quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Opiniões sobre a estratégia

Texto enviado para publicação em uma antologia organizada por Roberto Regalado.

Depois da crise de 2008, ocorreu uma mudança na situação internacional e na situação interna de muitos países, inclusive na América Latina e Caribe, levando a uma intensificação do debate acerca de qual deve ser a estratégia das organizações comprometidas com a luta pelo socialismo. 

O que a crise de 2008 confirmou? Que o capitalismo, particularmente o tipo de capitalismo hegemônico no mundo até o momento, é instável e propenso a crises brutais, que se desdobram em crises e guerras sociais, políticas, econômicas, culturais e militares.

A crise de 2008 confirmou, também, que a classe capitalista dos Estados Unidos e países aliados não tem disposição efetiva de reformar o capitalismo, ao menos no sentido de reduzir as causas da instabilidade e das crises.

Pelo contrário, as classes dominantes dos EUA e aliados operam no sentido de manter e ampliar a taxa de lucro, nos patamares possibilitados pelos chamados mercados financeiros, o que produz mais instabilidade e crises, além de reduzir cada vez mais a possibilidade de “convivência pacífica” entre capitalismo, bem-estar social e liberdades democráticas. Assim como reduz as chances de “convivência pacífica” das grandes potências capitalistas entre si e destas frente aos demais países.

Portanto, vivemos em um período da história em que a luta entre as classes e a luta entre os Estados tendem ao acirramento, não à conciliação.

Parte da esquerda latino-americana e caribenha já sabia disto, antes de 2008. Mas uma boa parte da esquerda não acreditava e mesmo hoje segue preferindo apostar na possibilidade de convivência mais ou menos pacífica entre capitalismo, bem estar, liberdades e soberania nacional. Ou, pelo menos, acha que a incompatibilidade de convivência estaria restrita ao imperialismo, ao neoliberalismo e ao capital financeiro, não ao capitalismo.

Tais crenças partem de uma profunda ignorância acerca das tendências do capitalismo. Por outro lado, tais crenças revelam uma incompreensão acerca da relação profunda existente entre a luta pelo socialismo e as lutas por democracia, bem estar, soberania e integração, especialmente nos momentos de crise do capitalismo.

Desta combinação entre ignorância e incompreensão decorre, mesmo não sendo esta a intenção, uma atitude que enfraquece a luta por reformas e deixa a luta pelo socialismo numa espécie de “fila de espera”.

Este duplo enfraquecimento nem sempre fica explícito. Até pouco depois de 2008, se dizia que a América Latina estaria conseguindo avançar, melhorar a vida do povo, ampliar as liberdades, afirmar a soberania, construir a integração regional, contribuir para mudar o mundo, sem que para isso fosse necessário lutar por enfrentar e superar o capitalismo.

Um setor da esquerda afirmava, ademais, que colocar na ordem do dia a luta anticapitalista pelo socialismo atrapalharia, uma vez que o desenvolvimento seria uma das condições necessárias para que as mudanças anteriormente citadas fossem alcançadas. E (China malgré) não haveria desenvolvimento possível, que não fosse aquele regido pelo capitalismo.

A título de “compensação”, dizia-se também que aqueles êxitos fariam parte de um acúmulo de forças que, no futuro, permitiria avanços maiores em direção ao socialismo.

Os argumentos resumidos anteriormente perderam força, entre 2008 e 2018, devido às derrotas sofridas pelos governos chamados de progressistas e de esquerda na América Latina, devido aos retrocessos nas políticas de bem estar, nas liberdades democráticas, na soberania nacional e na integração regional tanto na América Latina quanto na Europa, assim como devido ao curso dos acontecimentos nos EUA.

Entretanto, mesmo depois que aquele tipo de acúmulo converteu-se num desacumulo de forças, parte importante da esquerda latino-americana e caribenha segue defendendo que o socialismo deva ser mantido na “fila de espera”.

