo, a situação é mais confusa.
Ao que tudo indica, o debate eleitoral se dará em torno de três grandes eixos: a) a “herança” deixada pelo governo FHC e pelos governos que o precederam; b) as realizações e limites do governo Lula; c) as alternativas propostas, pelas oposições e pela situação, para o mandato presidencial 2007-2010.
Tudo indica que o tema do crescimento será um lugar-comum de todas as candidaturas, mas defendido a partir de ângulos que vão do liberal-conservadorismo até o esquerdismo.
Eleitoralmente, a incógnita principal é saber se surgirá uma candidatura capaz de disputar tanto com o PT quanto com o PSDB. E, em caso positivo, qual a feição político-programática desta candidatura.
As forças políticas que se consideram de esquerda vão estar dividas nas eleições presidenciais. O PT, o PCdoB e o PSB apóiam a candidatura Lula. O PDT e o PPS ainda estão definindo sua tática eleitoral, podendo lançar candidatura própria, fazer alianças entre si ou apoiar outros candidatos. O PSTU, o PSOL, o PCB e o PCO manifestaram intenção de lançar candidatura própria, unificada ou não. A Consulta Popular vive o dilema de anunciar ou não, publicamente, qual resultado eleitoral considera melhor. Setores da intelectualidade desenvolvimentista estão sendo atraídos pelas pré-candidaturas Serra e Garotinho.
O quadro parece extremamente confuso, seja pelas divergências no balanço do governo Lula, quanto sobre o que poderia ser um segundo mandato. Mas, quando se observa o conjunto da América Latina e Caribenha, obtém-se maior nitidez.
Vivemos um período de avanço da esquerda política e social em nosso continente. Este avanço poderá ser aprofundado em 2006, principalmente com o resultado das eleições no Peru (abril), Colômbia (maio), México (julho), Equador (outubro) e Nicarágua (novembro). Mas também poderá ser retardado ou revertido, especialmente se a esquerda perder as posições conquistadas no Brasil (outubro) e na Venezuela (dezembro). Está claro, por exemplo, que a eventual vitória do PSDB facilitaria a estratégia do governo norte-americano.
Nesse quadro, seja por concordar com o que foi feito no primeiro mandato; seja por acreditar nas possibilidades de um segundo mandato melhor; ou simplesmente por autodefesa contra a reação tucano-pefelista, o mais provável é que a maior parte da esquerda brasileira, no primeiro ou no segundo turno, vote em Lula.
Mesmo que isso ocorra, entretanto, as divergências sobre o governo e sobre o PT terão prosseguimento, podendo inclusive se tornar mais profundas, a depender das características e das opções do futuro governo.
O Partido dos Trabalhadores
As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas pela dispersão político-organizativa da esquerda brasileira. Essa dispersão foi sendo superada, ao longo dos anos 1980, em grande medida devido a um duplo impulso: de um lado, a emergência da mobilização popular, com epicentro no proletariado industrial; de outro, a divisão da burguesia, frente a uma conjuntura de fortes lutas, fim da ditadura, crise de modelo e pressões neoliberais.
Como resultado, foi possível constituir um pólo democrático e popular de massas, fortemente influenciado pelo socialismo e estrategicamente independente. Ao longo da década de 1990, este pólo, encabeçado pelo PT, capitaneou a oposição ao neoliberalismo, até vencer as eleições presidenciais de 2002.
As opções feitas pelo governo Lula deitam suas raízes na trajetória seguida pelo PT, especialmente desde 1995, com destaque para três opções: pela disputa eleitoral-institucional, em detrimento da organização e mobilização social; pela ampliação das alianças, em direção aos partidos de centro e em direção a setores do grande empresariado; por um programa organizado, em tese, em torno do combate ao neoliberalismo e não mais em torno do socialismo.
