quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Haddad, um ministro 100% sem tabus. Ou quase..

Fernando Haddad, ministro da Fazenda, concedeu uma entrevista à jornalista Monica Bergamo.

A entrevista pode ser lida aqui:

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2024/10/haddad-diz-que-batata-quente-dos-gastos-virou-prioridade-nos-debates-com-lula.shtml

Há, também, trechos da entrevista em em vídeo.

Aqui:

https://youtu.be/hvu2mKPsVEg?si=r826DQ9iD_xVWYhj

E aqui:

https://youtu.be/aLn1IrBUH_g?si=g4ZNhBHuTpUjJOI8

Lendo a entrevista, uma dúvida nova somou-se à uma dúvida velha.

A dúvida velha é: por qual motivo atribuir, a um nosso potencial candidato à presidência, a tarefa de fazer cortes e ajustes?

A dúvida nova é: por qual motivo dar notícias ruins bem na véspera do segundo turno das eleições municipais?

Alguma razão deve existir, afinal de contas tanto Lula quanto Haddad não são propriamente inexperientes. Mas como mesmo os mais tarimbados cometem seus erros, sigo em dúvida.

Além das dúvidas citadas, fiquei com duas certezas.

Primeiro: Haddad é mesmo o mais tucano dos petistas. É isso que explica não apenas o diagnóstico que ele faz da situação, como também seu sincericídio quanto a Faria Lima.

Segundo: se depender da política atualmente adotada pela Fazenda, o Brasil passará bem longe de qualquer coisa que se possa chamar de desenvolvimento. Aliás, a palavra “desenvolvimento” nem ao menos comparece na versão editada da entrevista.

Isto posto, alguns comentários sobre a entrevista, que reproduzo na íntegra ao final.

A entrevista abre como de costume: ...as receitas cresceram, mas os gastos estruturais também. Em consequência, a dívida pública aumentou, bem como as dúvidas sobre sua sustentabilidade...

Ao responder, Haddad simplesmente desconsidera que nosso maior “gasto estrutural” - e descontrolado - está relacionado com os juros, com o serviço da dívida, com a Faria Lima. 

Esta omissão é fatal e contamina tudo o que vem a seguir.

Para além disso, Haddad parte do pressuposto de que o diagnóstico implícito na pergunta é verdadeiro, ou seja, de que há mesmo um descontrole nas despesas, um “desequilíbrio fiscal”. 

Aliás, foi desse pressuposto que nasceram os números mágicos de 70% e 2,5%.

A soma do Tico com o Teco– aceitar como inevitável a sangria financeira e admitir a existência de um desequilíbrio – produz o resultado óbvio: a saída estaria em cortar.

Nós já sabemos o que acontece quando um governo de esquerda tenta fazer isso, como aconteceu na época de Palocci e na época de Levy. Acho que Haddad também sabe, mas ele parece estar mais preocupado com o Estado do que com o governo...

Aliás, quando aconteceu o debate sobre o Novo “Calabouço” Fiscal, um setor do PT alertou os problemas que decorreriam da opção pela contenção de gastos. 

Um dos alertas foi: no médio prazo isso vai reduzir a presença do setor público. E isso seria um desastre, pois o país precisa exatamente do contrário: aumentar o investimento público.

Em resposta a esta e a outras críticas, a equipe do Ministério da Fazenda, ou tergiversou, ou apostou que as receitas cresceriam o suficiente para evitar tal cenário. 

Na entrevista, Haddad reconhece parte da verdade: “Até aqui, deu certo”, mas a partir de agora precisa cortar na carne.

Um “detalhe” revelador, antes de seguir para a próxima pergunta. 

Haddad diz que o “déficit veio para alguma coisa em torno de 1% do PIB, excetuada a despesa extraordinária com queimadas, que é pequena em relação ao orçamento, e com o Rio Grande do Sul [por causa das enchentes]. Despesa da qual me orgulho: a economia gaúcha está em franca recuperação”.

Situações como a das queimadas, das enchentes e, acrescento, dos apagões, não são “extraordinárias”. Em diversas áreas da economia e da sociedade brasileiras, estamos em situação limite. A política de “apagar incêndio” através de recursos que não contam para os limites pode fazer a alegria de algum cabeça de planilha desavisado, mas não resolve de maneira estrutural os problemas do país.

Voltemos à entrevista.

A segunda pergunta foi uma afirmativa: “Mas há apreensão pois a dívida pública cresce”.

A resposta dada por Haddad foi a seguinte: “A Faria Lima está, com razão, preocupada com a dinâmica do gasto daqui para a frente. E é legítimo considerar isso com seriedade. A soma das partes, das rubricas orçamentárias, pode fazer com que o arcabouço fiscal aprovado por este governo não se sustente. O que a Faria Lima está apontando —na minha opinião, com algum exagero em relação ao preço dos ativos brasileiros — é que a dinâmica [dos gastos] para a frente é preocupante. Pode ter impacto na dívida [que a União tem que fazer para financiar seus gastos]. E o governo tem que tomar providências. A Fazenda está com isso na mesa, 100%.”

Talvez por não acreditar no que ouviu, a jornalista insiste: “Com a mesma preocupação?”

Haddad não se faz de rogado e responde: “A mesma preocupação. Desde fevereiro estamos tomando algumas medidas —que não são suficientes para endereçar esse problema para o futuro próximo. E eu tenho conversado com o presidente Lula sobre esse tema específico”.

Tudo bem que o ministro da Fazenda tenha que dialogar com a Faria Lima. Mas o que Haddad comete nessa entrevista me lembra algo que me contaram, certa vez, acerca de uma reunião de Palocci com o setor financeiro: ele foi negociar e voltou vendido. E rendido.

Simplesmente não é verdade que Faria Lima tenha razão para estar preocupada com absolutamente nada. A Faria Lima não está exagerando. Ela está falsificando os fatos. A dinâmica fiscal não é preocupante. A Faria Lima está fazendo terrorismo. Estão no papel deles. O papel do ministro da Fazenda deveria ser o de enfrentar o terrorismo. Mas não. O que Haddad diz, textualmente, é que está 100% com a mesma preocupação da Faria Lima.

Ao responder a pergunta seguinte, Haddad fala da “dinâmica dos gastos e do impacto disso sobre a dívida. O impacto é o efeito monetário da política fiscal. Quando as pessoas perdem a certeza de que o governo está endereçando esses temas, elas começam a cobrar um prêmio de risco em juros”.

Para muita gente, o que foi transcrito anteriormente pode soar meio esotérico. Seja como for, Haddad sempre disse que o Arcabouço Fiscal era essencial, entre outros motivos, porque supostamente ele permitiria baixar os juros. E, com juros baixos, a economia poderia crescer. Ou seja, a política fiscal incidiria positivamente na política monetária.

O que ele está dizendo agora, quase dois anos depois, é a mesma coisa que antes. E vai continuar dizendo a mesmíssima coisa enquanto for ministro, porque pelo visto ele realmente acredita que “as pessoas” cobram juros altos porque “perdem a certeza” de que o governo está mantendo os “gastos” sob controle.

A realidade é outra. O mercado financeiro sempre vai dizer que os gastos estão descontrolados e, enquanto eles tiverem poder, vão cobrar o “prêmio” que puderem arrancar, doa a quem doer. 

O papel do ministro da Fazenda deveria ser, na melhor das hipóteses, o de mediar. Mas o que Haddad faz, nesta entrevista, é capitular 100%.

Mesmo quando a entrevistadora levanta a bola, ele não aproveita. Pergunta a entrevistadora: “... hoje os juros da dívida pública pagos pelo governo estão em torno de 7%, o dobro do PIB....”.

Responde Haddad: “É esse o problema. Você tem que endereçar corretamente. Tem que dar credibilidade para a dinâmica futura [de gastos e da dívida feita para financiá-los] para trazer esses juros ao patamar adequado. Caso contrário, o teu problema não vai ser de déficit primário [diferença entre arrecadação e gastos do governo], mas de déficit nominal, que inclui o pagamento de juros. Eu sempre disse, e repito: a política monetária e a fiscal têm que estar harmonizadas. Ou você produz um ciclo vicioso do qual é difícil de sair. Onde está a virtude? Em continuar fazendo o que é o mantra da Fazenda: as receitas têm que voltar ao patamar adequado para financiar [os gastos], combatendo jabutis que favorecem grupos específicos, por exemplo”.

Leiam novamente o que está respondido acima e procurem alguma reclamação contra os juros artificialmente altos. Não acharão. O “mantra” trata os juros, a dívida e o setor financeiro como variável intocável.

O resultado deste combo é a volta da lógica Palocci: a despesa tem que ser menor do que a receita, assim geramos superávit, desta forma a taxa de juros vai cair e, feito o dever de casa, o setor privado vai comandar o crescimento.

Chega a ser engraçado ver Haddad dizendo que a taxa de juros “vinha caindo até o final de 2023”. Sim, vinha caindo... de um ponto da estratosfera para outro ponto da estratosfera.

