segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Sobre o tuíte de Fernando Haddad


No discurso feito na noite de 28 de outubro, o companheiro Fernando Haddad não cumprimentou o presidente eleito.

Até onde sei, não se tratou de esquecimento, mas de uma decisão coletiva e consensual.

Na manhã de 29 de outubro, o companheiro Fernando Haddad divulgou o seguinte “tuíte”:

“Presidente Jair Bolsonaro. Desejo-lhe sucesso. Nosso país merece o melhor. Escrevo essa mensagem, hoje, de coração leve, com sinceridade, para que ela estimule o melhor de todos nós. Boa sorte!”

Mais do que a “virada” de posição, a banalidade do texto tuitado contrasta tanto com a tragédia histórica, que pensei tratar-se de mais uma fake news, talvez obra de um hacker.

Mas não é fake news.

Não faço ideia dos motivos e argumentos que levaram meu candidato a cometer este gesto.

Apenas quero dizer que, neste caso, Haddad não me representa.

O nominado no tuíte é agora presidente eleito, gostemos ou não. 

E ao decidir participar da eleição, mesmo intuindo que ela podia estar sistemicamente fraudada, somos agora levados a ter que reconhecer o resultado.

Mas isso não nos obriga a cumprir certos rituais e protocolos, pois o outro lado descumpriu todos os rituais e protocolos.

Além disso, o “sucesso” e a “boa sorte” de Bolsonaro não serão o “melhor” para a maioria trabalhadora deste país. Nem mesmo para os populares que nele votaram.

Por tudo isto, confesso meu absoluto espanto ao ler o seguinte trecho do tuíte: “Escrevo esta mensagem, hoje, de coração leve, com sinceridade, para que ela estimule o melhor de todos nós”.

Milhões de pessoas “anônimas” e milhares de pessoas “famosas” correram e seguem correndo riscos. Alguns perderam a vida. Outros, inclusive meu candidato à presidência, foram ameaçados com “apodrecer na cadeia”. E o programa neofascista e ultraliberal do vencedor não tem como estimular “o melhor de todos nós”.

Sendo assim, a única mensagem que na minha opinião, como eleitor de Haddad, penso que poderia ser enviada ao eleito seria algo mais ou menos assim: “Cumpra a Constituição. Detenha a violência de seus partidários. Da nossa parte, faremos oposição, como nos faculta a lei, nossa consciência e nossos princípios. Ao povo brasileiro desejamos boa sorte e muita luta!”

Por fim: cada um sabe quanto pesa seu coração. 

Claro que está “pesado” o coração de quem pensa nos que foram, estão ou podem ser vítimas de violência. 

Claro que está “pesado” o coração de quem nunca usou o termo “fascista” e “ditadura” em vão. 

Mas, ao mesmo tempo, sempre esteve leve o coração de quem travou o bom combate, do lado certo, pela causa justa, ao lado de tanta gente que tem um coração vermelho que bate do lado esquerdo do peito. 

Nada disto mudou, de ontem para hoje. Nem mudará, a não ser com muita luta. Até porque, em se tratando de Bolsonaro, gentileza não gera gentileza.

Valter Pomar

domingo, 28 de outubro de 2018

Não há barbarie que dure para sempre

TSE acaba de informar que o candidato da extrema direita ganhou as eleições presidenciais de 2018, com 11milhões de votos de vantagem. O candidato neofascista teve 57,5 milhões de votos e Haddad 46,5 milhões de votos.

Nossa resposta é: resistiremos.

O Brasil tem mais de 200 milhões de habitantes e mais de 140 milhões de eleitores. 
O neofascista e ultraliberal não tem o apoio da maioria do povo brasileiro. 

A votação em Haddad é um dos muitos indicadores de que, contra o neofascismo e o ultraliberalismo, haverá muita resistência. 

Não devemos ter ilusões: a extrema-direita já demonstrou estar disposta a implementar, mesmo que a ferro e fogo, seu programa ultraliberal e antidemocrático. 

E um dos principais obstáculos para isso é e continuará sendo o conjunto das organizações da esquerda brasileira, com destaque para o PT, a CUT, o MST, a UNE e a Frente Brasil Popular.