É importante dizer que tais opções foram apoiadas por amplos setores da esquerda brasileira, inclusive por muitos que hoje saíram do PT. Afinal, pareciam constituir respostas de bom senso às difíceis condições, econômicas, políticas e ideológicas, vigentes na década dos 1990.
É o caso das alterações programáticas. Relativizar, ao ponto da descaracterização, o objetivo final socialista e deixar de lado o vocabulário antilatifundiário, antimonopolista e antiimperialista parecia ser condição prévia ao diálogo com os setores “produtivos” do Capital e com os partidos de centro, com os quais se pretendia fazer uma frente contra o capital financeiro.
É o caso, também, das alterações organizativas. A redução das características militantes do Partido (tais como a eleição das direções em congresso, formação política e imprensa partidária) e sua subordinação quase exclusiva à lógica eleitoral-institucional (com seus sucedâneos: a dependência dos recursos estatais e de grandes empresas, a subordinação do partido aos mandatos executivos e legislativos, o cretinismo parlamentar) pareciam um “mal necessário” frente ao retrocesso ocorrido na década dos 1990, nos padrões de militância e de compromisso ideológico existentes nas classes trabalhadoras.
Setores minoritários do PT denunciaram, ao longo dos anos noventa, que aquelas opções terminariam resultando no oposto do que se dizia pretender. Por exemplo, que as concessões feitas para viabilizar uma suposta aliança estratégica com o capital “produtivo” terminariam resultando em concessões ao capital financeiro. Mas só com a crise de 2005 ficaram mais claros os custos estratégicos daquela política, que parece capaz de eleger (e reeleger) um presidente, mas não está se demonstrando capaz de derrotar a hegemonia neoliberal, acumular poder para as classes trabalhadoras e construir um caminho para o socialismo.
É esta incapacidade estratégica que está na base da atual dispersão da esquerda. A dispersão pode se agravar: a) caso Lula perca as eleições de 2006, uma vez que isso abrirá passo para uma ofensiva da direita, que dificultará ainda mais o reagrupamento da esquerda (como o golpe de 1964 também dificultou); b) caso Lula seja reeleito, mas faça um segundo mandato semelhante ou inferior ao primeiro.
Neste caso e mantido o padrão observado no século XX, a dispersão durará até que surja um novo fator de aglutinação (como a emergência do movimento de massas, no final dos anos 1970) e se construa um novo partido hegemônico, como ocorreu com o comunismo em relação ao anarquismo; e com o petismo em relação ao comunismo.
Existe, também, a possibilidade da dispersão ser revertida: a) caso Lula seja reeleito e faça um segundo mandato semelhante ao primeiro, mas com o PT assumindo uma postura de real autonomia frente ao governo; b) caso Lula seja reeleito e faça um segundo mandato superior ao primeiro, no sentido de combater e superar a hegemonia neoliberal.
O reagrupamento da esquerda socialista pode se dar em torno do PT ou em torno de outra organização político-partidária. Mas tanto num como noutro caso, o processo de crítica, autocrítica e recuperação ocupará os esforços de uma geração, salvo ocorra algum fenômeno que acelere o tempo histórico.
Quais as chances do reagrupamento ocorrer em torno do próprio PT? Perguntando de outra maneira: o PT ainda possui, no seu interior, as energias necessárias para sua própria superação? Existe esperança para os que querem evitar o desperdício de 25 anos de energia social acumulada?
Sobre esta questão, há quem defenda que o PT deve concluir sua metamorfose num partido social-democrata de novo tipo, o que tornaria possível uma aliança sólida com o PSDB, ao estilo da “Concertación” chilena. Há os que pensam que a metamorfose já se concluiu, existindo espaço para a construção de um novo “sujeito político” de esquerda e socialista. E existem os que lutam para deter e reverter a metamorfose, fazendo com que o PT (ou parte importante dele) sirva de base para o reagrupamento da esquerda e do campo democrático e popular.