Perguntado sobre o que fala com Lula, Haddad dá uma resposta também muito didática: “Falo o seguinte: o mercado está entendendo que a soma das partes —a soma do salário mínimo, saúde, educação, BPC— é maior do que o todo. Ou seja, vai chegar uma hora em que esse limite de 2,5% [de crescimento da despesa em relação ao da receita] não vai ser respeitado. Ainda que a receita responda, o arcabouço fiscal não vai funcionar se a despesa não estiver limitada. Eu falo para o presidente exatamente o que estou falando para você. Que precisa ajustar a despesa. Nós precisamos enfrentar essa questão para as pessoas enxergarem que as somas das partes vai caber no todo”.

Ou seja: o ministro da Fazenda fala para o presidente aquilo que “o mercado” está entendendo. E propõe “ajustar a despesa” para “as pessoas” enxergarem que “a soma das partes vai caber no todo”. 

As “pessoas”, como já foi explicado anteriormente, são os grandes detentores da dívida pública.

O problema é que estas “pessoas” sempre entenderam assim; elas sempre quiseram, defenderam e lutaram por um Estado menor.

Aliás, é revelador que Hadad tenha enumerado como “partes” cuja soma é maior do que o todo exatamente o salário mínimo, a saúde, a educação e o BPC

É aí que o mercado quer cortar.

Haddad, como se sabe, é um estadista. Por isso ele explicita que sua preocupação não é com o governo Lula, mas com o Estado brasileiro. Palavras dele: “O que eu estou dizendo agora para ele [Lula] é: 'Olha, o senhor é um presidente de quatro, oito anos, não importa. Mas nós estamos cuidando do Estado brasileiro, para além do seu mandato. As pessoas não estão olhando só para 2026. O mercado financeiro olha para 2027, para 2028, para 2029, para 2030. Vê a trajetória da dívida [em alta] e muitas vezes cobra à vista [exigindo juros maiores] o problema [que vai estourar mais à frente e] que ela está antecipando'. É natural. Estou mostrando ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário que nós temos que equacionar estruturalmente as finanças do país. Caso contrário, o mercado, que não está pensando em governo, está pensando na rentabilidade dos seus ativos, antecipa decisões e prejudica o presente. Então, não há como contornar o problema. Você pode fazer isso por um, dois, seis meses. Mas não vai conseguir equacionar”.

Quatro ou oito anos, não importa???!!!

Volto a dizer: qualquer ministro da Fazenda é obrigado a ter alguma empatia com os interesses do grande capital, assim como o diretor de um presídio de alta segurança precisa ter alguma empatia com os que estão sob sua guarda. Mas Haddad exagera na empatia. 

Não falo apenas de sua insistência em falar de “pessoas”, para se referir ao mercado financeiro, ao mesmo tempo em que não fala nada, absolutamente nada, acerca das pessoas que serão prejudicadas pelos ajustes nos gastos. 

Quando falo do exagero na empatia, refiro-me a tratar como “natural” a chantagem dos interesses de curto prazo do mercado financeiro.

Releiam: “(...) nós estamos cuidando do Estado brasileiro, para além do seu mandato (...) o mercado financeiro (...) Vê a trajetória da dívida [em alta] e muitas vezes cobra à vista [exigindo juros maiores] o problema [que vai estourar mais à frente e] que ela está antecipando'. É natural. (...) temos que equacionar estruturalmente as finanças do país. Caso contrário, o mercado, que não está pensando em governo, está pensando na rentabilidade dos seus ativos, antecipa decisões e prejudica o presente (...)”.

Vou dizer de outra forma: há diferentes formas de “equacionar estruturalmente as finanças do Brasil”. A forma que considera “natural” a lógica da “rentabilidade dos ativos” tem como efeito desestruturar ainda mais a pequena parte do Estado que pode servir ao povo.

Não sei se Haddad vai convencer Lula.

Espero que não. 

Mas acho revelador que Haddad apresente Lula como “o campeão do superávit primário em seus oito anos de governo”. 

A questão é: há maneiras e maneiras de produzir superávit primário e reduzir a dívida. É possível, por exemplo, combinar superávit com recessão, ou com crescimento baixo ou com crescimento alto. 

Haddad parece ter escolhido a mediocridade e vende isso como se fosse um grande sucesso. O Brasil precisa de crescimento muito alto, por décadas, combinado com ampliação do bem-estar. Precisamos de desenvolvimento. Tema que, como já foi dito, não comparece, ao menos na versão editada da entrevista.

Ademais, vamos combinar, o que interessa para a imensa maioria da população não é o superávit primário, mas sim o desenvolvimento, a ampliação do bem-estar social. Uma célebre economista talvez lembrasse que povo não come superávit primário.

Na entrevista, Haddad chega ao ponto de defender Fernando Henrique, negando a existência de uma "herança maldita" e se atrapalhando quando lembrado, pela jornalista, que o próprio Lula usava a expressão "herança maldita".

A entrevista de Haddad é particularmente importante, também, porque mais uma vez alguém da Fazenda diz de público o que tergiversa ou nega nas conversas privadas. 

Perguntado explicitamente sobre vinculação dos gastos de educação e saúde ao aumento da receita, indexação do salário mínimo, BPC e seguro desemprego Haddad diz o seguinte: "O governo, e eu não me excluo, demorou a perceber o grau de disfuncionalidade causado pela alteração de alguns programas. Desde 2021 houve a PEC do Calote [que adiou o pagamento de precatórios], a retirada de filtros do BPC e do Bolsa Família [para a concessão dos benefícios], a ampliação do Fundeb [fundo da educação básica] de R$ 22 bilhões para quase R$ 70 bilhões em 2026 sem fonte de financiamento. Ou seja, muitas das despesas que se pretende cortar foram contratadas antes de o Lula tomar posse. Quando vê isso, o presidente fala assim: 'Pô, mas eu vou cortar dos pobres?'. Percebe a situação?” [Eu digo a Lula] 'Ninguém está dizendo que é fácil. O senhor colocou o pobre no orçamento, ninguém está pedindo para tirar. Mas há questões estruturais que precisam ser resolvidas. Porque são distorções muitas vezes criadas com finalidades eleitorais, particularmente pelo governo anterior. Elas estão no nosso colo. Não tem pra quem dar a batata quente. Então temos que resolver".

Repito aqui o trecho mais mágico: "O senhor colocou o pobre no orçamento, ninguém está pedindo para tirar. Mas...".

Na narrativa que Haddad vai alinhavando, vinculação dos gastos de educação e saúde ao aumento da receita, indexação do salário mínimo, BPC e seguro desemprego entram no mesmo combo das distorções com finalidades eleitorais.

O nome disto é influência do pensamento hegemônico. O mais tucano dos petistas está demonstrando merecer o apelido carinhoso.

Definitivamente, a vida do presidente Lula é difícil. Seu ministro diz publicamente que, “na condição de ministro da Fazenda", "tem a obrigação de informar ao público as preocupações da área econômica. Mas não posso antecipar decisões que vão ser tomadas pelo chefe do executivo”.

Ou seja: o ministro tem a "obrigação" de se reportar “ao público” através da Folha. Leia-se, fazer pressão pública. E o presidente que decida como lidar com a “batata quente”.

Bom, se o ministro considera ter essa obrigação, considero como obrigação dos que discordam disso é vir à público e se manifestar.

Haddad é um cara muito inteligente, sem dúvida. Talvez por isso, ele confie que seria possível cortar, sem mexer com os mais pobres: “Há uma forma inteligente de endereçar o problema. Do mesmo jeito que a gente fez o país crescer 3%, e ninguém acreditava [que isso seria possível]”.

Sem querer empanar seu (dele) otimismo, um dos problemas é que Haddad não percebe que o crescimento obtido veio, em parte, da mesma fonte que ele agora quer cortar. Leiam a sequência abaixo.

Pergunta: Mas cresce justamente pela expansão do gasto público...

Resposta: "[interrompendo] Não, não é verdade. O impulso fiscal desse ano é menor do que o do ano passado. Como é que então vai explicar o crescimento pelo gasto? As pessoas estão desconsiderando que nós estamos fazendo a maior reforma tributária da história desse país. A maior reforma de crédito da história desse país. Que nós estamos reformulando o setor de seguros. Que o crédito vai expandir mais de 10%, acima das receitas. Por que setor após setor tem encontros com o presidente da República no Palácio do Planalto pra anunciar investimentos da ordem de R$ 90 bilhões, R$ 120 bilhões, se a incerteza é tão grande? Será que é?"

Por qual motivo negar ou minimizar a influência do investimento público nas taxas de crescimento? Aliás, porque aceitar, sem mediações, o termo "gasto"?

A resposta é: para melhor justificar os cortes, é preciso apresentar como “gasto” inclusive aquilo que na verdade é investimento. Do contrário, ficaria evidente que o corte nos investimentos vai prejudicar o crescimento (sem discutir a qualidade deste investimento). 