Foram estas forças que vertebraram a luta contra o golpe e contra a extrema-direita.
No curto prazo, caberá a estas organizações:

a) contribuir na resistência democrática e popular contra o neofascismo e o ultraliberalismo, inclusive mobilizando imediatamente os setores populares contra o que Michel Temer tentará fazer, no apagar das luzes de seu governo golpista;

breforçar as medidas em defesa dos direitos humanos, da vida e da integridade de seus militantes, atividades e sedes, impedindo que a violência combinada de grupos paramilitares e a cumplicidade ativa ou passiva de setores do aparato judicial e de segurança destruam, intimidem e/ou desorganizem o funcionamento da esquerda brasileira;

cformular uma estratégia e um modelo organizativo adequados ao novo momento histórico, articulando partidos e movimentos, bancadas parlamentares e governos liderados pelo PT e aliados, em uma frente democrática e popular em defesa das liberdades democráticas e dos direitos econômicos e sociais do povo;

dretomar com toda energia a campanha Lula Livre. 

No médio e longo prazos, o êxito da resistência, a derrota do neofascismo ultraliberal, a reconquista do governo federal, a luta por transformações democrático-populares e socialistas, dependerão de que percebamos que não estamos em 1968, nem em 1987 ou 1995.

A estratégia adotada pela maior parte da esquerda brasileira, nos momentos citados, não é adequada para o momento que teve início na noite de 28 de outubro. 

Um dos maiores desafios do PT será ajudar a construir e implementar uma nova linha política estratégica e uma conduta cotidiana à altura desta nova situação histórica. 

As vitórias da extrema-direita nos estados de SP, RJ e MG, bem como a força da centro-esquerda e do PT no Nordeste precisam ser objeto de análise detida.

Nossa linha política deve dar grande destaque à questão regional, que sobressai a cada eleição. 

Nossa linha também deverá combinar, de maneira adequada, a luta em defesa das liberdades democráticas, com a defesa dos interesses econômicos e sociais das classes trabalhadoras, evitando tanto o economicismo quanto a defesa “em abstrato” da “democracia”.

E nossa linha inclui continuar defendendo e construindo o Partido dos Trabalhadores. 

O Partido dos Trabalhadores foi construído em 1980, na luta contra a Ditadura Militar e, depois, contra a “transição conservadora”. Em 1989 quase ganhamos a Presidência da República. Nos anos 1990 estivemos na linha de frente da oposição ao neoliberalismo. De 2003 a 2016 governamos o Brasil. Desde então, lutamos contra o golpe e lideramos o enfrentamento ao neofascismo. 

Essa trajetória nos converte, automaticamente, em inimigo principal do governo que tomará posse em janeiro de 2019. 

Terão continuidade a perseguição midiática, o arbítrio judicial e policial e as violências paramilitares. Tentarão inviabilizar nosso funcionamento, dividir nossas fileiras e, inclusive, cassar nossa legenda. 

Só derrotaremos estas e outras agressões — a começar pela prisão política de Lula — se mantivermos uma linha política correta, o que inclui reconstruir os nossos vínculos com aqueles setores da classe trabalhadora que se distanciaram de nós.

Faz parte da defesa do PT um balanço detalhado de nossa recente campanha eleitoral. 

Balanço dos acertos (entre os quais destacamos a defesa até o limite da candidatura de Lula), dos erros políticos (entre os quais destacamos o tempo gasto e as concessões feitas no sentido de atrair setores de “centro”, quando mais importante teria sido priorizar a desconstrução de Bolsonaro e a conquista do voto popular) e organizativos (onde se destaca o atraso com que se enfrentou o tema da comunicação nas chamadas redes sociais). 

Ao fazer o balanço da campanha presidencial, articulado ao balanço das campanhas para governador, Senado e proporcionais, devemos ser os primeiros a apontar nossos erros. 
Entre eles, o de não termos conseguido impedir, nem reverter, a conquista de parcelas das classes trabalhadoras pelo discurso neofascista e ultraliberal. 

