O texto a seguir foi enviado para tradução no dia 12 de maio. Foi publicado e está disponível no seguinte endereço: sulatesta.net/wp-content/uploads/2025/06/Su-la-testa-2025_05.pdf
Como se poderá ler, especialmente no trecho destacado em vermelho, nem tudo mundo ficou surpreso com o ataque de Trump contra a soberania nacional.
Aonde vão os Estados Unidos?
Os Estados Unidos influenciam profundamente o conjunto do
continente americano. Não se trata apenas de uma influência econômico-social,
política e militar. Há uma influência cultural, que vai da cultura política
estrito senso até inúmeras outras dimensões. Ao mesmo tempo, a população
brasileira, elites inclusive, conhece muito pouco acerca dos Estados Unidos.
Aliás, a ignorância explica parte da influência gringa: só a ignorância dos
fatos permite acreditar, por exemplo, que os EUA sejam um “modelo” de democracia.
A mistura de hegemonia com desconhecimento torna muito mais difícil entender o
que se está passando nos Estados Unidos.
Um exemplo disso: o Diretório Nacional do Partido dos
Trabalhadores promoveu, no dia 26 de novembro de 2008, um concorrido debate
sobre a crise internacional e seus efeitos no Brasil, tendo como palestrantes
Guido Mantega e Marco Aurélio Garcia. O debate reafirmou que a crise
internacional era um produto direto das chamadas políticas neoliberais, em
particular da desregulamentação dos mercados financeiros. Reafirmou, também,
que enfrentar a crise exigiria adotar medidas que reforçassem o investimento público,
o mercado interno, a integração regional e, de maneira geral, o papel do Estado
na economia. Mas ao mesmo tempo o debate mostrou existirem, naquele ano de
2008, muitas questões polêmicas, em aberto e a aprofundar. Uma delas dizia
respeito à profundidade e a duração da crise. Apareceu no debate uma tendência
a destacar as vantagens comparativas dos “países em desenvolvimento”, em
particular o Brasil, frente aos Estados Unidos e à Europa. Esta tendência
conduzia a dois equívocos: por um lado, a minimizar os efeitos da crise na
“periferia”; por outro lado, a não considerar devidamente que os paises
centrais vão tentar transferir os custos da crise para o “resto do mundo”.
Mesmo quem acredita que o imperialismo é um “tigre de papel”, deveria levar em
conta e se prevenir adequadamente contra esta tentativa. Não o fizemos
adequadamente e o que ocorreu foi primeiro um tsunami (termo que a então
presidenta do Brasil Dilma Rousseff utilizou para designar o uso da
desvalorização do dólar como arma geopolítica e geoeconômica) e, depois, o
apoio direto dos EUA ao golpe de 2016 e ao que veio em seguida.
As ilusões no reformismo de Obama foram seguidas, anos
depois, pela ilusão no reformismo de Biden. Na época, a então presidenta
nacional do PT, a companheira Gleisi Hoffmann, chegou a dizer em 28 de abril de
2021 que Biden estaria “revolucionando a economia capitalista. Nunca pensei que
depois de Franklin Delano Roosevelt, admiraria um presidente americano:
crescimento de baixo para cima! É o q precisamos para a América Latina. É o que
precisamos para o Brasil!”
Biden é aquele cidadão que, na condição de vice-presidente
de Obama, operou a favor do golpe no Brasil. Tirante isto, os que comparavam
Biden com FDR simplesmente esqueciam que a salvação da economia dos EUA não
veio do New Deal, mas sim dos gastos com a Segunda Guerra Mundial. Esqueciam,
também, que depois daquela Guerra, a economia dos EUA passou a ser hegemonizada
pela dupla Wall Street/Pentágono, sem cuja derrubada é impossível pensar em
qualquer revolução naquele país, mesmo uma “revolução no capitalismo”. Os EUA
eram em 2021 e continuam sendo uma economia comandada pelo grande capital,
oligopolista, financeiro, imperialista. Acreditar que eles vão sair desta crise
com “crescimento de baixo para cima”, seja lá o que isto quer dizer, é de uma
ilusão sem tamanho. Mas muita gente na esquerda brasileira embarcou nessa
ilusão.
Naquela época, o verdadeiro Biden, não este revolucionário
que existia na fantasia de nossa então presidenta nacional petista, escrevia o
seguinte: "Enquanto nosso estoque de vacina cresce para atender as nossas
necessidades, e está atendendo, vai se tornar um arsenal para vacinas para
outros países, assim como a América é um arsenal de democracia para o
mundo." Outra frase de Biden: "Dinheiro de americanos vai ser usado
para comprar produtos americanos feitos nos EUA. É assim que deve ser e como
vai ser neste governo". Terceira frase: "Estamos prontos para decolar
de novo, para liderar o mundo de novo”.