Agora, o argumento utilizado não diz respeito aos avanços, mas sim aos retrocessos: a classe trabalhadora estaria ameaçada de perder tudo o que conquistou anteriormente. Logo, nossa tarefa seria resistir, impedir o desmonte, recuperar o terreno perdido. Como esse trabalho de resistência é apresentado como dependente de uma frente ampla em torno de um programa mínimo, colocar em pauta a luta pelo socialismo seria contraproducente, inconveniente, extemporâneo.

Em síntese, o raciocínio estratégico adotado por uma parte da esquerda latino-americana conduz à seguinte conclusão: o socialismo não seria uma necessidade urgente quando o capitalismo parece bem e a classe trabalhadora parece forte; e não seria uma possibilidade realista quando o capitalismo parece mal e a classe trabalhadora parece fraca. Portanto, nem nos momentos em que as coisas estão mais difíceis, nem nos momentos em que as coisas estão menos difíceis, em nenhuma situação a luta pelo socialismo ganharia efetiva centralidade estratégica.

Adotar este jeito de pensar pode levar, mais cedo ou mais tarde, à ruptura com o socialismo e à adesão a alguma variante da “moderna” socialdemocracia. Ou pode conduzir a uma relação romântica, religiosa, mística, com o socialismo, que perde assim qualquer sentido prático, político, estratégico.

Sendo assim, um dos desafios para aquelas organizações que buscam manter viva a luta pelo socialismo, é deixar claro que existem vínculos profundos entre os objetivos imediatos e os objetivos históricos, entre a tática e a estratégia, entre a luta pelo socialismo e as lutas por democracia, bem estar, soberania e integração.

Uma questão é: quais vínculos?

A resposta depende do que entendemos por “lutar pelo socialismo”.

Entendemos que lutar pelo socialismo é lutar para que a classe trabalhadora controle os meios de produção e os instrumentos de poder. Ou, visto de outro ângulo, lutar pelo socialismo é lutar para que a classe capitalista perca o controle dos meios de produção e dos instrumentos de poder. Se esta luta tiver êxito completo, a transição socialista desembocará numa sociedade comunista. Se esta luta não tiver êxito, a tendência é a regressão ao capitalismo.

Entretanto, há diversos exemplos históricos de que a classe trabalhadora pode melhorar de vida, mesmo sem controlar os principais meios de produção e os principais instrumentos de poder.

Mas tanto a experiência da socialdemocracia europeia, quanto a experiência do populismo e da esquerda latino-americana, confirmam haver limites para a melhoria de vida possível de ser conseguida, pela classe trabalhadora, nos marcos do capitalismo.

Estes limites são de dois tipos fundamentais: a) o quanto se pode melhorar de vida; b) a existência de uma “fronteira” que, ultrapassada, provoca uma reação geral dos capitalistas em favor do status quo ante.

Os pretextos para uma reação geral não estão relacionados com a quantidade e a qualidade da melhoria da vida da classe trabalhadora, mas sim com as necessidades concretas da acumulação de capital.

São essas necessidades concretas que explicam que, em certos períodos históricos, o capitalismo na Europa tenha sido capaz de tolerar níveis de bem-estar maiores do que foi e é capaz o capitalismo latinoamericano.

Por outro lado, a realização e a duração temporal de reformas favoráveis à classe trabalhadora dependem essencialmente da correlação de forças entre a classe capitalista e a classe trabalhadora dentro de cada país, assim como da correlação de forças entre os Estados no plano mundial.

Por mais que a situação pareça melhorar, e efetivamente melhore, em favor da classe trabalhadora, se ela não tiver controle sobre os meios de produção e sobre os instrumentos de poder em cada país, e se não for alterada a correlação de forças estre os Estados no plano mundial, então os capitalistas seguirão mantendo os meios necessários não apenas para limitar e reverter as citadas melhorias, quanto para fazer alterações ainda mais profundas em prejuízo da classe trabalhadora, se as necessidades da acumulação de capital assim o exigirem. 