Ao reconhecer erros, não nos furtaremos a desmascarar aqueles que criticam e pedem “autocrítica” do PT apenas para esconder a contribuição que deram, por ação ou omissão, para o crescimento político e eleitoral da extrema-direita. Inclusive, em alguns casos,  não tomando posição explícita na reta final do segundo turno.

A covardia destes contrasta com a valentia de milhares de “famosos” e de milhões de “anônimos” que dedicaram tempo, suor e saliva para tentar impedir a catástrofe.

A militância do PT ocupou seu lugar na primeira fila no combate ao neofascismo ultraliberal. E lutou o bom combate. Viva a militância petista!!!

O PT deve acolher a militância que despertou para a luta desde o golpe, bem como aquela que hoje está abrigada em outros espaços, como o MST e organizações próximas. 

No caso do PCdoB, o PT deve abrir um diálogo que permita a este partido contornar os problemas criados pela cláusula de barreira. 
Diálogo similar deve ser feito no terreno sindical e das frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, na perspectiva de unificar ao máximo que for possível as forças da esquerda.

O candidato neofascista e ultraliberal ganhou na apuração dos votos com o apoio do arbítrio, da mentira, do abuso de poder econômico e de uma fraudulenta manipulação midiática das redes sociais — crimes eleitorais gravíssimos que o judiciário não quis punir. Particularmente decisiva para a vitória do neofascista foi a decisão do TSE, impedindo Lula de ser candidato.

O período que se inaugura será de imensos desafios e dificuldades. Sem subestimar as dificuldades que se abaterão sobre o governo da extrema-direita, tampouco devemos minimizar o tempo e o esforço que serão necessários para derrotá-lo.

Mas a vitória será possível, se além de todas as tarefas e desafios abordados anteriormente, continuarmos construindo o Partido dos Trabalhadores, com uma linha política que o mantenha como principal expressão do povo consciente e que luta, dos movimentos populares e sindical, da cidadania democrática, da militância de esquerda, dos trabalhadores e trabalhadoras que lutam pelo socialismo.


terça-feira, 23 de outubro de 2018

Será que FHC vai apoiar Haddad?


Não tenho a menor dúvida de como votaria Fernando Haddad, se houvesse um segundo turno entre Bolsonaro e Alckmin.

Pelo mesmo motivo, acho que Fernando Haddad não tinha a menor dúvida de qual seria a posição de FHC neste segundo turno.

Aliás, Haddad vem se esforçando ao máximo para conquistar o voto do chamado “centro democrático”.

O esforço inclui desde elogiar Juscelino, Moro, Joaquim Barbosa e a Lava Jato, até impor a alteração de aspectos fundamentais do programa de governo do PT.

A partir de 29 de outubro, caberá discutir se este esforço teve alguma utilidade eleitoral, coerência política ou reflexos positivos sobre o que faremos depois do segundo turno.  

Mas o fato é que, pelo menos até o momento em que escrevo este texto (madrugada da terça-feira 23 de outubro), Fernando Henrique Cardoso não declarou seu voto em Haddad.

Talvez FHC acabe votando em Haddad. Talvez até venha a declarar o voto, publicamente. Seja como for, embora não compartilhe nenhuma ilusão sobre o significado e o impacto deste possível apoio, ainda assim cabe perguntar: o que motiva a postura de FHC?

A resposta pode ser encontrada tanto na sua trajetória recente, quanto no que ele escreveu recentemente.

As 15h06 de 22 de outubro, na sua conta no twitter, FHC escreveu ser “inacreditável” um “candidato à Presidência pedir às pessoas que se ajustem ao que ele pensa ou pagarão o preço: cadeia ou exílio. Lembra outros tempos. O que o Brasil precisa é de coesão no rumo do crescimento e diminuição da desigualdade”. 

O uso do termo “inacreditável” revela que, até então, FHC ainda não havia percebido quem era e o que significava Bolsonaro.

As 9h09 de 21 de outubro, FHC escreveu que “as declarações do deputado Bolsonaro merecem repudio dos democratas. Prega a ação direta, ameaça o STF. Não apoio chicanas contra os vencedores, mas estas cruzaram a linha, cheiram a fascismo. Têm meu repúdio, como quaisquer outras, de qualquer partido, contra leis, a Constituição”.

