sábado, 16 de agosto de 2025

Texto sobre os Estados Unidos

O texto a seguir foi enviado para tradução no dia 12 de maio. Foi publicado e está disponível no seguinte endereço:  sulatesta.net/wp-content/uploads/2025/06/Su-la-testa-2025_05.pdf

Como se poderá ler, especialmente no trecho destacado em vermelho, nem tudo mundo ficou surpreso com o ataque de Trump contra a soberania nacional.


Aonde vão os Estados Unidos?

Os Estados Unidos influenciam profundamente o conjunto do continente americano. Não se trata apenas de uma influência econômico-social, política e militar. Há uma influência cultural, que vai da cultura política estrito senso até inúmeras outras dimensões. Ao mesmo tempo, a população brasileira, elites inclusive, conhece muito pouco acerca dos Estados Unidos. Aliás, a ignorância explica parte da influência gringa: só a ignorância dos fatos permite acreditar, por exemplo, que os EUA sejam um “modelo” de democracia. A mistura de hegemonia com desconhecimento torna muito mais difícil entender o que se está passando nos Estados Unidos.

Um exemplo disso: o Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores promoveu, no dia 26 de novembro de 2008, um concorrido debate sobre a crise internacional e seus efeitos no Brasil, tendo como palestrantes Guido Mantega e Marco Aurélio Garcia. O debate reafirmou que a crise internacional era um produto direto das chamadas políticas neoliberais, em particular da desregulamentação dos mercados financeiros. Reafirmou, também, que enfrentar a crise exigiria adotar medidas que reforçassem o investimento público, o mercado interno, a integração regional e, de maneira geral, o papel do Estado na economia. Mas ao mesmo tempo o debate mostrou existirem, naquele ano de 2008, muitas questões polêmicas, em aberto e a aprofundar. Uma delas dizia respeito à profundidade e a duração da crise. Apareceu no debate uma tendência a destacar as vantagens comparativas dos “países em desenvolvimento”, em particular o Brasil, frente aos Estados Unidos e à Europa. Esta tendência conduzia a dois equívocos: por um lado, a minimizar os efeitos da crise na “periferia”; por outro lado, a não considerar devidamente que os paises centrais vão tentar transferir os custos da crise para o “resto do mundo”. Mesmo quem acredita que o imperialismo é um “tigre de papel”, deveria levar em conta e se prevenir adequadamente contra esta tentativa. Não o fizemos adequadamente e o que ocorreu foi primeiro um tsunami (termo que a então presidenta do Brasil Dilma Rousseff utilizou para designar o uso da desvalorização do dólar como arma geopolítica e geoeconômica) e, depois, o apoio direto dos EUA ao golpe de 2016 e ao que veio em seguida.

As ilusões no reformismo de Obama foram seguidas, anos depois, pela ilusão no reformismo de Biden. Na época, a então presidenta nacional do PT, a companheira Gleisi Hoffmann, chegou a dizer em 28 de abril de 2021 que Biden estaria “revolucionando a economia capitalista. Nunca pensei que depois de Franklin Delano Roosevelt, admiraria um presidente americano: crescimento de baixo para cima! É o q precisamos para a América Latina. É o que precisamos para o Brasil!”

Biden é aquele cidadão que, na condição de vice-presidente de Obama, operou a favor do golpe no Brasil. Tirante isto, os que comparavam Biden com FDR simplesmente esqueciam que a salvação da economia dos EUA não veio do New Deal, mas sim dos gastos com a Segunda Guerra Mundial. Esqueciam, também, que depois daquela Guerra, a economia dos EUA passou a ser hegemonizada pela dupla Wall Street/Pentágono, sem cuja derrubada é impossível pensar em qualquer revolução naquele país, mesmo uma “revolução no capitalismo”. Os EUA eram em 2021 e continuam sendo uma economia comandada pelo grande capital, oligopolista, financeiro, imperialista. Acreditar que eles vão sair desta crise com “crescimento de baixo para cima”, seja lá o que isto quer dizer, é de uma ilusão sem tamanho. Mas muita gente na esquerda brasileira embarcou nessa ilusão.

Naquela época, o verdadeiro Biden, não este revolucionário que existia na fantasia de nossa então presidenta nacional petista, escrevia o seguinte: "Enquanto nosso estoque de vacina cresce para atender as nossas necessidades, e está atendendo, vai se tornar um arsenal para vacinas para outros países, assim como a América é um arsenal de democracia para o mundo." Outra frase de Biden: "Dinheiro de americanos vai ser usado para comprar produtos americanos feitos nos EUA. É assim que deve ser e como vai ser neste governo". Terceira frase: "Estamos prontos para decolar de novo, para liderar o mundo de novo”.