Por isso é que a “luta pelo socialismo”, no sentido de uma estratégia através da qual a classe trabalhadora constrói e conquista controle sobre os meios de produção e os instrumentos de poder dentro de uma determinada sociedade, ao mesmo tempo em que altera a correlação de forças em plano mundial, é uma tarefa inescapável e inadiável, tanto para quem deseja fazer mudanças mais ou menos superficiais, quanto para quem deseja realizar transformações mais profundas e sustentáveis.

Deixar para “outro momento” a luta pelo socialismo não implica apenas em deixar esta luta para o “Dia de São Nunca”. Implica, também, enfraquecer a luta por reformas aqui e agora, pois a chance de termos sucesso nas reformas parciais depende de ampliar, e muito, o controle da classe trabalhadora sobre a produção e sobre o poder.

Aliás, a história confirma que as reformas podem se alimentar da revolução, embora a recíproca não seja verdadeira.

Portanto, a formulação estratégica acerca da luta pelo socialismo deve vincular a luta por conquistas imediatas e pontuais, com a luta pelo poder e a luta pelo controle dos meios de produção.

Uma questão é: qual destes aspectos é a variável dominante na “equação”?

Pensando no curto prazo, a resposta pode ser: a luta pelas reformas, pois uma classe trabalhadora submetida a um regime de absoluta escravidão não terá energias, nem tempo livre, para mais nada que não seja a sobrevivência biológica.

Pensando no longo prazo, a resposta pode ser: a luta pelo controle dos meios de produção. Pois nosso objetivo mais geral consiste no seguinte: quem produz as riquezas, decida o que produzir, como produzir e como distribuir as riquezas criadas.

Pensando no médio prazo, a resposta é: a luta pelo poder. Pois sem controlar o poder, a classe trabalhadora nunca irá além da luta por mudanças parciais, não vai conseguir estabelecer controle sobre os meios de produção.

Portanto, se o debate sobre a formulação estratégica consiste em definir como articular a luta por reformas, a luta pelo poder e a luta pelo controle dos meios de produção, o núcleo deste debate está em como construir e conquistar o poder político.

Ao longo dos séculos XIX, XX e dos 18 primeiros anos do século XXI, o movimento socialista lidou de muitas e diferentes maneiras com o tema do poder político. Os capitalistas tiveram que fazer o mesmo, seja para administrar as diferenças entre os próprios capitalistas, seja para enfrentar as classes trabalhadoras.

Apesar das mudanças ocorridas ao longo destes mais de duzentos anos, há uma constante: o Estado. Por isso o debate sobre o poder é, essencialmente, um debate sobre o Estado. E neste debate confrontaram-se e seguem confrontando-se, no movimento socialista, duas posições fundamentais:

a/os que consideram que o Estado é uma instituição dedicada a manter o funcionamento geral da sociedade;

b/os que consideram que o Estado é uma instituição dedicada a manter o funcionamento geral da sociedade, em benefício da classe dominante.

Para os defensores da primeira posição, conquistar o poder é conquistar o Estado. Para os defensores da segunda posição, conquistar o poder é destruir o Estado atual e construir outro. Ou, para ser mais preciso, destruir o núcleo duro que garante que o Estado atue em benefício da classe dominante.

A diferença entre ambas posições se dilui, nos períodos em que a classe capitalista exerce o poder através de ditaduras abertas. Nesses momentos, não há como conquistar o poder de Estado, sem confrontar e destruir seu núcleo duro. Isto ajuda a entender por qual motivo as revoluções vitoriosas, em que a classe trabalhadora conquistou o poder, construiu outro Estado e iniciou uma transição socialista, ocorreram em situações de guerras e ditaduras.