O uso da expressão “chicanas contra os vencedores” parece indicar que FHC considerava que a) a eleição estava decidida; b) as ações do PT e do PDT junto ao TSE, contra a manipulação das redes sociais pela candidatura Bolsonaro, seriam “chicana”.

As 6h57 de 20 de outubro, FHC escreveu que “há em circulação um manifesto de democratas progressistas. Bem-vindo. Com a provável eleição de Bolsonaro precisaremos mais ainda de defensores da democracia, para impedir que ele (ou quem vier a vencer) tente sair do rumo constitucional”.

O uso da expressão “quem vier a vencer” serve, na mensagem acima, apenas para insinuar que Haddad poderia constituir um risco simétrico ao de Bolsonaro.

No dia 19 de outubro, em artigo intitulado “O futuro político do Brasil” e publicado pelo jornal El País, FHC foi ainda mais explicito. 

A íntegra do artigo pode ser lida aqui: 

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/opinion/1539880016_293081.html

Sobre o resultado do primeiro turno, FHC diz que o país foi “varrido por um tsunami. Políticos e partido tradicionais ruíram nas urnas”. 

Afirmação meio verdadeira, pois esquece que o PT resistiu ao tsunami, elegeu a maior bancada na Câmara dos Deputados, vários governadores e, contra chuvas e trovadas, levou Haddad ao segundo turno.

Sobre Bolsonaro, FHC afirma tratar-se de um “obscuro parlamentar” que teve como lema de campanha “a defesa da ordem” e “a luta contra a corrupção”. 

Nenhuma palavra é dita sobre o apoio que Bolsonaro recebe da cúpula do Exército, da comunidade de inteligência, de setores do empresariado, do judiciário, dos partidos de centro-direita, de meios de comunicação. 

Tampouco se lembra que a extrema direita foi estimulada a sair do armário, durante a campanha pelo golpe-impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff.

Sobre Lula, FHC afirma que ele teria sido “acusado e julgado em duas instâncias por corrupção”, não por “perseguição política”. 

Ou seja, nesta questão específica, FHC e Bolsonaro pensam no fundamental o mesmo.

Sobre Haddad, FHC afirma que ele foi “derrotado nas várias regiões do Brasil (com exceção do Nordeste, onde também perdeu em várias capitais), nas várias camadas de renda (a exceção dos que ganham dois salários mínimos ou menos) e nas diversas categorias de formação escolar, exceto entre os menos educados, sendo que de forma esmagadora nas de portadores de diplomas de curso superior. Só quando se olha os dados por gênero há uma pequena diferença (menor de 5%) em favor de Haddad: as mulheres votaram nele mais do que os homens”.

Chega a ser divertido o raciocínio de FHC, pois é óbvio que este resultado obtido por Haddad poderia ser descrito como positivo para alguém que foi lançado oficialmente no dia 11 de setembro, substituindo um candidato que foi impedido de concorrer por um ato arbitrário.

Sobre o segundo turno, FHC diz que a diferença em favor de Bolsonaro “dificilmente será reduzida nos poucos dias que nos separam da data do segundo turno”. Mas que “ainda assim”, “o PT e alguns de seus aliados apelam aos líderes e segmentos democráticos para formarem uma espécie de front popular (como nos velhos tempos...)”. 

O "ainda assim" é deveras curioso: por acaso uma situação difícil é motivo para desistirmos da luta?

FHC diz que o PT e seus aliados “afirmam que não governarão hegemonicamente” e “aceitarão a diversidade democrática”. Mas, pergunta FHC, “Quem crê nisso?” Entretanto, tal descrença “não desobriga os democratas de se oporem a Bolsonaro, desde já, e especialmente no futuro”. 

Chegando neste ponto, cabe perguntar: se é obrigação dos democratas se opor “desde já” a Bolsonaro, não seria o caso de materializar esta oposição votando em Haddad?

No artigo publicado no El País, assim como nas mensagens posteriores citadas no início deste texto, FHC não dá este passo. 