Como reconhece Haddad, o “papel do ministro da Fazenda não é só (sic) apresentar uma planilha para o presidente”: é preciso “convencer a opinião pública”.

Haddad tem perfeito noção dos efeitos que podem decorrer de cortes nos "gastos". Vejamos o que ele diz, na entrevista, a respeito disso: o que mais protege os mais pobres é crescimento com baixa inflação. Sem crescimento, não tem como fazer ajuste nenhum em um país como o Brasil. É inviável politicamente. Temos então que combinar tudo isso. Às vezes o caminho é um pouquinho mais longo do que um economista ortodoxo gostaria. Mas ele é mais saudável do ponto de vista político, econômico e social. Olha o que está acontecendo na Argentina: 60% das pessoas [vivem hoje] abaixo da linha da pobreza. Não sei quantas passam fome. Uma coisa é o [presidente da Argentina, Javier] Milei fazer isso. Outra coisa é o Lula fazer isso”.

A primeira coisa a destacar no raciocínio acima é a frase "sem crescimento não tem como fazer ajuste". Do jeito que está dito, é como se o objetivo fosse o ajuste; e não o crescimento, o desenvolvimento, o bem estar, o que quer que seja.

A segunda coisa a destacar é a comparação com a Argentina. 

O raciocínio segundo o qual "uma coisa é o [presidente da Argentina, Javier] Milei fazer isso. Outra coisa é o Lula fazer isso”, do jeito que foi apresentado, pode levar a concluir que a diferença estaria na brutalidade do ajuste, não na sua natureza. E o que diferencia Milei de Lula não é apenas o como, mas também e principalmente quê se está fazendo.

Provavelmente Haddad (e seus apoiadores) vão concordar com isso que acabei de dizer e debitar minha crítica à má interpretação. Mas, lendo e relendo a entrevista, encontro inúmeros trechos que confirmam que o uso do cachimbo está deixando a boca torta.

Para terminar esta glosa, cito a seguinte pergunta feita por Monica Bergamo: “que gastos são "imexíveis" para o presidente Lula?”

Haddad responde que “não existe tabu para a área técnica”.

Não tem tabu, mas tem torcicolo: a área "técnica" não consegue olhar em direção ao gastos impostos pelas "pessoas" do mercado financeiro. E se não derrotarmos estas "pessoas", não teremos bem-estar, não teremos soberania, não teremos desenvolvimento.

Mas seguramente teremos tucanos e calabouços.

 

 Segue a transcrição da entrevista

(como foi feita na base do copia e cola, pode ter algum erro)

 

Há quase dois anos o senhor parece exclusivamente correr atrás de receitas. Elas cresceram, mas os gastos estruturais também. Em consequência, a dívida pública aumentou, bem como as dúvidas sobre sua sustentabilidade. Há limites técnicos e políticos tanto para novo aumento de receitas quanto para a reestruturação dos gastos. Que cartas o senhor ainda tem na manga para enfrentar o problema?

Vamos lembrar alguns indicadores importantes. A deterioração da base fiscal do Estado começou lá atrás, em 2015. Perdurou e piorou até 2023. Recebi um orçamento do governo anterior com previsão de receitas na casa de 17% do PIB, o pior da série histórica. A despesa estava na casa de 19,5% do PIB. A maquiagem de 2022 passou a impressão para a sociedade de que tínhamos um equilíbrio fiscal. Mas ele foi construído com base no calote de precatórios e em privatizações açodadas que geraram receitas que não se repetiriam nos anos seguintes. O que fizemos? Nós estabelecemos um teto de gastos determinando que a despesa não pode crescer acima de 70% da receita. E dentro do limite de 2,5%. A diferença vai recompor as contas públicas deterioradas. Até aqui, deu certo. O déficit veio para alguma coisa em torno de 1% do PIB, excetuada a despesa extraordinária com queimadas, que é pequena em relação ao orçamento, e com o Rio Grande do Sul [por causa das enchentes]. Despesa da qual me orgulho: a economia gaúcha está em franca recuperação. Então a meta deste ano está sendo mantida. E se não fossem dois episódios da política —como você coloca bem em sua pergunta— , que foi [o Congresso] estender a desoneração da folha [de pagamentos de salários] aos municípios de até 156 mil habitantes e o Perse [programa de retomada do setor de eventos que previa isenções], nós estaríamos hoje em equilíbrio fiscal.

Mas há apreensão pois a dívida pública cresce.

A Faria Lima [avenida de SP onde se concentram agentes do mercado financeiro] está, com razão, preocupada com a dinâmica do gasto daqui para a frente. E é legítimo considerar isso com seriedade. A soma das partes, das rubricas orçamentárias, pode fazer com que o arcabouço fiscal aprovado por este governo não se sustente. O que a Faria Lima está apontando —na minha opinião, com algum exagero em relação ao preço dos ativos brasileiros — é que a dinâmica [dos gastos] para a frente é preocupante. Pode ter impacto na dívida [que a União tem que fazer para financiar seus gastos]. E o governo tem que tomar providências. A Fazenda está com isso na mesa, 100%.

Com a mesma preocupação?

A mesma preocupação. Desde fevereiro estamos tomando algumas medidas —que não são suficientes para endereçar esse problema para o futuro próximo. E eu tenho conversado com o presidente Lula sobre esse tema específico.

Da dívida pública?

Da questão da dinâmica dos gastos e do impacto disso sobre a dívida. O impacto é o efeito monetário da política fiscal. Quando as pessoas perdem a certeza de que o governo está endereçando esses temas, elas começam a cobrar um prêmio de risco em juros.

E alto: hoje os juros da dívida pública pagos pelo governo estão em torno de 7%, o dobro do PIB.

É esse o problema. Você tem que endereçar corretamente. Tem que dar credibilidade para a dinâmica futura [de gastos e da dívida feita para financiá-los] para trazer esses juros ao patamar adequado. Caso contrário, o teu problema não vai ser de déficit primário [diferença entre arrecadação e gastos do governo], mas de déficit nominal, que inclui o pagamento de juros. Eu sempre disse, e repito: a política monetária e a fiscal têm que estar harmonizadas. Ou você produz um ciclo vicioso do qual é difícil de sair. Onde está a virtude? Em continuar fazendo o que é o mantra da Fazenda: as receitas têm que voltar ao patamar adequado para financiar [os gastos], combatendo jabutis que favorecem grupos específicos, por exemplo.

Em que patamar do PIB o senhor acha que a receita deve ser estabelecida?

Na casa de 19% do PIB. E a despesa, obviamente, tem que ser menor do que 19% do PIB, para gerarmos superávit. Se conseguirmos fazer isso, a taxa de juros vai voltar a cair, como vinha caindo até o final de 2023.

E o que o senhor está falando com o Lula?

Falo o seguinte: o mercado está entendendo que a soma das partes —a soma do salário mínimo, saúde, educação, BPC— é maior do que o todo. Ou seja, vai chegar uma hora em que esse limite de 2,5% [de crescimento da despesa em relação ao da receita] não vai ser respeitado. Ainda que a receita responda, o arcabouço fiscal não vai funcionar se a despesa não estiver limitada. Eu falo para o presidente exatamente o que estou falando para você. Que precisa ajustar a despesa. Nós precisamos enfrentar essa questão para as pessoas enxergarem que as somas das partes vai caber no todo.

E que despesas ele então concorda em ajustar?

Ele tomou providências em relação ao orçamento do ano que vem. O que eu estou dizendo agora para ele é: 'Olha, o senhor é um presidente de quatro, oito anos, não importa. Mas nós estamos cuidando do Estado brasileiro, para além do seu mandato. As pessoas não estão olhando só para 2026. O mercado financeiro olha para 2027, para 2028, para 2029, para 2030. Vê a trajetória da dívida [em alta] e muitas vezes cobra à vista [exigindo juros maiores] o problema [que vai estourar mais à frente e] que ela está antecipando'. É natural. Estou mostrando ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário que nós temos que equacionar estruturalmente as finanças do país. Caso contrário, o mercado, que não está pensando em governo, está pensando na rentabilidade dos seus ativos, antecipa decisões e prejudica o presente. Então, não há como contornar o problema. Você pode fazer isso por um, dois, seis meses. Mas não vai conseguir equacionar.

E o presidente se convenceu?

Nós estamos conversando. Estamos tendo mais tempo para isso, até em função do recesso do Legislativo por causa das eleições. O presidente foi o campeão do superávit primário em seus oito anos de governo [anteriores, de 2002 a 2010]. Foi a pessoa que mais reduziu a dívida pública, e tem orgulho disso. Agora, é óbvio que o que ele herdou do governo Bolsonaro é completamente diferente do que o que ele herdou do [governo] Fernando Henrique Cardoso.

Aquela herança maldita do governo FHC, portanto, não era assim tão maldita?

Eu nunca usei essa expressão. Tem que cobrar de quem usou.

O Lula usou.