Mas quando a classe capitalista "opta" por exercer o poder “democraticamente”, fica explícita a diferença entre aquelas duas posições, existentes no movimento socialista, acerca do Estado. Nestas situações, o movimento socialista se divide entre os partidários da “reforma” e os da “revolução”. Prevalecendo, em geral, os primeiros.

Para os defensores da “reforma”, ao menos em sua versão clássica e extremada, trata-se de formular e implementar uma estratégia que permita controlar aquela parcela do poder de Estado que realmente está posta em disputa. O seu "programa máximo" é a condução do Estado tal como ele é. Não está em pauta a conquista do conjunto do poder de Estado, muito menos a destruição do Estado capitalista e a construção de um Estado socialista.

Dito de outra maneira, quando a classe capitalista aceita governar de forma “democrática”, um setor da esquerda adota como objetivo estratégico máximo a conquista do governo. E não se coloca o objetivo de controlar o poder.

Claro que em cada país, em cada época histórica, essa diretriz (governo sim, poder não) vai ser defendida e implementada de diferentes maneiras. Mas talvez a matriz de todas as experiências deste tipo tenha sido a postura da social-democracia alemã na revolução de 1918.

Já no caso da América Latina, a experiência mais rica e mais radical de estratégia reformista foi a da Unidade Popular chilena.  A peculiaridade desta experiência consiste em que os seus protagonistas tinham o propósito de transformar profundamente o Estado e construir uma área de propriedade social, tomando como alavanca o controle do próprio Estado. Portanto, no caso da Unidade Popular estamos diante de outra variante do reformismo, diferente da variante clássica e extremada a que nos referimos nos parágrafos anteriores.

Em 1973, um golpe militar não apenas interrompeu a experiência, como também destruiu grande parte das organizações da classe, ao mesmo tempo em que implementou um tipo de capitalismo mais explorador e opressor do que o existente no Chile antes de 1970.

Os integrantes da Unidade Popular não tinham dúvida de que os capitalistas chilenos e seus sócios internacionais tentariam dar um golpe. E lutaram contra ele. Mas o êxito na luta contra o golpe dependia, entre outras coisas, de que as organizações integrantes da Unidade Popular tivessem uma política adequada para o núcleo duro do Estado: as forças armadas. A ausência desta política, aliada a uma ilusão sobre o caráter das forças armadas, facilitou o golpe de Estado, demonstração prática de que “poder” e “governo” não são a mesma coisa.

A partir do que foi dito até agora, podemos concluir que há pelo menos três questões que o debate estratégico precisa esclarecer. A primeira delas diz respeito ao objetivo (capitalismo ou socialismo?). A segunda delas diz respeito ao Estado (governo ou poder?). A terceira delas diz respeito a como, concretamente, abordar a luta pelo poder.

Havia e seguem existindo na América Latina e Caribe muitas esquerdas e muitas estratégias. Mas existia e podemos dizer que segue existindo uma estratégica hegemônica, que podemos resumir assim: disputar eleições, eleger presidentes da República, governar para melhorar a vida do povo, ampliar as liberdades, a soberania e a integração, tendo como horizonte realizar transformações mais profundas, que para alguns seriam de tipo social-democrata e para outros seriam de tipo socialista, mas que em nenhum caso teriam como ponto de partida a expropriação dos capitalistas, seja da maior parte de seus meios de produção, seja da maior parte de seus instrumentos de poder.

Noutras palavras, a estratégia hegemônica na esquerda latino-americana e caribenha era e segue sendo similar a da Unidade Popular no Chile – ressalvado o fato óbvio de que se pretendia uma “estratégia chilena com final feliz” e agregada a variável “integração regional”.