E não dá este passo, entre outros motivos, porque ele afirma não acreditar que Bolsonaro seja um fascista, relativizando até mesmo a ameaça que o capitão constitui para a democracia.

Nas palavras de FHC: “Se ganhar e se desviar da regra constitucional, dos valores da Democracia e da luta por maior igualdade terá de encontrar um muro de oposicionistas dificultando que avance”.

Se? 

Como pode alguém duvidar que, “se ganhar”, Bolsonaro irá “se desviar”?

Neste momento de seu artigo ao El País, FHC apresenta sua interpretação das “causas mais profundas” do “tsunami e das forças que o movem”. 

Fala do “ódio irracional ao PT”, eximindo-se de qualquer responsabilidade e não explicando por quais motivos, apesar deste “ódio”, o PT conseguiu sobreviver, enquanto outros partidos (como o MDB e o PSDB) naufragaram. 

FHC fala da economia, da política, da tecnologia, das classes e da comunicação, para concluir que “Bolsonaro é uma folha seca impulsionada pela ventania de todas estas transformações”. 

A frase poética serve como folha de parreira para dissimular a participação ativa, direta e indireta, de amplos setores da classe dominante brasileira na construção da candidatura Bolsonaro. 

Contribuição que teve seu ato mais recente na cassação da candidatura Lula, que então liderava as pesquisas. Quem cassou Lula, catapultou Bolsonaro.

FHC diz que Bolsonaro “simboliza o anseio de ordem diante do medo do desconhecido”, frase que pode explicar os motivos de alguns. 

Mas não explica os motivos dos empresários, dos políticos de direita, dos intelectuais e dos setores do aparato de segurança e judiciário que apoiam Bolsonaro. 

Estes apoiam Bolsonaro, não por “medo do desconhecido”, mas para derrotar o PT e o conjunto da esquerda brasileira. Aliás, como noutras vezes na história brasileira, o apelo à “ordem” tem este objetivo.

FHC afirma que “de imediato, o que se faça alterará pouco a tendência de voto”. 

Pode ser que sim, pode ser que não. Mas como julgar a atitude de uma liderança política e intelectual que adota a atitude de observador neutro e passivo diante de uma catástrofe iminente?

FHC sabe que sua atitude é inaceitável, inclusive para grande parte das pessoas que ele preza. Por isso ele busca, em seu artigo ao jornal El País, minimizar o risco que Bolsonaro representa. 

Diz FHC, sobre Bolsonaro: “não se trata da volta ao fascismo: a história, no caso, não se repete. Trata-se de outras formas de pensamento e ação não democráticas. Não vivemos mais na época da Guerra Fria. Não se trata da volta do autoritarismo militar com a bandeira do anticomunismo”.

A frase acima foi publicada no dia 19 de outubro. Dois dias depois FHC já estava sentindo o cheiro de fascismo e da volta de velhos tempos. 

Acontece que os fatos são testarudos e, ao contrário do que diz FHC em seu artigo El País, Bolsonaro opera sim a bandeira do anticomunismo, a extrema-direita reunida ao redor de sua candidatura assumiu sim diversas características dos clássicos movimentos fascistas, e sua eventual vitória será encarada pelos militares como uma redenção da ditadura.

Motivos estes que, tomados isoladamente ou de conjunto, são mais do que suficientes para fazer com que alguém que se considera democrata, trabalhe ativamente para impedir que Bolsonaro vença, ao invés de ficar pontificando que a história não estaria se repetindo (aliás, é claro que não está se repetindo, sendo este "argumento" utilizado por FHC apenas para justificar a passividade e neutralidade eleitoral).

FHC afirma que o que “ocorre hoje não foi planejado pelas Forças Armadas, embora, paradoxalmente, elas aumentarão a voz pela decisão das urnas. Espero, ainda, que também sirvam de barreira de contenção a explosões de personalismo autoritário ou de ‘justiça pelas próprias mãos’ por parte de ‘grupos exaltados’.” 