Obama, Trump, disseram coisas parecidas. É o imperialismo
lutando para continuar mantendo seu poder. Frente a isto, a classe dominante
colonizada fará o que sempre fez: se submeter e se adaptar. Como dizia Juraci
Magalhães, embaixador brasileiro nos Estados Unidos no governo do ditador
Castello Branco: "O que é bom para os Estados Unidos é bom para o
Brasil".
Mas a esquerda não deveria raciocinar desta forma. Entre
outros motivos, porque há muitas diferenças fundamentais entre os EUA e o
Brasil. Os Estados Unidos são um país imperialista, o principal país
capitalista do mundo, que entre outras coisas possui uma moeda que tem o
“exorbitante privilégio” de ainda ser a principal moeda nas transações
internacionais. Tudo que fortalecer os EUA aumentará a pressão sobre o Brasil.
E na atual situação histórica o que os EUA querem do Brasil é
primário-exportação.
Embora haja grandes ilusões no Brasil frente aos Estados
Unidos como um todo, na esquerda as ilusões são maiores em relação aos
Democratas. Como confessou recentemente Celso Amorim, ex-ministro das Relações
Exteriores dos governos Lula 1 e Lula 2 e hoje assessor de relações
internacionais do governo Lula 3: em comparação a Trump, “os democratas eram
mais educados. Muitos deles são nossos amigos”.
A amizade as vezes cega. Não apenas nos faz ver pontos
positivos onde não existem, como também nos faz subestimar os inimigos de
nossos amigos. Isso explica em parte o que está ocorrendo agora, frente ao
governo Trump, apresentado na maioria das vezes como um desequilibrado que
estaria polarizando e destruindo os EUA. Aliás, é incrível ver pessoas
lamentando as ameaças de Trump contra a “democracia bicentenária”, simplesmente
esquecendo que há 200 anos os gringos já diziam que “a América é para os Americanos”,
que a elite dos EUA era escravocrata e que estava promovendo um genocídio
indígena.
Sobre Trump, o fato é que também existe método na loucura.
Vejamos: a hegemonia militar, monetária e financeira precisa de uma base
produtiva. E os EUA estão perdendo a liderança produtiva. Isto corrói as bases
políticas e ideológicas da hegemonia dos EUA no mundo, mas também corrói a
hegemonia da classe dominante dos EUA dentro do seu próprio país. A sociedade
estadunidense está profundamente dividida e sua classe dominante também está
dividida sobre como fazer a América Great Again.
Dentro das regras do jogo, regras e jogo criados em grande
medida pelos próprios EUA, os Estados Unidos seguirão perdendo. Virar a mesa é
a única solução lógica para os EUA tentarem recuperar sua hegemonia. Claro que
isto pode acelerar a queda. Mas “there is no alternative”. Neste sentido,
existe método na aparente loucura de Trump. Existe método e precedente: Nixon,
15 de agosto de 1971. Os EUA rasgaram os acordos de Bretton Woods, boa parte do
mundo se curvou e anos depois a Stars & Stripes triunfou na Guerra Fria.
Nixon é espelho também, ainda que invertido, para a operação que Trump tenta
fazer, de colocar uma cunha entre China e Rússia.
Contra os EUA que rasgam o multilateralismo e atropelam a
globalização, governos e partidos urbi et orbi defendem o status quo
ante. Mas a aparência esconde a essência: no mundo real, quem sabe e pode
está tomando medidas protecionistas de variados tipos. Quem sabe mas não pode
está tentando negociar com os EUA uma redução de danos. Mas há, também, os que
acham que sabem: é o caso de uma parte importante da classe dominante
brasileira, de seus empregados no mundo das ideias & da política
profissional. Em resumo, esta gente acha que o Brasil vai ganhar nas duas
pontas: venderá mais para China e EUA.
Quem acredita nisso não entendeu direito a profundidade do
que está ocorrendo. Nas expressões “guerra comercial” e “guerra de tarifas”, o
essencial está na palavra “guerra”. Um país rico e desprotegido como o Brasil
não será beneficiado por essa guerra: será saqueado. Claro que haverá um setor
do empresariado que se beneficiará com isso: como em toda guerra, os
capitalistas abutres sairão ganhando.
Existe uma alternativa? Óbvio! E o fato de Lula e o PT
estarem na presidência pode ser decisivo. Isto se aproveitarmos a janela aberta
pela crise para transformar profundamente o país: soberania alimentar,
soberania produtiva, soberania energética, soberania digital, soberania
militar, soberania científico-tecnológica, soberania ambiental. Tudo aquilo que
nossa classe dominante e o capitalismo realmente existente em nosso país
odeiam. Tudo aquilo que só as classes trabalhadoras e uma orientação socialista
podem viabilizar.
Qual a disposição do PT e do governo Lula de liderarem uma
revolução deste tipo? Hoje, pequena.
Parte importante da esquerda brasileira está apegada a uma lógica
tradicional de pensar, segundo a qual devemos defender o “sistema” - no caso, o
multilateralismo - do ataque trumpista.
