Esta história também nos diz respeito
(texto publicado na Revista Brasileira de História)
O alfaiate de Ulm (Boitempo, 2014) é a última obra de Lúcio Magri (1932-2011),
intelectual comunista italiano e um dos responsáveis pela criação de Il Manifesto, periódico lançado em 1969
e que segue sendo publicado (http://ilmanifesto.info/).
O alfaiate de Ulm pode ser lido em várias claves: relato autobiográfico e testamento
político, panorama do século XX, ensaio sobre a história e as perspectivas do
movimento comunista italiano (especialmente o apêndice, um documento de 1987
intitulado Uma nova identidade comunista).
O movimento
comunista da Itália possui uma gênese histórica distinta, onde confluem as
características próprias daquele país, o impacto da revolução russa de 1917, a
luta contra o fascismo e as batalhas da Guerra Fria.
Neste
contexto, o Partido Comunista não foi apenas uma organização política: foi
também uma instituição cultural com imenso enraizamento na classe trabalhadora,
na juventude e na intelectualidade, que teve na obra de Antonio Gramsci sua
feição teórica mais conhecida e reconhecida.
Apesar disto
tudo – ou por causa disto tudo, como fica claro da leitura de O alfaite de Ulm — o Partido Comunista Italiano
cometeu suicídio em 1989.
Diferente das
pequenas seitas militantes, que conseguem sobreviver em condições variadas e
inóspitas, os partidos de massa parecem sobreviver apenas em determinadas
condições. E como demonstra Lúcio Magri, várias das condições que tornaram
possível a existência de um forte comunismo reformista italiano e europeu
desapareceram junto com a União Soviética e com a reestruturação capitalista
simultânea à ofensiva neoliberal.
Dito de outra
forma, a força das duas grandes famílias da esquerda europeia (o reformismo
social-democrata e o reformismo comunista), assim como o brilho dos grupos de
ultra-esquerda que viviam à sombra daquele duplo reformismo, dependiam das
condições “político-ecológicas” existentes na Europa enquanto durou a chamada
bipolaridade entre União Soviética e Estados Unidos.
Quando este
conflito cessou, com a vitória dos Estados Unidos, a socialdemocracia
experimentou uma deriva neoliberal; e o reformismo comunista, uma deriva
social-democratizante.
Claro que
isto não foi um processo uniforme. Uma das qualidades de O alfaiate de Ulm é apresentar uma interpretação do que teria
ocorrido no caso italiano. Vale destacar esta palavra: interpretação. Há muitas
outras interpretações e sempre haverá o que estudar acerca das desventuras em
série que atingiram o movimento comunista, o conjunto da esquerda e da classe
trabalhadora, especialmente na Europa dos anos 1980 e 1990. A Itália constitui
um caso destacado, em boa medida devido ao fato de lá estar baseado o tantas
vezes denominado de maior partido comunista do Ocidente.
O alfaiate de Ulm pode ser lido com muito proveito por quem tem interesse em compreender
os dilemas da classe trabalhadora, da esquerda brasileira e especialmente do
Partido dos Trabalhadores.
Época e
circunstâncias muito diferentes, obviamente. A começar pelo fato de que as
variáveis internacionais que fortaleciam o reformismo socialdemocrata e
comunista na Europa, produziam efeitos muito distintos na América Latina e
Caribe, Brasil inclusive.
Isto ajuda a
entender porque, na mesma época em que o PCI cometia suicídio, abandonando suas
tradições e inclusive seu nome, o Partido dos Trabalhadores estava
convertendo-se em força hegemônica na esquerda brasileira.
Guardadas
estas diferenças, é impossível não enxergar certas semelhanças entre os dilemas
vividos pelo Partido Comunista Italiano nos anos 1970 e 1980 e os impasses
vividos mais de vinte anos depois pelo Partido dos Trabalhadores brasileiro.
Os dilemas do
PCI são descritos detalhadamente em O
alfaiate de Ulm. Segundo Lúcio Magri, a peculiaridade
do PCI (...) era a de ser um “partido de massas” que “fazia política” e agia no
país, mas também se instalava nas instituições e as usava para conseguir
resultados e construir alianças (p.333).
Magri
demonstra que a atuação na institucionalidade não foi apenas uma estratégia.
Mais do que isto, converteu o PCI em parte estrutural do Estado italiano,
naquilo que Magri chama de um elemento
constitutivo de uma via democrática. Uma medalha que, no entanto, tinha um
reverso (p333).
Este “reverso”,
que soa tão familiar ao que acompanham as vicissitudes atuais da esquerda
brasileira, é assim apresentado por Lúcio Magri: Não me refiro apenas ou sobretudo às tentações do parlamentarismo, à
obsessão de chegar a todo custo ao governo, mas a um processo mais lento. No
decorrer das décadas, e em particular em uma fase de grande transformação
social e cultural, um partido de massas é mais do que necessário, assim como
sua capacidade de se colocar problemas de governo. Mas, por essa mesma
transformação, ele é molecularmente modificado em sua própria composição material
(p.333).