Obama, Trump, disseram coisas parecidas. É o imperialismo lutando para continuar mantendo seu poder. Frente a isto, a classe dominante colonizada fará o que sempre fez: se submeter e se adaptar. Como dizia Juraci Magalhães, embaixador brasileiro nos Estados Unidos no governo do ditador Castello Branco: "O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil".

Mas a esquerda não deveria raciocinar desta forma. Entre outros motivos, porque há muitas diferenças fundamentais entre os EUA e o Brasil. Os Estados Unidos são um país imperialista, o principal país capitalista do mundo, que entre outras coisas possui uma moeda que tem o “exorbitante privilégio” de ainda ser a principal moeda nas transações internacionais. Tudo que fortalecer os EUA aumentará a pressão sobre o Brasil. E na atual situação histórica o que os EUA querem do Brasil é primário-exportação.

Embora haja grandes ilusões no Brasil frente aos Estados Unidos como um todo, na esquerda as ilusões são maiores em relação aos Democratas. Como confessou recentemente Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores dos governos Lula 1 e Lula 2 e hoje assessor de relações internacionais do governo Lula 3: em comparação a Trump, “os democratas eram mais educados. Muitos deles são nossos amigos”.

A amizade as vezes cega. Não apenas nos faz ver pontos positivos onde não existem, como também nos faz subestimar os inimigos de nossos amigos. Isso explica em parte o que está ocorrendo agora, frente ao governo Trump, apresentado na maioria das vezes como um desequilibrado que estaria polarizando e destruindo os EUA. Aliás, é incrível ver pessoas lamentando as ameaças de Trump contra a “democracia bicentenária”, simplesmente esquecendo que há 200 anos os gringos já diziam que “a América é para os Americanos”, que a elite dos EUA era escravocrata e que estava promovendo um genocídio indígena.

Sobre Trump, o fato é que também existe método na loucura. Vejamos: a hegemonia militar, monetária e financeira precisa de uma base produtiva. E os EUA estão perdendo a liderança produtiva. Isto corrói as bases políticas e ideológicas da hegemonia dos EUA no mundo, mas também corrói a hegemonia da classe dominante dos EUA dentro do seu próprio país. A sociedade estadunidense está profundamente dividida e sua classe dominante também está dividida sobre como fazer a América Great Again.

Dentro das regras do jogo, regras e jogo criados em grande medida pelos próprios EUA, os Estados Unidos seguirão perdendo. Virar a mesa é a única solução lógica para os EUA tentarem recuperar sua hegemonia. Claro que isto pode acelerar a queda. Mas “there is no alternative”. Neste sentido, existe método na aparente loucura de Trump. Existe método e precedente: Nixon, 15 de agosto de 1971. Os EUA rasgaram os acordos de Bretton Woods, boa parte do mundo se curvou e anos depois a Stars & Stripes triunfou na Guerra Fria. Nixon é espelho também, ainda que invertido, para a operação que Trump tenta fazer, de colocar uma cunha entre China e Rússia.

Contra os EUA que rasgam o multilateralismo e atropelam a globalização, governos e partidos urbi et orbi defendem o status quo ante. Mas a aparência esconde a essência: no mundo real, quem sabe e pode está tomando medidas protecionistas de variados tipos. Quem sabe mas não pode está tentando negociar com os EUA uma redução de danos. Mas há, também, os que acham que sabem: é o caso de uma parte importante da classe dominante brasileira, de seus empregados no mundo das ideias & da política profissional. Em resumo, esta gente acha que o Brasil vai ganhar nas duas pontas: venderá mais para China e EUA.

Quem acredita nisso não entendeu direito a profundidade do que está ocorrendo. Nas expressões “guerra comercial” e “guerra de tarifas”, o essencial está na palavra “guerra”. Um país rico e desprotegido como o Brasil não será beneficiado por essa guerra: será saqueado. Claro que haverá um setor do empresariado que se beneficiará com isso: como em toda guerra, os capitalistas abutres sairão ganhando.

Existe uma alternativa? Óbvio! E o fato de Lula e o PT estarem na presidência pode ser decisivo. Isto se aproveitarmos a janela aberta pela crise para transformar profundamente o país: soberania alimentar, soberania produtiva, soberania energética, soberania digital, soberania militar, soberania científico-tecnológica, soberania ambiental. Tudo aquilo que nossa classe dominante e o capitalismo realmente existente em nosso país odeiam. Tudo aquilo que só as classes trabalhadoras e uma orientação socialista podem viabilizar.

Qual a disposição do PT e do governo Lula de liderarem uma revolução deste tipo? Hoje, pequena.   Parte importante da esquerda brasileira está apegada a uma lógica tradicional de pensar, segundo a qual devemos defender o “sistema” - no caso, o multilateralismo - do ataque trumpista.