Que balanço se pode fazer dos resultados práticos obtidos da aplicação desta estratégia? Por um lado, permitiu avanços importantes para a classe trabalhadora e para os povos da região, no terreno do bem-estar, das liberdades democráticas, da soberania nacional e da integração regional. Por outro lado, não conseguiu nem mesmo tentou superar determinantes estruturais no funcionamento do capitalismo regional e de sua articulação com o capitalismo mundial: a região não escapou da posição ocupada na divisão internacional do trabalho e prosseguiu sendo uma região de profunda desigualdade social. Finalmente, o tema do poder não foi resolvido, permitindo às classes capitalistas de cada país da região, em aliança com os capitalistas de outras regiões, deflagrar uma ofensiva que num curto espaço de tempo (2008-2018), substituiu a maior parte dos governos progressistas e de esquerda por governos conservadores; sendo que os que restam encontram-se sob forte pressão interna e externa.

Frente a esta situação, a esquerda latino-americana divide-se em duas posições fundamentais. De um lado, os que reivindicam que a estratégia adotada anteriormente continua válida. De outro lado, os que consideram que abriu-se um novo período histórico, que exige uma nova estratégia.

Entre os que defendem a necessidade de uma “nova estratégia”, há diferentes posições, desde “neosocialdemocratas” até esquerdistas alucinados. Além disso, como sempre nesse tipo de situação, o debate estratégico é atravessado por dificuldades táticas e organizativas de todo o tipo.

Feitas estas ressalvas, abordaremos a seguir, de forma sumária, oito temas que consideramos devam ser abordados no debate estratégico: a luta cultural, a luta social, a luta eleitoral-institucional, a auto-organização da classe, as relações internacionais, a política de alianças, o programa e a questão do poder.

Sobre cada um destes pontos, há uma enorme polêmica. De nossa parte, sustentamos que é necessário:

*estabelecer como objetivo a conquista do poder, isto é, converter a classe trabalhadora em classe dominante, não se contentando em ser governo e sem ter ilusões no caráter supostamente neutro do aparato estatal;

*construir um "caminho para o poder" que leve em consideração as condições históricas concretas em que estamos atuando, que exigem não apenas "conquistar" mas também "construir" o poder;

*construir um programa de transformações nacional e regionalmente articulado que combine medidas democrático-populares com medidas socialistas, isto é, que combine medidas em favor da classe trabalhadora com medidas que restrinjam severamente a propriedade e o poder dos capitalistas;

*abandonar a ilusão em que a classe capitalista, ou qualquer uma de suas frações, é ou pode vir a ser aliada estratégica das classes trabalhadoras. Ou, em outras palavras, abandonar a ideia de que seria correto ter como objetivo estratégico a construção de um "capitalismo democrático e popular". A aliança capaz de transformar nossos países é aquela entre a classe dos trabalhadores assalariados e a classe dos pequenos trabalhadores proprietários;

*perceber que a política de alianças inclui, também, governos, partidos e movimentos de outros países, especialmente da América Latina. Sobre isso, a esquerda regional possui muitas experiências importantes, como o Foro de São Paulo, criado em 1990, assim como algumas das alianças que tornaram possíveis a Unasul e a CELAC. Mas torna-se necessário que a esquerda entenda melhor a diferença entre a política externa do país e a política de relações internacionais do governo; a diferença entre os aliados regionais e os aliados de outras regiões do mundo; a diferença entre a esquerda estar aberta ao diálogo com todos os setores "progressistas" e a necessidade prioritária de construir alianças estratégicas com a esquerda antiimperialista e socialista; as diferenças qualitativas entre a China e os Estados Unidos; e, por último, mas não menos importante, é necessário levar em consideração a diferença de tradições entre as várias esquerdas latino-americanas e caribenhas;

*colocar no mais alto nível de importância a) a auto-organização da classe, através de seus diferentes instrumentos, com ênfase nos sindicatos e no partido político e b) a luta cultural, necessária para construir uma consciência de classe socialista-revolucionária, democrático-radical e nacional-popular;

*entender que a luta social (a mobilização independente das classes trabalhadoras em torno de seus objetivos imediatos), a luta eleitoral (a disputa por espaços no aparato estatal, pelos partidos ligados às classes trabalhadoras) e a ação institucional (dos mandatos, governos e de outras instituições do Estado conquistadas através da luta eleitoral) são diferentes formas que a luta de classes assume, sendo necessário analisar concretamente a centralidade de cada uma e a relação entre elas, a cada momento dado.