Que devemos derrotar o trumpismo, nenhuma dúvida. Mas não há
como resuscitar o multilateralismo produto da globalização liderada pelos EUA.
Quem pensa fazer isso através do acordo Mercosul-União Europeia não percebe –
ou finge não perceber - que o pressuposto deste “acordo neocolonial” é
cristalizar o Brasil como nação primário-exportadora. O caminho do Brasil deve
ser outro: a industrialização; e a velocidade deve ser imensa.
É nesse contexto que deve ser vista a disputa contra o
cavernícola e contra a extrema-direita. Não se trata apenas de uma batalha em
defesa das liberdades democráticas. Trata-se de uma disputa em torno do
presente e do futuro do Brasil. Bolsonaro, Tarcísio e quetais são os
porta-vozes do setor mais radical do agronegócio, do capital financeiro e dos
interesses imperialistas estadunidenses. De outro lado há setores da direita
tradicional que estão dispostos a um acordo com a extrema-direita, em torno do projeto
que as unifica: superexploração da classe trabalhadora, mal-estar social,
democracia restrita, dependência externa e subdesenvolvimento.
O grande dilema da esquerda brasileira, do PT e do governo é
como derrotar o neofascismo, sem capitular ao capital financeiro e ao
agronegócio. A opção feita até agora não conseguiu resolver este dilema. Se
nada for feito de diferente, podemos ganhar a eleição presidencial de 2026, mas
correndo o risco de ganharmos em condições piores do que as de 2022. O que
reduziria as chances de um quarto mandato Lula superior ao terceiro. E,
portando, reduziria as chances de outras novas vitórias eleitorais.
É preciso admitir que não se trata de um problema de fácil
solução. Mas no mundo, na continente e no Brasil não há nenhuma dificuldade
intransponível. Desafios e ameaças existenciais já foram enfrentadas e
superadas no passado, podemos fazer o mesmo hoje e no futuro. Mas para isso é
preciso oferecer uma alternativa sistêmica para a crise sistêmica. A crise
profunda que vivemos é mais uma prova de que o capitalismo ameaça a
sobrevivência da humanidade e empurra parte importante da população mundial
para o sofrimento físico e mental. A solução sistêmica para a crise está no
socialismo. A esquerda brasileira precisa voltar a falar disso, entre outros
motivos porque acreditar que é possível construir um futuro melhor é essencial
para fazermos do Brasil um país soberano, com bem-estar social, liberdades
democráticas e desenvolvimento. Precisamos voltar a falar de socialismo e,
principalmente, precisamos voltar a lutar pelo socialismo.
Mas é preciso também voltar a falar de imperialismo e voltar
a lutar contra o imperialismo. Nesse particular, Trump é como Bush: provoca
menos dúvidas e ilusões. E gera respostas melhores. Um exemplo disso foi a
escolha feita por Lula, de comemorar os 80 anos da vitória contra o
nazifascismo em Moscou.
Os meios de comunicação que, no Brasil, funcionam como
porta-vozes da classe dominante reagiram violentamente a escolha feita por
Lula. Um dos jornais mais importantes do país, o Estado de S. Paulo, disse num
editorial que “Lula conduz uma política externa pautada não por interesses de
Estado, mas por taras ideológicas e por sua ambição de ser festejado como
vedete terceiro-mundista. Foi assim na aloprada mediação nuclear com o Irã, em
2010. É assim na contemporização sistemática de ditaduras como Cuba, Venezuela
e Nicarágua".
Ler isto deve decepcionar e muito os amigos do governo e da
esquerda brasileira que comemoraram três decisões recentes do governo, a saber,
a de retirar o embaixador brasileiro da Nicarágua, a de não reconhecer o
resultado das eleições da Venezuela e a de não aceitar a entrada da Venezuela
nos BRICS. Afinal, o que o Estadão está dizendo é que não basta ajoelhar, tem
que rezar e muito!
Obviamente, o que também está em jogo é a eleição
presidencial de 2026. Segundo o Estado de S. Paulo, ao ir a Moscou Lula teria
jogado "mais uma pá de cal na tal “frente ampla democrática” que o elegeu
em 2022". Tudo isso porque o Brasil, segundo o Estadão, estaria se
afastando "dos polos democráticos e reformistas do mundo" e se
aproximando "da constelação sombria de regimes autoritários do novo eixo
de caos". Mas se há um eixo do caos neste mundo de 2025, sua capital é Washington
e sua sucursal é Bruxelas.
Estar em Moscou no dia 9 de maio de 2025 foi um acerto de
Lula e da política externa brasileira. E ir em seguida a Pequim, para uma
reunião entre CELAC e China, é outro acerto. A grande questão é saber se estes
dois acertos serão seguidos por um esforço concentrado para reconstruir a
integração regional latino-ameicana e caribenha.