Eu realmente não sei. Mas nada é comparável ao que aconteceu de 2015 para cá.

O presidente Lula não parece disposto a mexer na vinculação dos gastos de educação e saúde ao aumento da receita, na indexação do salário mínimo, no BPC, no seguro desemprego. Ou seja, em um conjunto de gastos que só cresce e que é apontado como causador do problema estrutural da dívida.

O governo, e eu não me excluo, demorou a perceber o grau de disfuncionalidade causado pela alteração de alguns programas. Desde 2021 houve a PEC do Calote [que adiou o pagamento de precatórios], a retirada de filtros do BPC e do Bolsa Família [para a concessão dos benefícios], a ampliação do Fundeb [fundo da educação básica] de R$ 22 bilhões para quase R$ 70 bilhões em 2026 sem fonte de financiamento. Ou seja, muitas das despesas que se pretende cortar foram contratadas antes de o Lula tomar posse. Quando vê isso, o presidente fala assim: 'Pô, mas eu vou cortar dos pobres?'. Percebe a situação?

E então?

[Eu digo a Lula] 'Ninguém está dizendo que é fácil. O senhor colocou o pobre no orçamento, ninguém está pedindo para tirar. Mas há questões estruturais que precisam ser resolvidas. Porque são distorções muitas vezes criadas com finalidades eleitorais, particularmente pelo governo anterior. Elas estão no nosso colo. Não tem pra quem dar a batata quente. Então temos que resolver".

Mas o que será feito, afinal?

Eu estou aqui na condição de ministro da Fazenda que tem a obrigação de informar ao público as preocupações da área econômica. Mas não posso antecipar decisões que vão ser tomadas pelo chefe do executivo.

E como fazer isso sem mexer com os mais pobres?

Dá para fazer. Há uma forma inteligente de endereçar o problema. Do mesmo jeito que a gente fez o país crescer 3%, e ninguém acreditava [que isso seria possível].

Mas cresce justamente pela expansão do gasto público...

[interrompendo] Não, não é verdade. O impulso fiscal desse ano é menor do que o do ano passado. Como é que então vai explicar o crescimento pelo gasto?

As pessoas estão desconsiderando que nós estamos fazendo a maior reforma tributária da história desse país. A maior reforma de crédito da história desse país. Que nós estamos reformulando o setor de seguros. Que o crédito vai expandir mais de 10%, acima das receitas.

Por que setor após setor tem encontros com o presidente da República no Palácio do Planalto pra anunciar investimentos da ordem de R$ 90 bilhões, R$ 120 bilhões, se a incerteza é tão grande? Será que é?

O senhor mesmo manifesta preocupação.

Uma coisa é manifestar preocupação. A outra é dizer que nada está sendo feito. Eu gostaria que a velocidade fosse maior? O ministro da Fazenda, se pudesse, fazia um ajuste no primeiro mês do governo para ficar sossegado nos outros três anos e onze meses. Mas as coisas não funcionam assim. Elas têm que ser construídas politicamente. O papel do ministro da Fazenda não é só apresentar uma planilha para o presidente. Isso é o mais fácil. Você chama qualquer economista da Liga das Senhoras Católicas que ele te apresenta uma planilha. Corta aqui, corta ali. Mas vai convencer a opinião pública. Vai aprovar no Congresso. O outro ponto é o seguinte: o que mais protege os mais pobres é crescimento com baixa inflação. Sem crescimento, não tem como fazer ajuste nenhum em um país como o Brasil. É inviável politicamente. Temos então que combinar tudo isso. Às vezes o caminho é um pouquinho mais longo do que um economista ortodoxo gostaria. Mas ele é mais saudável do ponto de vista político, econômico e social. Olha o que está acontecendo na Argentina: 60% das pessoas [vivem hoje] abaixo da linha da pobreza. Não sei quantas passam fome. Uma coisa é o [presidente da Argentina, Javier] Milei fazer isso. Outra coisa é o Lula fazer isso.

Que gastos são "imexíveis" para o presidente Lula?

Não existe tabu para a área técnica. Mas não posso antecipar a avaliação que ele está fazendo. Ele conhece o contexto e está atento. Está com isso na cabeça. Lula tem um plano de governo, tem um plano para o Brasil. Ele é comprometido com esse país.

Todos dão como certo que não existirá nenhum tipo de ajuste no Brasil em 2026 por ser um ano eleitoral. Daí a expectativa de que ele seja feito agora.

Pois é.

Daí a nossa pergunta.

E eu estou respondendo. O que eu não posso é antecipar uma decisão que não me cabe.

O presidente se comprometeu com algumas propostas que aumentam gastos, como a isenção de imposto de renda para a faixa de até R$ 5.000. Ela será dada inclusive para quem ganha mais do que isso, até este valor? Ou será dada apenas a quem recebe exatamente isso?

Não, porque aí quem ganha R$ 5.001,00 paga quanto? Entende? Não dá para funcionar assim. São vários cenários. Estamos levando ao presidente todos os exercícios que ele pede.

Aprovada essa isenção, será necessário buscar uma receita para cobrir os custos. De onde ela virá? Taxando lucros e dividendos, o que pode atingir empresas do Simples e PJs?

A reforma da renda será feita com neutralidade, como aconteceu com a reforma do consumo.

Se dá para um, tem que tirar do outro?

É isso. De onde sai, para onde vai. Com que escadinha, com que prazo.

De novo: não posso antecipar decisões. O papel da Fazenda é levar cenários e prós e contras para o presidente. "Esse cenário tem esse custo político". Vamos fazer a reforma da renda. Mas o modelo ainda não está definido.

A primeira etapa da reforma da renda será mesmo enviada ao Congresso depois das eleições municipais?

Eu penso que temos agora que resolver antes a questão da reestruturação da despesa. Isso vem na frente de qualquer outra coisa.

Já conseguimos recompor uma boa parte da base fiscal com o que tinha sido perdido [em isenções]. A desoneração da folha [de pagamento de salário das empresas] está com prazo para acabar. O Perse está com prazo para acabar. A isenção de fundos fechados e offshore acabou. São coisas contratadas para sempre. É receita ordinária, e não extraordinária. Nós não estamos vendendo estatal a preço de banana para fazer caixa.

E a próxima etapa, que estou discutindo com Lula, é a da reestruturação [dos gastos]. É a questão mais premente, que está na ordem do dia. E nós temos que dar resposta a isso.







segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Venezuela: a CIA e o machismo-leninismo

Tem os marxistas.

Tem os leninistas.

Tem os marxistas-leninistas.

Tem os marxistas-leninistas dos últimos dias.

E também tem os machistas-leninistas.

Os machistas-leninistas são reconhecidos por apresentarem argumentos embebidos em testosterona.

O troféu desta modalidade acaba de ser concedido ao senhor Tarek Saab, que cometeu as declarações disponíveis no endereço abaixo:  

Vídeo: Procurador-geral da Venezuela diz que Lula é agente da CIA e foi “cooptado" na prisão (ampost.com.br)

Na visão deste cidadão parece que só existem duas alternativas: a-esquerda-que-pensa-como-ele e os cooptados pelo imperialismo e à serviço da CIA.

Seja como for, fica provado que na Venezuela também existe gente adepta da "diplomacia de microfone".

Melhor seria dizer, da total "falta de diplomacia ao microfone", para não falar algo mais desagradável.

Os inimigos da Venezuela e a desintegração regional agradecem.


 

Eleições 2024: Cunha quer Lira

A imprensa tem especial predileção por uma categoria de petistas: aqueles que ela chama de "conselheiros do presidente Lula".

Não faço ideia se estas pessoas transitam no Planalto com a desenvoltura que lhes é atribuída pela mídia.

Mas, por via das dúvidas, leio com atenção o que dizem.

É o caso de João Paulo Cunha, que em entrevista concedida recentemente ao Estadão defendeu entregar um ministério para Arthur Lira.

Segundo Cunha, "deixamos muito a desejar nesse processo eleitoral." O PT precisaria "atualizar a leitura do capitalismo no Brasil (...) ter a compreensão de como os trabalhadores hoje estão se organizando (...) A direita conseguiu captar com mais facilidade uma nova forma de se comunicar com a população, juntando três aspectos: concepção liberal da economia, visão conservadora dos costumes e religiosidade. O PT e o governo ainda não conseguiram enfrentar isso."

Até aí, no que diz respeito a problemática, temos algum acordo.

Os problemas mesmo começam quando Cunha se dirige para a "solucionática".

Segundo Cunha, "a direita está hoje com mais problemas do que a esquerda, está dividida, tem brigas em público. E entrou um fenômeno na pauta sobre o qual o governo precisa se atentar, que é o Centrão. (...) Uma parte grande do Centrão está no governo. O PP, o União Brasil, o Republicanos, o PSD têm ministérios, mas não têm um compromisso para 2026 mais sólido. Precisamos consolidar essa banda do Centrão que dialoga com a gente para 2026. (...) ideal é Lira assumir um ministério em 2025 porque temos de trazer o para mais perto". 