Ao contrário do que diz FHC, há muitos sinais de que a candidatura Bolsonaro não foi uma aventura isolada, tendo recebido apoio e assessoria ativa, tanto de setores das forças armadas, quanto da comunidade de inteligência dos EUA e de Israel. 

Sendo assim, acreditar que estas mesmas forças vão servir de “barreira de contenção” é puro pensamento positivo. 

FHC termina seu artigo no El País afirmando que “a batalha a dar-se é a de reconstituição da institucionalidade democrática”. 

Para os que pensam assim, uma pergunta óbvia: será mais fácil esta "reconstituição" em um governo Haddad ou em um governo Bolsonaro? 

FHC não responde a tal pergunta, encerrando seu artigo da seguinte forma: “quem tem o passado como testemunha de sua sinceridade não precisa da avaliação moral de quem, também de boa fé, pensa de outra maneira”. 

Na maior “boa fé”, o que posso dizer é que se não votar e declarar voto em Haddad, como fizeram Marina e Eymael (!!!!), FHC estará sendo cúmplice passivo dos que planejam a destruição física da esquerda brasileira.

ps. Neste sentido, para quem acredita, o esforço de Haddad visa algo mais do que um voto: trata-se de salvar não apenas a reputação, mas também a "alma" de FHC.











     



domingo, 21 de outubro de 2018

Leiam Amoêdo

O senhor João Amôedo assinou e o jornal Folha de S. Paulo de 21 de outubro de 2018 publicou artigo intitulado “Estamos ainda distantes do Brasil que queremos”.

O artigo anuncia que, no domingo 28 de outubro, Amoêdo votará “mais uma vez contra o PT, mas, como das vezes anteriores, não é em um projeto em que acredito”.

Amoêdo não explica por quais motivos ele não acredita em Bolsonaro, acerca do qual nos diz apenas que faria “um governo cujos planos e capacidade de execução desconhecemos”.

Por outro lado, Amoêdo desanca o PT. Entre as críticas usuais, aparecem três afirmações que recapitulo a seguir, na mesma ordem em que aparecem no artigo supracitado:

1/ o PT “deveria ter seu registro no mínimo questionado”;

2/ “ninguém que tenha um mínimo de informação e coerência pode aceitar a existência de um partido como o PT”;

3/ “a saída do PT do poder de forma consistente só acontecerá com a nossa evolução como sociedade”.

O roteiro está claro.

1/ Cassar o registro do PT.

2/ Proibir que o PT exista.

3/ Eliminar as condições de uma possível ressurgência do PT.

Amoêdo foi candidato à presidência da República pelo partido Novo. Recebeu 2.679.744 votos no primeiro turno. Seu patrimônio, declarado ao TSE, é de 425 milhões de reais. 

Sua posição sobre o PT é a mesma de boa parte da “elite” econômica: usar Bolsonaro para “limpar as cavalariças”. E depois, no futuro, produzir uma alternativa “consistente”.

Acontece que “ninguém que tenha um mínimo de informação e coerência” pode desconhecer que acerca dessas coisas (eleger um fascista, cassar e caçar a esquerda), só se pode ter certeza sobre como começam. Mas ninguém pode ter certeza sobre como terminam. E geralmente não terminam nada bem.

Seja como for, os petistas e toda a esquerda precisam ter claro que este é o plano de grande parte das “elites” brasileiras.

Não adianta fazer uma campanha moderada, não adianta fazer autocríticas, não adianta fazer concessões programáticas, não adianta elogiar tucanos e torquemadas. “Eles” não admitem nossa “existência”.

Mais um motivo para derrotar esta gente no dia 28 de outubro.







quarta-feira, 17 de outubro de 2018

É HORA DE JOGAR A TOALHA?

Vários “democratas” seguem agindo como se fosse mais importante cobrar autocrítica do PT do que derrotar Bolsonaro.

Ciro Gomes vai para a Europa e seu irmão provoca um conveniente bate-boca com petistas.

O Ibope crava 59 a 41 e muita gente acha que não há mais tempo para virar.

E, cereja do bolo, o senador eleito Jaques Wagner acha que contribui repetir como ele acha que as coisas deveriam ser, se elas não fossem como são.