Portanto, do ponto de vista tático, a esquerda não deveria fetichizar as chamadas formas de luta. Não devemos dar nem à “institucionalidade”, nem à “luta social”, a condição de dimensão/espaço prioritário.

Do ponto de vista tático, as formas de luta são exatamente isso -- “formas” -- que podem ganhar maior ou menor importância, a depender das condições concretas.

Mas do ponto de vista estratégico, o que foi dito anteriormente não é exato. Do ponto de vista estratégico, é preciso reconhecer que a "luta social" é superior à "luta eleitoral-institucional".

A chamada luta institucional é, em si mesma, uma mediação entre a classe trabalhadora e a institucionalidade burguesa.

Portanto, um terreno onde a classe trabalhadora está sujeita a dois princípios liberais: o princípio do "voto individual" que supostamente iguala a todos; e o princípio da predominância do menos consciente sobre o mais consciente.

O primeiro princípio traz como consequência iludir as classes trabalhadoras acerca da natureza de classe do Estado.

O segundo princípio traz como consequência fazer o sucesso da classe trabalhadora depender do nível de consciência dos setores menos consciente desta classe.

A luta eleitoral e a ação institucional operam em um terreno construído e controlado, ao menos no fundamental, pela classe dominante.

Portanto, enquanto esse controle da classe dominante não for substancialmente modificado ou superado, a chamada institucionalidade continuará a ser um espaço que pode e deve ser parcialmente conquistado pela classe trabalhadora, que pode e deve ser disputado, mas sempre a partir "de fora" e tendo como objetivo “virar o mundo de ponta cabeça”.

Dito de outra forma, nosso sucesso estratégico depende do acúmulo de forças que a classe trabalhadora fizer fora da institucionalidade burguesa, não dentro dela.

Conclui-se que, nesse sentido estratégico, a luta social (entendia não como movimentos sociais específicos, mas como o conjunto da acumulação de forças desenvolvida pelas classes trabalhadoras) é mais importante para a classe trabalhadora do que a luta eleitoral-institucional.

Os que dentro da esquerda são oponentes dessa afirmação, frequentemente argumentam que a experiência regional latino-americana, desde 1998, teria comprovado a importância da disputa eleitoral e do exercício dos governos para toda a esquerda latino-americana.

De fato, desde 1998 até hoje, grande parte da acumulação de forças da esquerda latino-americana se deu no terreno eleitoral e na ocupação de espaços nas instituições do Estado existente. Este é o fato. Mas a luz dos acontecimentos ocorridos entre 2008 e 2018, que conclusões podemos sacar deste fato?

A esse respeito, apontamos quatro questões
.
Primeiro: a conquista dos governos esteve diretamente ligada à acumulação de forças que a esquerda de cada país fez, em outras áreas além da eleitoral.

Segundo: os avanços proporcionados pelos governos progressistas e de esquerda na América Latina estavam relacionados, em alguma medida, à força que a esquerda tinha fora das instituições.

Terceiro: a capacidade dos governos de resistir aos ataques internos (da classe dominante de cada país) e externos (dos Estados Unidos e seus aliados) também está relacionada à força e capacidade de mobilização que a esquerda de cada país tem na sociedade.

Quarto: várias das derrotas que sofremos na região estão vinculadas a superestimação do “institucional” frente ao “social”.

Uma destas derrotas ocorreu exatamente no Brasil, onde desde 1995, mas especialmente entre 2002 e 2014, predominou em parte importante da esquerda a ideia de que a luta eleitoral e a ação do governo seriam “formas superiores”, mais avançadas que a luta social, a luta cultural e a auto-organização da classe.