A direita está dividida, tem brigas? Sim. Mas, se a questão for 2026, as direitas têm mais margem de manobra do que nós. Por exemplo: se tirarmos Lula da equação, o PT e a esquerda terão grandes problemas. Já se tirarmos o cavernícola da equação, a direita seguirá tendo alternativas, algumas inclusive mais "palatáveis".

O Centrão é um fenômeno "na pauta"? Sim. Mas o Centrão, com este ou com outros nomes, está na pauta faz muito tempo. O impeachment de 2016, é bom lembrar, foi aprovado com o apoio de parte importante da base do governo (do governo Dilma 2 e, também, do governo Lula 3). A experiência já nos ensinou alguma coisa sobre quão "sólido" é o compromisso com esta gente. 

Trazer Lira para o governo, entregar um ministério para Lira, vai mesmo "consolidar essa banda do Centrão que dialoga com a gente para 2026"? Deixemos de lado, por enquanto, os aspectos morais desta proposta e nos concentremos na dimensão pragmática. 

Primeiro, uma pergunta: que ministério seria do tamanho adequado aos apetites de Lira, que hoje se comporta as vezes como se primeiro-ministro fosse? Aliás, como fica a norma de não se nomear alguém que não possa ser demitido?

Outra pergunta: na vida real, que tipo de efeito Lira ministro teria sobre a ação prática do governo? O que mudaria, para melhor, no atendimento de nossa base social? Que efeito isto teria sobre as políticas públicas de interesse da esquerda em geral e do PT em particular?

Mais uma pergunta: alguém acha mesmo que esta turma marchará conosco, em 2026, aconteça o que acontecer daqui até lá? 

Lendo e relendo a proposta de Cunha, a única certeza a que chego é a seguinte: diante dos efeitos negativos da política adotada até agora, tem gente que está propondo como única alternativa dobrar a aposta.

Ou seja: o pior dos pragmatismos, aquele que não oferece resultados à altura das promessas e expectativas. 

O que me recorda uma frase dita por alguém famoso: entre a desonra e a guerra, escolhestes a desonra. Mas o que tereis ao final será a desonra e a guerra.

Acho bem mais pragmático se preparar para a "guerra".







Segue texto analisado

"O ideal é Arthur Lira assumir um ministério porque temos de trazer o Centrão para mais perto", diz João Paulo Cunha – Estadão

Integrante da “velha guarda” do PT, o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha atua cada vez mais nos bastidores da política. Um dos conselheiros do presidente Lula, João Paulo tem bom trânsito tanto no Palácio do Planalto quanto no Congresso e acha que o governo precisa se preparar para enfrentar o avanço da centro-direita. O caminho apontado por ele é bem pragmático: na sua avaliação, o presidente da Câmara, Arthur Lira, deve ser alçado à equipe de Lula. Principais trechos da entrevista:

"Em número de municípios o PT sempre ficou muito aquém dos partidos de centro. A diferença é que, em alguns períodos, o PT governou muitos eleitores. Governou São Paulo, BH, Porto Alegre, grandes cidades do interior paulista e do ABC. O que me espanta agora é que a crise do PT seja mais de representação. O partido carece, nesse momento, de capilaridade, de representação social. Efetivamente, deixamos muito a desejar nesse processo eleitoral."

"Na minha visão, o PT precisa atualizar a leitura do capitalismo no Brasil, que mudou muito, e também suas bandeiras e propostas. É necessário ter a compreensão de como os trabalhadores hoje estão se organizando [...] A direita conseguiu captar com mais facilidade uma nova forma de se comunicar com a população, juntando três aspectos: concepção liberal da economia, visão conservadora dos costumes e religiosidade. O PT e o governo ainda não conseguiram enfrentar isso."

"A comunicação do governo é um problema. Eu não sei hoje, mas um tempo atrás eu vi que o presidente Lula tinha 13 milhões de seguidores, com um ano e seis meses de governo, e o Bolsonaro, com o mesmo tempo fora do governo, tinha o dobro. Como é que Bolsonaro sai, fica inelegível e tem o dobro de seguidores do Lula? A direita está hoje com mais problemas do que a esquerda, está dividida, tem brigas em público. E entrou um fenômeno na pauta sobre o qual o governo precisa se atentar, que é o Centrão."

"Uma parte grande do Centrão está no governo. O PP, o União Brasil, o Republicanos, o PSD têm ministérios, mas não têm um compromisso para 2026 mais sólido. Precisamos consolidar essa banda do Centrão que dialoga com a gente para 2026."

"O ideal é Lira assumir um ministério em 2025 porque temos de trazer o para mais perto. E, nesse pacto, em particular na Câmara, os deputados Elmar Nascimento (União Brasil), Antônio Brito (PSD), Hugo Motta (Republicanos) e Marcos Pereira (Republicanos) precisam ter uma saída honrosa. Um deles (fora Pereira, que desistiu) vai ser presidente da Câmara a partir de fevereiro. E o que se faz com os outros? É quase um combo ali."


Eleições 2024: Jessé e a cloroquina

Faz tempo que não lia nada do Jessé.

A bem da verdade, parei no A tolice da inteligência brasileira.

Quem quiser ler a respeito, pode buscar aqui: 

https://pagina13.org.br/pensando-a-longo-prazo-reune-artigos-de-wladimir-pomar/

Quando Jessé esteva empregado na mesma Universidade que eu, nunca tive a sorte de cruzar com ele.

Depois, um militante de um núcleo do PT na Europa comentou que ele estaria morando por lá, para fugir de perseguições.

Tudo isso para dizer que vale a pena ler a entrevista que Jessé deu ao Globo, acerca do resultado das eleições.

Como a entrevista é no Globo, o viés não podia ser muito diferente do que foi: uma crítica à esquerda, ao PT, ao governo Lula e a Boulos, embrulhada numa análise acerca da força que a direita e a extrema-direita tem entre os pobres.

Este combo não é exclusividade de Jessé.

Muito mais gente da esquerda tem publicado, nas suas redes, as mais variadas autocríticas.

É verdade que algumas são ao estilo Homer Simpson: “a culpa é minha, logo eu coloco onde eu quero”.

Fazer o quê: debate é assim mesmo. E, gostemos ou não, ele acontece ao mesmo tempo que o segundo turno.

Mas, também por isso, não podemos nunca perder de vista que nosso objetivo é derrotar o lado de lá. 

E para derrotar o lado de lá, é preciso conhecer e criticar as armas que ele utiliza. Pois a eficácia ou ineficácia de nossas armas dever ser medidas no confronto com as armas do inimigo.

Por exemplo: a compra de votos. 

Numa certa capital do Nordeste, está óbvio que a candidatura da direita que foi ao segundo turno usou e abusou deste expediente. O pagamento era feito via pix nas seções eleitorais. 

Outro exemplo: o financiamento empresarial ilegal. 

Em todo o país, os ricos continuaram financiando suas campanhas preferidas, não apenas através de doações pessoais (vide Ometto, o maior doador privado do primeiro turno de 2024), mas também através de contribuições ilegais. 

Detalhe: o recém-retornado-petista Randolfe, aquele que saiu do PT supostamente pela meia esquerda, no meio de um surto udenista, agora quer a volta do financiamento empresarial privado.

Um terceiro exemplo: o uso eleitoral das bilionárias emendas parlamentares impositivas. 

Claro, parlamentares de esquerda também receberam emendas. Mas além do fato destas emendas serem em si mesmas um desvio, o fato objetivo é que as direitas são as maiores beneficiárias.

Um quarto exemplo: o uso da máquina pública nas campanhas eleitorais.

Um quinto exemplo: o uso das fake news.

Um sexto exemplo: a influência dos meios de comunicação privados.

Um sétimo exemplo: a operação ilegal de corporações e instituições, tais como certas igrejas, a “família militar” etc. 

Um oitavo exemplo: a total desproporção nos recursos do fundo eleitoral.

Poderíamos continuar a lista, mas acho que o que foi dito já basta para demonstrar como é ridículo debitar o resultado eleitoral de 2024 apenas ou principalmente na conta de um único fator, de uma única variável.

Erram, também por isso, os que estão obcecados com o “identitarismo”. 

Podemos e devemos discutir e criticar o “identitarismo”, mas se não colocarmos as coisas no grau, vamos acabar adotando o mesmo “modus sin pensantis” que leva certa direita a atribuir todos os problemas da humanidade à “ideologia de gênero”.

Ou fazemos um balanço de conjunto, que pondere de maneira correta as variáveis em jogo, ou vamos seguir errando.

Feitas estas preliminares, vejamos a entrevista concedida por Jessé ao Globo.

A entrevista publicada pode ser lida aqui:

https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2024/noticia/2024/10/13/entrevista-boulos-paga-o-preco-da-esquerda-legal-que-discute-genero-e-raca-e-deixou-pobres-na-direita-diz-jesse-souza.ghtml

Jessé diz que o voto obtido por Nunes e Marçal em áreas periféricas nas zonas Sul, Norte e Leste de São Paulo capital teria sido, “sem dúvida”, o voto do “pobre de direita”.