Diante disso tudo, três opiniões:

1/tá muito difícil sim, mas SE CORRIGIRMOS a linha e a postura, continua sendo possível vencer. Impossível, impossível mesmo, será “levar a vida” normalmente, com um fascista eleito;

2/quem está em pânico, quem acha que a derrota é certa, quem prefere ir embora, por favor vá já, pois mais ajuda quem não atrapalha;

3/quem escolhe lutar, mesmo sabendo que a “munição” é pouca, o risco é alto e a vitória incerta, não pergunte “se vai dar”, pois só quem joga a toalha tem certeza absoluta do que vai acontecer.

Em situações muito piores que a atual, gente muito boa escolheu lutar e venceu.

Sendo assim, vamos guardar todo nosso fôlego e energia para ganhar votos.

E sobre o resto, conversamos dia 29 de outubro.

Haddad presidente, Manu vice, Lula livre!!!

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Celso Rocha de Barros e a dignidade do PT

Servidor federal e doutor em sociologia pela Universidade de Oxford, Celso Rocha Barros escreveu e a Folha de S. Paulo publicou, no dia 8 de outubro de 2018, um artigo intitulado “PT, volte a ser digno da hora". Reproduzo ao final.

É um artigo deveras curioso. Faz tantas críticas ao PT, que às vezes parece um roteiro para justificar a atitude daqueles que, frente ao fascismo, escolhem o caminho da “neutralidade”. 

Mas acredito que o autor está sinceramente convencido de que devemos derrotar Bolsonaro, sob pena “de que os pobres brasileiros não consigam mais se fazer ouvir no sistema político por uma geração”. 

Portanto, vejamos o que ele propõe para que Haddad possa ser o próximo presidente do Brasil.

Segundo Rocha Barros, o “fracasso de Michel Temer e as revelações da Lava Jato sobre os partidos de direita deram sobrevida ao Partido dos Trabalhadores e colocaram Fernando Haddad no segundo turno”. 

Verdade? Sim, mas meia. Há também que considerar, por exemplo, a influência de Lula sobre o eleitorado popular, especialmente no Nordeste, e a resiliência do Partido dos Trabalhadores à uma década de ataques. 

Não fossem estas duas variáveis, não seria Haddad quem estaria no segundo turno. 

Também conforme Rocha Barros, esta eleição “é a chance do PT encerrar a crise que ajudou a começar com a política econômica do primeiro mandato de Dilma Rousseff”. 

Verdade? Não, por diversos motivos. 

Em primeiro lugar, o que está em jogo neste segundo turno não é a crítica ou a autocrítica do PT. O que está em jogo é a sobrevivência das liberdades democráticas, das políticas de bem estar e da soberania nacional.  

Em segundo lugar, a eleição presidencial não vai encerrar crise alguma. No máximo dará melhores condições para que os setores democráticos e populares enfrentem a crise. 

Em terceiro e principalmente, de que "crise" Rocha Barros fala?

Vejam a frase completa outra vez: “Há eleições que se pode perder, mas essa não é uma delas. É a chance do PT encerrar a crise que ajudou a começar com a política econômica do primeiro mandato de Dilma Rousseff”. 

A pergunta é: qual “crise” teve seu começo “ajudado” pela “política econômica adotada pelo primeiro mandato de Dilma”? 

A resposta está implícita no parágrafo seguinte, onde Rocha Barros afirma que “o primeiro passo, portanto, é abraçar a responsabilidade econômica que faltou a Dilma em 2012”. 

Na origem dos nossos problemas atuais estaria, portanto, a falta de “responsabilidade econômica” da presidenta Dilma em 2012. 

Notem que esta narrativa foi defendida pelo PSDB nas eleições de 2014 e perdeu nas urnas. E foi apoiado nela que o PSDB sustentou, perante o povo, sua postura golpista em 2015 e 2016: o governo Dilma seria responsável pelos problemas econômicos do Brasil. 

Moral da história: aceita esta tese de Rocha Barros, a culpa seria do PT. 

Compreende-se por quais motivos ele defende que a tática do segundo turno consistiria em “esquecer o programa do primeiro turno”. 