Que devemos derrotar o trumpismo, nenhuma dúvida. Mas não há como resuscitar o multilateralismo produto da globalização liderada pelos EUA. Quem pensa fazer isso através do acordo Mercosul-União Europeia não percebe – ou finge não perceber - que o pressuposto deste “acordo neocolonial” é cristalizar o Brasil como nação primário-exportadora. O caminho do Brasil deve ser outro: a industrialização; e a velocidade deve ser imensa.

É nesse contexto que deve ser vista a disputa contra o cavernícola e contra a extrema-direita. Não se trata apenas de uma batalha em defesa das liberdades democráticas. Trata-se de uma disputa em torno do presente e do futuro do Brasil. Bolsonaro, Tarcísio e quetais são os porta-vozes do setor mais radical do agronegócio, do capital financeiro e dos interesses imperialistas estadunidenses. De outro lado há setores da direita tradicional que estão dispostos a um acordo com a extrema-direita, em torno do projeto que as unifica: superexploração da classe trabalhadora, mal-estar social, democracia restrita, dependência externa e subdesenvolvimento.

O grande dilema da esquerda brasileira, do PT e do governo é como derrotar o neofascismo, sem capitular ao capital financeiro e ao agronegócio. A opção feita até agora não conseguiu resolver este dilema. Se nada for feito de diferente, podemos ganhar a eleição presidencial de 2026, mas correndo o risco de ganharmos em condições piores do que as de 2022. O que reduziria as chances de um quarto mandato Lula superior ao terceiro. E, portando, reduziria as chances de outras novas vitórias eleitorais.

 É preciso admitir que não se trata de um problema de fácil solução. Mas no mundo, na continente e no Brasil não há nenhuma dificuldade intransponível. Desafios e ameaças existenciais já foram enfrentadas e superadas no passado, podemos fazer o mesmo hoje e no futuro. Mas para isso é preciso oferecer uma alternativa sistêmica para a crise sistêmica. A crise profunda que vivemos é mais uma prova de que o capitalismo ameaça a sobrevivência da humanidade e empurra parte importante da população mundial para o sofrimento físico e mental. A solução sistêmica para a crise está no socialismo. A esquerda brasileira precisa voltar a falar disso, entre outros motivos porque acreditar que é possível construir um futuro melhor é essencial para fazermos do Brasil um país soberano, com bem-estar social, liberdades democráticas e desenvolvimento. Precisamos voltar a falar de socialismo e, principalmente, precisamos voltar a lutar pelo socialismo.

 Mas é preciso também voltar a falar de imperialismo e voltar a lutar contra o imperialismo. Nesse particular, Trump é como Bush: provoca menos dúvidas e ilusões. E gera respostas melhores. Um exemplo disso foi a escolha feita por Lula, de comemorar os 80 anos da vitória contra o nazifascismo em Moscou.

 Os meios de comunicação que, no Brasil, funcionam como porta-vozes da classe dominante reagiram violentamente a escolha feita por Lula. Um dos jornais mais importantes do país, o Estado de S. Paulo, disse num editorial que “Lula conduz uma política externa pautada não por interesses de Estado, mas por taras ideológicas e por sua ambição de ser festejado como vedete terceiro-mundista. Foi assim na aloprada mediação nuclear com o Irã, em 2010. É assim na contemporização sistemática de ditaduras como Cuba, Venezuela e Nicarágua".

 Ler isto deve decepcionar e muito os amigos do governo e da esquerda brasileira que comemoraram três decisões recentes do governo, a saber, a de retirar o embaixador brasileiro da Nicarágua, a de não reconhecer o resultado das eleições da Venezuela e a de não aceitar a entrada da Venezuela nos BRICS. Afinal, o que o Estadão está dizendo é que não basta ajoelhar, tem que rezar e muito!

 Obviamente, o que também está em jogo é a eleição presidencial de 2026. Segundo o Estado de S. Paulo, ao ir a Moscou Lula teria jogado "mais uma pá de cal na tal “frente ampla democrática” que o elegeu em 2022". Tudo isso porque o Brasil, segundo o Estadão, estaria se afastando "dos polos democráticos e reformistas do mundo" e se aproximando "da constelação sombria de regimes autoritários do novo eixo de caos". Mas se há um eixo do caos neste mundo de 2025, sua capital é Washington e sua sucursal é Bruxelas.

 Estar em Moscou no dia 9 de maio de 2025 foi um acerto de Lula e da política externa brasileira. E ir em seguida a Pequim, para uma reunião entre CELAC e China, é outro acerto. A grande questão é saber se estes dois acertos serão seguidos por um esforço concentrado para reconstruir a integração regional latino-ameicana e caribenha.