Segundo ele, faz tempo que a situação já estaria “dominada” pela Teologia da Prosperidade, neoliberal e reacionária.

E vaticina: “Passamos por um processo de idiotização das pessoas e de inação dos que deveriam fazer um trabalho de base de qualidade”. 

De fato, faz tempo que pobres votam na direita.

Isso acontece desde que passamos a ter eleições, no Brasil e no mundo inteiro.

Pobres votarem na esquerda é, na maior parte dos países e na maior parte da história, uma exceção: a “democracia burguesa” não é chamada de burguesa por birra.

Apesar disso, em São Paulo capital o PT já conquistou por três vezes a prefeitura, com Erundina, Marta e Haddad.

Além disso, nas eleições de 2022, Lula presidente e Haddad governador foram os mais votados por um eleitorado que, no primeiro turno de 2024 escolheu outras candidaturas.

Portanto, embora possa existir idiotice (no sentido grego da palavra) e embora exista um déficit do chamado “trabalho de base”, isto não basta para explicar o que ocorreu no primeiro turno, nem serve para orientar o que deveria ser feito no segundo turno.

E, no terreno da explicação, é preciso examinar melhor a natureza social do voto: a população das áreas periféricas de São Paulo capital não são homogêneas. 

Dito de outra forma, a categoria “pobre de direita” é um tipo ideal bastante enganoso.

Ainda no terreno da explicação, Jessé diz que Marçal seria um “Coringa”: seus eleitores “identificaram nele a raiva e o ressentimento, mesmo sem que lhes fosse dada explicação alguma sobre as razões dessa injustiça social”.

Não acho que essa crítica seja totalmente procedente. Afinal, uma das razões do êxito parcial do boçal e de outros expoentes da direita e da extrema-direita reside, exatamente, no fato deles apresentarem uma “explicação” acerca das “razões” da “injustiça social”. 

Não só isso: as direitas oferecem, também, uma visão acerca do futuro e uma “ética de sobrevivência” para os tempos de guerra em que vivemos. 

Parte de nossas dificuldades no enfrentamento das direitas têm origem na subestimação: quantas vezes ouvimos gente nossa falando que a “direita não tem projeto”? 

Outra parte das dificuldades têm origem no rebaixamento programático: se não apresentarmos uma visão de futuro, perderemos a disputa por WO.

Portanto, é totalmente insuficiente - para derrotar a extrema-direita - tomar medidas “para garantir o cumprimento das regras democráticas”. 

Obviamente, tanto o boçal quanto o cavernícola precisam ser tornados inelegíveis.

Mas, como o próprio Jessé afirma, “isso não evitará que outros candidatos sigam sua cartilha”. E nada garante que eles “precisarão serem mais cuidadosos, menos ameaçadores”, nem que terão “menos domínio do público”.

A repressão legal e institucional não são suficientes para derrotar a direita e a extrema-direita. E se não for feito um trabalho prévio e permanente, será cada vez mais difícil utilizar proveitosamente as eleições em favor da esquerda.

Também por isso, é preciso tomar cum grano salis a afirmação de Jessé, segundo a qual a esquerda teria sido incapaz de conversar com o “pobre de direita”.

Por um lado, ela parece óbvia, afinal a maior parte do eleitorado votou em partidos de direita e extrema-direita. 

Mas descrição não é explicação.

A explicação que Jessé oferece, obviamente nos limites de uma entrevista, é a seguinte: “a esquerda errou, e muito. Não procurou, com louváveis exceções, conquistar os corações e as mentes dos mais pobres. Se você não apresenta nada minimamente organizado e sequer tenta ir às periferias urbanas e rurais, o trabalho das igrejas evangélicas, marcado pelo anti-esquerdismo, ganha sentido político ainda mais explícito. No vazio que foi criado pela falta de mobilização e disputa de narrativas, a esquerda perdeu campo. Não estou otimista, creio que isso se aprofundará mais”.

Como se pode ler, os problemas citados acima não são propriamente “eleitorais”. As debilidades ideológicas e programáticas da esquerda são anteriores ao processo eleitoral. O mesmo vale para as debilidades de nossa presença organizada junto a classe trabalhadora. E, apesar disso, ganhamos em 2022 em muitos locais onde perdemos no primeiro turno de 2024. Sem falar que não fomos derrotados em todas as eleições. 

Portanto, mesmo nos marcos de uma situação estruturalmente negativa, é possível ter resultados melhores. Assim como é possível vencer no segundo turno, a começar por São Paulo capital.

Feita estas ressalvas, vejamos o que Jessé diz acerca dos “corações e as mentes dos mais pobres”.

Transcrevo abaixo trechos da entrevista (alerto que fiz isso com base no copiar-e-colar, portanto pode ter ocorrido algum erro. Recomendo conferir a versão publicada da entrevista):

“(…) a chave, para a direita, é a de fazer com que o pobre se acredite valorizado, respeitado, quando antes era permanentemente humilhado, vinte e quatro horas por dia. Muitas vezes, literalmente, sem nem o nome do pai na certidão de nascimento. Ele aceita assim como possibilidade de salvação ser celebrado e reconhecido por ser honesto, “de bem”, poder vencer por conta própria. No balanço, é uma reação muito mais moral do que econômica, ainda que passe pelo material. As igrejas evangélicas ofereceram a doutrina, montaram a solidariedade interna e a base social para se enfrentar a injustiça social. Porém, e aí está a chave para a esquerda, repito: jamais é objeto de discussão os porquês da injustiça. Em nenhum estrato sócio-econômico a meritocracia é tão entranhada quanto entre os mais pobres. A aposta na direita passa pela aceitação da culpabilidade da vítima. Esquece-se a falta de acesso à Educação e à Saúde, e, tão ou mais importante, a herança da escravização. O pobre de direita de São Paulo ao Rio Grande do Sul vê no ex-presidente Jair Bolsonaro um semelhante. Nestes estados, a maioria das pessoas se identifica como branca. Já no restante do país, com maioria de pobres mestiços e pretos, a identificação não é tão direta. Bolsonaro consegue expressar o sentimento social do branco que trabalha duro e crê estar bancando o outro pobre, o do norte, o menos branco, com assistencialismo, com o Bolsa Família. No caso dos pobres de direita negros e evangélicos do Sudeste e do Sul, há o imenso desejo de embranquecer. Sem exceção, nas entrevistas com os pobres de direita, me deparei com o racismo entranhado. Eu, que sou potiguar, ouvi seguidamente que “nordestino é preguiçoso. O racismo reprimido seguirá guiando este voto para o bolsonarismo, com sua arminha voltada para o jovem preto, a partir da pauta da segurança, tão cara a esses eleitores. Os pobres são os que mais sofrem com os preconceitos que a elite criou para oprimi-los. Ele acredita que é um incapaz. E aí ou ele usa essa "faca envenenada” nele mesmo ou no “outro pobre”. Esse “outro pobre” é o maconheiro, o macumbeiro, o LGBTQUIA+, o nordestino, o que vota no PT, o bandido, cabe tudo naquele que é percebido como transgressor. O lulismo ainda consegue tocar o eleitorado pobre acima de São Paulo, mais mestiço, que foi crucial para derrotar Bolsonaro em 2022. Mas esse voto passa por um processo de criminalização. Esse eleitor sofre, desde a Lava-Jato, com a pecha de ser cúmplice da corrupção. E o pobre prefere morrer a ser corrupto. O voto na esquerda teria sido uma burrice, mais uma prova da incapacidade do andar de baixo. Isso está entranhado em muitos pobres de direita hoje”.

Há muita coisa interessante, assim como há lacunas e insuficiências nas especulações acima. Uma destas insuficiências, na minha opinião, é explicar por quais motivos a direita e a extrema-direita assumiram, desde pelo menos 2013, um caráter tão militante, “para tempos de guerra”. Quais que sejam os motivos, o fato é que operamos – há pelo menos uma década - num ambiente que não será enfrentado adequadamente por uma esquerda padrão Woodstock.

Especificamente sobre as eleições de São Paulo capital, Jessé diz que o “identitarismo” teria sido “um erro completo. E Boulos está pagando o preço desse equívoco agora em São Paulo. Não basta essa esquerda “legal”, que discute gênero e raça. Ainda importa contar ao eleitor por que um cidadão ganha R$ 100 mil enquanto outro R$ 100, por que há pessoas tão diferentemente aparelhadas para a competição social, para além das diferenças de gênero e raça. Se não perceber isso logo, a esquerda deixar este pobre na direita”.

Admitamos, para facilitar a conversa, que o “identitarismo” fosse “um erro completo”. Alguém acha mesmo que nossa situação nas eleições em São Paulo capital decorreria disto? Quem quer que tenha acompanhado a eleição paulistana sabe que, na lista de erros que possam ou tenham sido efetivamente cometidos, o “identitarismo” (seja lá o que for) não seria o maior deles. 