A prevalência desta ou daquela alternativa dependerá de variáveis “objetivas” e “subjetivas”. Dentre estas últimas, destacam-se três: a) o balanço (crítico, acrítico ou destrutivo) que a esquerda brasileira, o PT em particular, fará do governo Lula; b) a relação (autonomia, subordinação ou endeusamento) entre o lulismo e a esquerda brasileira, o petismo em particular; c) a capacidade de elaboração teórica, programática e estratégica.
Estratégia socialista
Nos anos 1980, o PT alcançou a hegemonia no interior da classe trabalhadora e da esquerda brasileira. Pode mantê-la ou não, ao longo da primeira década do terceiro milênio. E pode fazê-lo enquanto partido eleitoral tradicional ou enquanto partido socialista. Não se deve confundir uma e outra coisa. A classe trabalhadora não é naturalmente, nem espontaneamente socialista. Ela é potencialmente socialista. Portanto, sua organização em partido político de massas não obrigatoriamente resulta num partido socialista. E, por ser socialista, uma organização política não tem influência garantida junto à classe trabalhadora.
No momento, a classe trabalhadora encontra-se sob forte influência ideológica neoliberal, fato que se combina e em parte decorre da alteração ocorrida nas condições objetivas e subjetivas de existência da classe, ao longo da década de 1990. Este é o limite objetivo imposto a todos os que estão insatisfeitos com a situação atual do PT: romper com o Partido não cria as condições objetivas e subjetivas necessárias para a sua superação; mas pode produzir uma ruptura com os setores mais conscientes da classe trabalhadora, que possuem um alto nível de lealdade ao PT e inclusive ao Lula.
Claro que a situação atual é passageira, como foram passageiras outras situações defensivas. A questão é: uma nova onda de lutas populares encontrará uma esquerda brasileira crítica e autocrítica de sua própria trajetória, em particular das formulações estratégicas e programáticas que estão na base dos problemas atuais? Capaz de enfrentar problemas teóricos e políticos de enorme envergadura, tais como a análise do capitalismo contemporâneo, o balanço das tentativas de construção do socialismo ou a elaboração de uma estratégia socialista adequada às condições do país e de nossa época? Capaz de enfrentar o liberalismo, sem cair no desenvolvimentismo, no isolamento ou no academicismo?
Observando as contradições e limites existentes em todas as suas organizações e setores, nada indica que a esquerda fora do PT tenha mais e melhores condições que a esquerda dentro do PT, para enfrentar tais desafios.
No Brasil dos anos 1980, a esquerda (o PT inclusive) cresceu politicamente sem produzir uma elaboração teórica compatível. Fez isso de novo nos anos 1990, quando ocorreu uma ampliação da força eleitoral-institucional dos partidos e organizações da classe trabalhadora, apesar da ofensiva neoliberal e da crise do socialismo. Nas duas situações, prevaleceu na esquerda brasileira a “lei do mínimo esforço teórico”. O que ajuda a entender a imensa influência que teses liberais mantiveram sobre o PT e outros setores da esquerda, ao longo desses anos todos e especialmente agora.
A solução para tais problemas não brotará da recomendável releitura dos “clássicos da revolução brasileira”, que não farão agora o que não fizeram antes. Não surgirá da negação da política, como fazem os que debitam os problemas, exclusiva ou principalmente, ao acúmulo de forças pela via eleitoral-institucional, esquecendo o que está se passando na Venezuela e na Bolívia. Nem brotará de uma crítica economicista à política econômica de Palocci, que deve ser duramente criticada, mas como parte de uma estratégia política incorreta. Tampouco se deve atribuir à desejada retomada dos movimentos sociais o que estes já mostraram que não podem oferecer.
Enfim, não há solução fácil nem rápida para os impasses estratégicos da esquerda. Podemos começar não aumentando as dificuldades e não facilitando o jogo do imperialismo e da direita, nas eleições presidenciais de 2006. Quatro letras bastam.
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