Para ser mais exato, predominou na prática uma superestimação da luta eleitoral e da ação institucional, deixando em segundo ou terceiro plano tudo que estivesse relacionado à auto-organização da classe, à luta cultural e às lutas sociais.

Claro que havia, também, um setor minoritário de esquerda que subestimava a importância das disputas eleitorais, subestimava a importância de governar o país, superestimava e fetichizava toda e qualquer luta e movimento social, mesmo quando hegemonizado pela direita.

Mas o golpe de 2016, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro em 2018 não podem ser imputados aos erros e preconceitos da ultra-esquerda. Podem, isto sim, ser relacionados às opções e efeitos colaterais de uma “estratégia” eleitoral e institucionalista.

O golpe de 2016 não teria sido tão bem sucedido se a esquerda brasileira não tivesse cometido determinados erros. E entre esses erros está, sem dúvida, ter optado por uma estratégia que acreditava no Estado como um espaço neutro e prioritário para o acúmulo de forças.

Uma estratégia adequada ao novo período histórico inclui combinar as disputas eleitorais e a presença nos governos, com a construção das condições para “ser poder”.

Este tipo de raciocínio pode parecer contrário ao senso comum. Pois estamos dizendo que, no momento em que estamos mais fracos, é quando precisamos de uma estratégia mais radical tanto do ponto de vista programático (mais socialista), quanto do ponto de vista do Estado (buscar ser poder, não apenas ser governo).

Na verdade, parece contraditório ao senso comum, especialmente para aqueles que deixaram de compreender a diferença entre tática e estratégia.

Quando falamos de uma estratégia mais radical, não estamos falando em adotar uma postura esquerdista no terreno da tática. Pelo contrário: quando se trata de definir orientações táticas, é fundamental considerar o senso comum, a correlação de forças, o nível de consciência das classes trabalhadoras.

Mas o mesmo não é verdade quando se trata de definir orientações estratégicas, porque elas visam definir o caminho em direção a objetivos que por enquanto não fazem parte do senso comum das pessoas.

No terreno estratégico, a esquerda está chamada a se orientar em uma direção necessariamente diferente daquela indicada pelo senso comum, hegemonizado pela classe dominante.

Por suposto, isto nos tira da “zona de conforto” em que atuamos a partir de 1999 em muitos países, nos quais era comum para a esquerda falar que seu objetivo estratégico era... eleger o presidente da República.

Claro que há setores da esquerda que acham que se pode e se deve continuar a dizer isto. Pensamos diferente: o sucesso da nova estratégia dos capitalistas impõe aos trabalhadores que também mudem de estratégia.

Claro que devemos continuar lutando por ser governo e por governar. Mas na nova situação regional, organizar nossa ação de curto e médio prazo em torno das disputas eleitorais muito dificilmente nos permitirá conquistar governos, fazer governos transformadores, defender estes governos contra golpes.

Afinal, a contraofensiva da direita não se limitou a nos impor derrotas eleitorais. Ela também está buscando destruir as condições necessárias, tanto para que os partidos de esquerda possam vencer, quanto para que possam governar.

Inclusive por isso, é preciso uma nova estratégia. E essa nova estratégia pode e deve aprender com a operação feita pela extrema direita no Brasil.

O sucesso da extrema-direita brasileira envolveu fatores circunstanciais, mas envolveu principalmente dois movimentos centrais e explícitos:

a) a construção de um núcleo duro de ideias;

b) a construção de um movimento de luta pelo poder.

Enquanto parte da esquerda brasileira abandonou há tempos a ideia de fundo contida na tese da “ditadura do proletariado”, a extrema-direita defendeu sem meias palavras a ditadura militar.

Enquanto parte da esquerda brasileira acreditava na neutralidade do Estado, a extrema-direita colonizava o núcleo duro do Estado: o judiciário e as forças armadas.