O mais grave, entretanto, é a alternativa defendida por Jessé: “um encontro do PT com o varguismo”.

Copio e colo (repetindo o alerta que já fiz antes): “O identitarismo ecoa na classe média e na elite, não no pobre, jogado na lata de lixo pelo preconceito racial e agora vítima de racismo cultural. Não se ganha eleição no Brasil sem o voto da maioria pobre e a esquerda precisa pelo menos tentar voltar a disputar este voto. Sei que vou levar cacetada, mas está na hora de o PT aprender com Getúlio Vargas. Validar esse pobre é importante. É o que Getúlio fez, inclusive do ponto de vista racial. Para redimir o humilhado, é preciso celebrar suas virtudes, afirmar que eles não são lixo, o que a direita faz hoje, ainda que de modo enviesado. O PT nasceu dando de ombros para a herança getulista, opondo o sindicato livre ao peleguismo trabalhista. Tudo bem. Mas, sendo simplista, PT e PSDB são mais parecidos do que imaginamos, nascidos de braços diversos da mesma elite paulista com pendores social-democratas. Quem ofereceu a face popular ao PT foi o Lula. Depois dele, o PT pode estar destinado à mesma — pouca — relevância do PSDB hoje. A não ser que volte a conversar com os pobres. E não só pela ótica econômica. É ilusão o governo Lula achar que as pessoas irão espontaneamente, em 2024, identificar no aumento real do salário mínimo um projeto do PT. Não é assim que funciona a cabeça humana na sociedade contemporânea, e muito menos a transmissão de ideias e de informação. A esquerda precisa fazer o que fiz ao escrever este livro: ir à periferia e se desesperar. O Bolsa Família foi importantíssimo, mas a esquerda não ofereceu o escape da humilhação que é estar na posição de delinquente no mundo de hoje. O pobre que ganha R$ 4 mil criminaliza o “nordestino miserável que mama no Bolsa Família” e crê de fato que o sustenta. Friso, só há um jeito de se sair da armadilha do pobre de direita e disputar de verdade seu voto: explicar a ele as razões das injustiças sociais e de sua escolha momentânea equivocada por um moralismo repressor”.

Repito, novamente, que há especulações interessantes, insuficiências e lacunas no combo acima. 

Isto posto, destaco como revelador o seguinte trecho: “A esquerda precisa fazer o que fiz ao escrever este livro: ir à periferia e se desesperar”.

Confesso que “desesperador” é ler alguém dedicado profissionalmente ao estudo, afirmar que PT e PSDB "seriam mais parecidos do que imaginamos, nascidos de braços diversos da mesma elite paulista com pendores social-democratas. Quem ofereceu a face popular ao PT foi o Lula. Depois dele, o PT pode estar destinado à mesma — pouca — relevância do PSDB hoje”.

Sobre as falsas afinidades entre PT e PSDB, sugiro ler:

https://elahp.com.br/download/historia-do-petismo-volume-i/

Isto posto, não tenho dúvida que o PT corre risco. Mas o que Jessé sugere como solução é veneno puro. Nada contra “aprender”, mas transformar o petismo em trabalhismo não resolverá nada.

O trabalhismo histórico é uma das criações da era Vargas e expressava a politica populista de colaboração de classes, entre um setor da classe dominante e um setor da classe trabalhadora. O peleguismo é um desdobramento disto. Quando, especialmente em 1954 e 1964, o trabalhismo de esquerda tentou dar passos mais radicais, veio o golpe. 

O populismo, tanto de direita quanto de esquerda, não foi capaz no passado, não é capaz no presente e não será capaz no futuro de oferecer uma alternativa para o Brasil.

Que há aspectos do populismo de esquerda que devem ser compreendidos e customizados por nós, não tenho dúvida. Até porque funcionariam como antídoto para práticas populistas de direita que muita gente boa anda adotando, sem pudor e vergonha.

Mas o principal é que não existe bala de prata para as dificuldades programáticas, estratégicas, táticas e organizativas enfrentadas pelo PT.  

Nem tampouco será a cloroquina - varguista, populista ou quetais - que vai fazer o PT se manter de esquerda, socialista e recuperar maioria na classe trabalhadora.  

Claro que nada disso caberia numa entrevista ao Globo.













domingo, 13 de outubro de 2024

Eleições 2024: a “teoria” Pędłowski

Quem venceu as eleições de 2024? Depende do resultado do segundo turno.

Quem venceu o primeiro turno? Quem teve mais votos, conquistou mais prefeituras e mandatos de vereança, ou seja, o campo político que vai da centro-direita até a extrema-direita.

Entre os que admitem isso, há quem acrescente três complementos:

-que o PT não teria vencido, mas também não teria sido derrotado;

-que a vitória teria sido da “democracia”;

-que o governo Lula teria saído vitorioso.

O primeiro complemento não encontra amparo nos dados divulgados pelo Grupo de Trabalho Eleitoral do PT (GTE).

Segundo o GTE, "em 2020, o PT estava presente em 1.584 municípios, elegendo 183 prefeitos e prefeitas, 206 vices em coligação com aliados, e 2.663 vereadores e vereadoras. Agora, elegendo 248 prefeitos(as), 222 vices e 3.118 vereadores(as), além dos 13 municípios em que vai disputar o segundo turno. O PT estará presente em 1.742 municípios". 

Também segundo o GTE, o PT recebeu 6.909.779 votos em 2020 e 8.884.677 votos em 2024. 

Mesmo considerando que o eleitorado total de 2024 é maior do que o de 2020,  o PT cresceu. Isto é verdade. E se o PT fosse uma pessoa buscando superar seus próprios problemas, o resultado da eleição de 2024 teria sido, sem dúvida, um progresso em relação a 2024.

Mas o PT não é uma pessoa buscando superar suas próprias metas, o PT é um partido em luta contra outros. E o problema é que estes outros partidos cresceram muito mais do que nós. 

Em números absolutos de votos válidos, o PT ficou em sexto lugar, atrás do PL, do PSD, do MDB, do União e do PP. E se considerarmos apenas estes 6 partidos, o PT ficou em quinto lugar em taxa de crescimento. O PT cresceu 25% em relação a 2020. Já o PL cresceu 233%, o PSD cresceu 33%, o MDB cresceu 30% e o PP cresceu 29%.

Além disso, o PT conquistou 183 prefeituras em 2020. Acontece que muitos prefeitos se filiaram ao PT, antes da eleição de 2024. Quando a campanha de 2024 começou, tínhamos 265 prefeituras. E na eleição de 2024, conquistamos 248 prefeituras. Logo, se for para ser rigoroso, não teríamos crescido 82, teríamos diminuído 17 prefeituras...

Além disso, 188 destas prefeituras são em cidades com menos de 20 mil habitantes. E só 2 ficam em cidades com mais de 200 mil habitantes. Claro, isto pode mudar drasticamente a depender do que ocorra no segundo turno. Mas os números realmente existentes não autorizam falar em vitória ou crescimento do PT.

Já a ideia de que a vitória teria sido da “democracia” parte do pressuposto de que golpistas seriam os do 8 de janeiro, a turma do cavernícola e do boçal. Já os demais setores da direita seriam democratas.

Aceito este pressuposto, restaria verificar qual foi o desempenho - no primeiro turno - das candidaturas ligadas explicitamente à extrema-direita. 

O Partido Liberal, por exemplo, foi o que recebeu maior número de votos entre todos os partidos. Ademais, o PL cresceu 233% em relação ao resultado obtido nas eleições de 2020. Se a isso acrescentarmos resultados como os obtidos pelo boçal na eleição de São Paulo capital, a conclusão é que é a extrema-direita cresceu, mesmo estando fora do governo. 

Por outro lado, cabe questionar o pressuposto apontado anteriormente. Em muitas cidades do país, houve alianças de primeiro turno entre direita e extrema-direita. Em São Paulo capital, por exemplo, Nunes foi apoiado por Bolsonaro. O mesmo vale para Melo, em Porto Alegre. A lista é imensa. Ou seja: a direita "democrática" no Brasil não é tão democrática assim.

Claro, há quem pense o contrário, como é o caso do ex-deputado federal João Paulo Cunha, que já está defendendo que Lira entre no governo Lula. 

A entrevista de Cunha está aqui: Estadão 🗞 | ENTREVISTA | Integrante da “velha guarda” do PT, o ex-presidente da Câmara dos Deputados João Paulo Cunha atua cada vez mais nos bastidores… | Instagram

Sobre o governo Lula, há quem lembre que as eleições são municipais: não estavam diretamente em jogo nem o governo, nem Lula. 

Além disso, há quem diga que como o governo de Lula é de “frente ampla”, ele só poderia ser considerado derrotado se candidaturas explicitamente oposicionistas tivessem sido vitoriosas.

Finalmente e paradoxalmente, há quem argumente que mesmo um resultado final problemático poderia ser revigorante para uma candidatura de Lula à reeleição, em 2026.