Talvez esteja
nisto a maior contribuição de O alfaiate
de Ulm: esta abordagem profundamente histórica da vida de um partido
político, ou seja, a compreensão de que a história de um Partido só pode ser
adequadamente compreendida como parte da história de uma sociedade, enquanto
processo integrado entre as opções estritamente políticas, as tradições culturais
e as relações sociais mais profundas, num ambiente nacional e internacional
determinado.
A descrição
que Lúcio Magri faz do processo de seleção e promoção dos dirigentes
partidários fala por si: a formação de
novas gerações, mesmo entre as classes subalternas, ocorria sobretudo na escola
de massas e mais ainda por intermédio da indústria cultural; os estilos de vida
e os consumos envolviam toda a sociedade, inclusive os que não tinham acesso a
eles, mas alimentam a esperança de tê-lo; as “casamatas” do poder político
cresciam em importância, mas descentralizavam-se e favoreciam aqueles que
ocupavam as sedes; a classe política, mesmo quando permanecia na oposição e incorrupta,
à medida que a histeria anticomunista diminuía, criava relações cotidianas de amizade,
amálgama, hábitos e linguagem com a classe dirigente (p333).
Esta “mescla
de costumes” da “classe política” com a “classe dirigente”, como sabemos, não é
uma peculiaridade italiana. Tampouco seus efeitos organizativos, assim
descritos por Magri: as seções não
estavam mais acostumadas a funcionar como sede de trabalho das massas, de
formação cotidiana de quadros; eram extraordinariamente ativas apenas na
organização das festas do Unitá, e mais ainda nos períodos de eleição nacional
e local; as células nos locais de trabalho eram poucas e delegavam quase tudo ao
sindicato. Nos grupos dirigentes, a distribuição dos papeis havia mudado muito:
o maior peso e a seleção dos melhores haviam se transferido das funções
políticas para as funções administrativas (municípios, regiões e organizações
paralelas, como as cooperativas). Portanto, mais competência e menos paixão
política, mais pragmatismo e horizonte político mais limitado. Os intelectuais
sentiam-se estimulados para o debate, mas sua participação na organização
política havia declinado e o próprio debate entre eles era frequentemente
eclético. A exceção era o setor feminino, em que um vínculo direto entre cúpula
e base criava uma agitação fecunda (p.334).
Noutras
palavras, Lúcio Magri descreve como as transformações “moleculares” causaram
uma metamorfose no Partido Comunista: pouco a pouco foi deixando de ser um
fator de subversão, transformando-se em peça importante na engrenagem do Estado
e da política italiana. Uma peça diferente das outras, como demonstraria a
Operação Mãos Limpas, que confirmaria que o PCI soubera resistir à corrupção
sistêmica. Mas uma peça da engrenagem, como demonstra o fato do PCI não ter
sobrevivido ao colapso da estrutura política italiana.
Neste
sentido, a interpretação feita por Lúcio Magri parece demonstrar que o Partido Comunista
Italiano não foi vítima do fracasso, mas sim uma vítima do sucesso da
“estratégia” que alguns denominaram, na Itália e aqui no Brasil, de
“melhorista”.
Esta
estratégia não apenas melhorou a vida da classe trabalhadora italiana, como
converteu o comunismo numa força influente e vista como ameaçadora pela classe
dominante e pelos Estados Unidos, que atuaram tanto aberta quanto secretamente
para evitar o êxito da aliança entre o PCI e a Democracia Cristã. Lúcio Magri
trata destas operações, especialmente visíveis no caso Aldo Moro.
Bloqueado
pela direita, o PCI tentou – sob a direção de Berlinguer – uma saída pela
esquerda. Os capítulos que tratam desta fase são talvez os mais interessantes
de O alfaiate de Ulm, em parte por
discutirem se a história poderia ter seguido um caminho diferente.
Como sabemos,
entretanto, não foi isto o que ocorreu. Ao longo dos anos 1970 e 1980,
alteraram-se profundamente os parâmetros dentro dos quais se movera a política
no pós-Segunda Guerra, tanto na Itália quanto no mundo. O PCI não conseguiria
chegar ao poder nos marcos daqueles parâmetros em vias de desaparecimento. Não
conseguiria tampouco defendê-los frente à ofensiva neoliberal e à crise do
socialismo. Nem conseguiria sobreviver para atuar nas novas condições.
Lúcio Magri
descreve, num tom profundamente autocrítico e em certo momento impiedoso
consigo mesmo, as opções feitas pela maioria dirigente do PCI, que levaram à
mudança do nome e das tradições políticas e culturais do Partido. Mostra como
havia energias vivas na base militante do comunismo italiano, energias que não
foram suficientes para dar vida ao projeto da Refundação Comunista.
Enfim, pelo
que descreve, pelas conclusões a que chega e pelas perguntas que deixa, O alfaiate de Ulm de Lucio Magri é
leitura mais do que relevante para os que têm interesse em compreender os
dilemas atuais do Partido dos Trabalhadores, do conjunto da esquerda e os rumos
da política brasileira neste terceiro milênio.
O alfaiate de
Ulm
Uma possível
história do Partido Comunista Italiano
Lucio Magri
Título
original
Il Sarto di
Ulm: Una Possibile Storia del PCI
415 páginas
Boitempo: São
Paulo, 2014
isbn
978-857-559-356-1
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