Enquanto parte da esquerda brasileira abandonava o marxismo, a extrema-direita colocava a luta contra o marxismo no centro de sua operação de ideias.

De maneira similar, o sucesso futuro da esquerda depende:

a) de construirmos um núcleo duro de ideias, a partir da análise marxista da luta de classes;

b) de construirmos um movimento de luta pelo poder, a partir da ação da classe trabalhadora.

O processo de formulação, no âmbito da teoria, e de aplicação, no âmbito da prática, de uma nova estratégia não será algo rápido nem tranquilo.

Envolverá lutas e polêmicas no âmbito da esquerda e dos setores democráticos, que conviverão com os ataques da extrema-direita e com as reviravoltas da situação nacional e internacional.

Uma nova estratégia não será formulada, portanto, a frio e distante das lutas práticas. Pelo contrário. Tampouco poderá ser formulada copiando estratégias de situações passadas, a exemplo da adotada nos anos 1960-1970.

Entretanto, se queremos não apenas voltar a governar, mas transformar profundamente nossas sociedades e impedir futuros retrocessos, é essencial recuperar a dimensão rupturista (ou seja, revolucionária) da esquerda e da classe trabalhadora.

Um desdobramento disto é a volta do tempo dos “partidos de combate”, ou seja, partidos estruturados não por filiados que disputam eleições, mas por militantes que contribuem para conduzir a luta de classes, inclusive as disputas eleitorais, no sentido da construção e da conquista do poder de Estado e da transição socialista.

Uma militância que precisa estar organizada para atuar junto a classe trabalhadora, de forma capilarizada.

Um dos muitos motivos para a derrota sofrida, nos últimos anos, pela maior parte da esquerda latino-americana, consiste na ausência de uma formulação estratégica capaz de articular adequadamente a luta por reformas, a luta pelo poder e a luta por controlar os meios de produção.

A ausência de uma formulação estratégica é um problema e contribui para as derrotas; mas a existência de uma estratégia aparentemente adequada não constitui, de per si, nenhuma garantia de vitória.

Entre outros motivos porque, ao longo do “intervalo temporal” existente entre “definir”, “lutar por” e “alcançar” os objetivos estratégicos citados no parágrafo anterior, a própria luta entre as classes e entre os Estados vai alterando as variáveis da equação estratégica.

Noutras palavras, ao implementar uma determinada estratégia, um partido pode desembocar em caminhos e resultados diferentes, em maior ou menor medida, daqueles estabelecidos inicialmente.

Por exemplo: o fato do Partido Socialdemocrata Alemão não ter nem ao menos tentado tomar o poder na revolução de 1918, inviabilizou diversas hipóteses e pressupostos contidos na estratégia adotada pelos revolucionários que tomaram o poder na Rússia em 1917.

Aliás, a experiência soviética (1917-1991) demonstra que ter clareza acerca do objetivo final, ter um caminho estratégico desenhado, obter importantes vitórias parciais, nada disto garante uma vitória definitiva.

As mudanças mais ou menos imprevistas no curso da luta de classes e da luta entre os Estados podem resultar em derrotas parciais ou gerais, que fazem a correlação de forças retroceder para antes do ponto de partida. E podem exigir longas operações de "retirada", como ocorreu no caso da NEP soviética nos anos 1920 e no caso das Reformas adotadas pela China a partir de 1978.

Noutras palavras, a implementação de uma determinada estratégia não é um processo linear e ascendente de acúmulo de forças. E mesmo quando se conquista o poder, o êxito da transição socialista não está garantido. Muito dependerá da estratégia que venha a ser adotada pela classe trabalhadora, por suas organizações, assim como pelo Estado de novo tipo que surja da revolução. 

Em qualquer caso, não se pode alcançar vitórias estratégicas, mesmo que parciais, sem clareza acerca do objetivo e do caminho a ser seguido. Neste sentido, é decisivo recolocar o socialismo e a luta pelo poder no centro de nossas formulações.

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