Os resultados do segundo turno vão responder se estes argumentos e outros similares procedem ou não. Mas não é preciso esperar o dia 27/10 para discutir a procedência da “teoria Pedlowski”.

A tal “teoria” está exposta aqui: 

https://blogdopedlowski.com/2024/10/12/apesar-das-aparencias-lula-foi-o-grande-vencedor-do-1o-turno-das-eleicoes-municipais/

Reproduzo abaixo dois trechos representativos desta teoria: 

-“avalio que a estratégia eleitoral determinada por Lula e pela cúpula dirigente do PT era algo que ia no sentido de “entrar em campo para jogar, fingindo que se quer ganhar, mas  fazendo uma força danada para perder”;

-“discordo de quem diz que a política da “Frente Ampla” de Lula foi derrotada no primeiro turno das eleições municipais de 2024. Na verdade, essa política ficou fortalecida ao apontar para um cenário em 2026 em que novamente será o PT (e seus aliados) contra o conveniente fantasma da extrema-direita”.

Segundo a “teoria” acima, queríamos perder. Logo, os erros cometidos pelo PT e pelo governo Lula teriam sido propositais; e as derrotas teriam sido autoinflingidas.

O incrível nesta “teoria” não é sua semelhança com as narrativas conspiratórias que se escutam, por exemplo, na Jovem Pan. 

O incrível é que seu autor não perceba que, a depender dos resultados dos dois turnos de 2024, o que poderemos enfrentar em 2026 é uma “frente ampla” sem o PT e contra o PT.





sábado, 12 de outubro de 2024

Eleições 2024: Cappelli e o mordomo

De quem é a culpa?

Do mordomo! Desde Shakespeare ou até antes, a culpa é do mordomo.

E de quem seria a "culpa" dos problemas da esquerda brasileira em 2024?

Do "identitarismo", é claro!

Pelo menos esta é a opinião de várias pessoas, entre as quais Ricardo Cappelli, conforme pode ser lido aqui: Ricardo Cappelli: “o identitarismo nunca foi uma política de esquerda” | Brasil 247

Transcrevo um trecho: (...) Cappelli atribui o fortalecimento [da direita e centro-direita] a uma desconexão da esquerda com as pautas mais relevantes para a população. Ele criticou o que chamou de "foco exacerbado em questões identitárias", que, segundo ele, não são históricas da esquerda no Brasil. “A questão do identitarismo é recente e nunca foi central para a esquerda brasileira. A esquerda sempre se pautou pela luta de classes e pelo desenvolvimento econômico, focando em políticas públicas universais” (...).

A desconexão existe? Certamente. Aliás, quando o chapa-branquismo campeava, várias Cassandras já falavam deste problema.

Parte da desconexão tem relação com as posições defendidas pela esquerda? Seguramente que sim, embora haja outras causas.

No que diz respeito às propostas, seria verdade que haveria um "foco exacerbado em questões identitárias"? Olhando para a realidade, não vejo provas de que isso seja verdade.

Quem é responsável pelas falhas na ação política do governo? O "identitarismo" ou, por exemplo, a mistura entre falso republicanismo e frente amplíssima?

Quem é culpado pelas dificuldades que temos para implementar uma política de desenvolvimento econômico? O "identitarismo" ou, por exemplo, o agronegócio, o capital financeiro e as concessões que fazemos a eles?

Quem prejudica nosso foco nas políticas públicas universais? Seria o "identitarismo" ou, por exemplo, a influência do socialiberalismo, a dificuldade em superar as terceirizações e privatizações e as restrições orçamentárias autoimpostas pelo déficit zero?

Quem impede que sejamos pautados pela luta de classes? O "identitarismo" ou, por exemplo, o rebaixamento programático?

Claro, quem acha que nossa estratégia e nossas táticas estão corretas, precisa achar um "mordomo" em quem por a culpa. 

E alguns apontam o dedo acusador para o "identitarismo". 

As vezes o mordomo é mesmo cheio de culpas. Mas, no caso das eleições 2024, nossos problemas reais vem de outro lugar. 

Eleições 2024: Quaquá e Sahra

Na Alemanha, a esquerda rachou.

Deste racha surgiu, no dia 8 de janeiro de 2024, um novo partido, cujo nome é Aliança Sahra Wagenknecht – Razão e Justiça.

Sahra Wagenknecht é a principal liderança do Partido.

Sim, é isto mesmo: o Partido tem o nome de sua principal liderança.

O motivo do surgimento deste novo partido é o seguinte: seus criadores, especialmente Sahra, consideravam que a esquerda alemã estava perdendo o apoio da classe trabalhadora para a direita. O que é um fato.

E como recuperar este apoio? Segundo Sahra, dando ênfase para as pautas tradicionais, deixando de lado as questões “identitárias” e assumindo palavras de ordem parecidas com a da direita, em temas como a imigração, a guerra e a pandemia.

Deu certo?

Deu: no curto prazo, o partido da Sahra teve mais votos que o antigo partido da esquerda.

Mas isso se deu num contexto em que a direita e a extrema-direita venceram as eleições.

Ou seja: esta tática serviu para o partido da Sahra se beneficiar do crescimento da direita, mas não serviu para deter o avanço da direita.

Isto posto, sugiro assistir e ler o conteúdo disponível nos seguintes endereços:

https://veja.abril.com.br/politica/a-dura-autocritica-do-vice-do-pt-sobre-relacao-do-partido-com-o-povao/

https://www.instagram.com/reel/DA_78IgN5Oo/?igsh=eHRsZnhnODdlNHA3

Nos endereços acima há entrevistas com Washington Quaquá, deputado federal do PT, eleito prefeito de Maricá nas eleições de 2024. Eleito, é bom que se diga, com uma votação superior a 73% dos votos.

As duas entrevistas foram divulgadas pelo próprio Quaquá, no grupo de zap do Diretório Nacional do PT. Portanto, ele avaliza a edição.

Noutro texto, vou comentar em detalhes ambas entrevistas. 

Por enquanto, quero destacar o que considero ser uma afinidade entre a abordagem de Quaquá e de Sarah.

Ambos partem de um problema real (a perda de apoio na classe trabalhadora) e ambos sugerem alternativa similar (uma convergência com posições da direita).

É uma abordagem também similar as de Aldo Rebelo, Ricardo Capelli e Rui Pimenta, entre outros.

Focando no caso brasileiro a essência do problema transcende as aproximações de Quaquá com o bolsonarismo, que incluem declarações escandalosas, a mais recente das quais foi a seguinte: “Não toleraremos domínio armado do território. Quem portar fuzil vai pra vala, e a palavra é essa: quem portar fuzil vai pra vala!”

A essência do problema está, na minha opinião, na estratégia defendida por Quaquá, que ele resume aqui: “O governo tem pouco rumo e pouco comando. Um comando que não atua no dia a dia do país. A economia vai bem, o [Fernando] Haddad vem tocando bem a economia. O Haddad e o governo Lula vêm conseguindo aprovar as pautas econômicas. A economia está andando, mas falta articulação política e comando político no governo. Acho que o presidente Lula precisa construir um projeto de desenvolvimento nacional que possa ser um projeto de longo prazo, pra além do governo dele. Precisamos chamar o empresariado brasileiro, o centro político do Brasil, os partidos de centro, pra construir um projeto de 20 anos de crescimento”.

Alguém pode se perguntar: mas esta estratégia que Quaquá defende não é a mesma que vem sendo defendida pelo grupo atualmente majoritário no Diretório Nacional do PT, grupo ao qual pertence Quaquá?

A resposta a pergunta acima é: em termos. No sentido mais geral, trata-se da mesma estratégia, baseada na aliança com um setor do empresariado e da direita. Esta estratégia vem sendo implementada há décadas e está no fundo dos problemas que temos enfrentado, por exemplo, no governo e nas eleições de 2024.

Mas, como vimos entre 2003 e 2015, o grupo majoritário possui diversas frações. Nenhuma delas defende mudar a economia política do governo. Aplaudem Haddad hoje, como antes toleraram Palloci. Mas há diferenças importantes entre estas frações: uma delas reside no modus operandi dos governos encabeçados pelo PT.

Algumas frações são adeptas do “republicanismo”, outras defendem - corretamente - que o governo seja parte muito ativa da disputa política. Quaquá é adepto desta segunda postura. 

Que Quaquá seja, agora, um dos maiores porta-vozes desta postura e que o faça da forma como faz, com os argumentos que utiliza, com as alianças que pratica, com o estilo que lhe é peculiar, é apenas mais uma evidência dos limites da estratégia como um todo. 

Se o Partido não estiver disposto a construir outra estratégia - que não inclua alianças estratégicas com o grande capital e que reconstrua nossa presença organizado e cotidiana junto à classe trabalhadora, independente de estarmos ou não em governos - vamos continuar prisioneiros de alternativas que, por caminhos diferentes, não vão desembocar na “vitória final”.