O segundo passo proposto por Rocha Barros, que ele considera “até mais importante”, é que o PT “precisa abandonar qualquer ressentimento, qualquer desejo de vingança causado pela crise política que seus adversários provocaram com o impeachment de Dilma Rousseff”. 

As palavras são curiosas. 

Seria “ressentimento” dizer que não foi impeachment, mas sim um golpe? 

Seria “desejo de vingança” lembrar que não se trata de uma crise política, mas sim de uma onda fascista? 

Seria inconveniente perguntar por quais motivos a palavra maldita (fascismo) não aparece no texto de Rocha Barros? 

Talvez não apareça pelo seguinte motivo: neste caso pegaria mal fazer tantas exigências ao PT. 

Afinal, impor condições, mesmo que às custas da vitória do fascismo, não é propriamente uma atitude razoável.

As condições de Rocha Barros são as seguintes: é “hora de esquecer o programa do primeiro turno e abraçar o programa da frente democrática que deve se formar no segundo. Esse programa deve reconhecer a necessidade de ajuste fiscal, corrigindo os defeitos do ajuste de Temer, e deixar de lado toda palhaçadinha de nova Constituição, controle da mídia, e demais babaquices que intelectual petista burro enfiou no programa de governo porque estava com raiva do impeachment”.

(Deixemos de lado a referência ao “intelectual petista burro”, sem dúvida um belo jeito de começar a construção de uma “frente democrática”, especialmente quando todos sabem que foi o próprio Fernando Haddad quem coordenou a elaboração do programa. )

É importante atentar que o núcleo da crítica de Rocha Barros não atinge a "palhaçadinha" da Constituição, nem o tema do "controle" da mídia, mas sim o tema do ajuste fiscal. 

O que ele propõe é: continuar o ajuste fiscal de Temer, sem os "defeitos"

Noutras palavras: o programa da tal frente democrática é o programa do “centro democrático”, aquele que foi pulverizado nas eleições. 

Rocha Barros quer nos convencer de que, defendendo este programa, o PT conseguiria “reconquistar a confiança geral da população quanto à sua condição de partido responsável, na economia e na política”. 

Claro que ele não consegue esclarecer o que seria a tal “confiança geral”, numa eleição polarizada entre fascismo e liberdades democráticas. 

Nem explica por qual motivo o PT conseguiria sucesso, onde o PSDB fracassou. 

Sem falar, é claro, na repetição do mantra da direita e da centro-direita contra o PT: a falta de responsabilidade, “argumento” esgrimido pelos que tentaram passar a impressão de que houve um impeachment e não um golpe.

Rocha Barros profetiza que “essa é a segunda chance do Partido dos Trabalhadores, mas também é a última”. 

Talvez ele diga isso por saber, embora não use o termo no seu artigo, que o fascismo inclui a aniquilação física dos seus oponentes e a destruição das organizações democráticas e de esquerda.

E agrega: “Se o PT perder para Bolsonaro, há uma perspectiva real de que os pobres brasileiros não consigam mais se fazer ouvir no sistema político por uma geração. O PT não tem o direito de impor aos pobres essa tragédia sendo incompetente ou radical. Agora é a hora do partido voltar a ser a alternativa da esquerda democrática como foi nos anos Lula”.

Genial, não? 

Se Bolsonaro ganhar, seria por culpa do PT. Não dos que estão lavando as mãos, não dos que estão supostamente neutros, nem tampouco seria culpa dos que estimularam o fascismo a tomar conta das ruas. 

A culpa seria do PT, que (só falta dizer isto) insiste em falar alto e usar roupas provocantes!

Para evitar falsas polêmicas: é óbvio que a “campanha no segundo turno deve ser a mais inclusiva possível para todo mundo, da esquerda, do centro ou da direita, que defenda a democracia contra Bolsonaro”. 

É óbvio, também, que queremos que os “centristas democratas” votem no PT. 

Sendo legítimo que se faça alterações no programa, em nome de uma aliança. 

Ocorre que, a depender das alterações que se promovam no programa e na tática da campanha, não haverá vitória alguma.

O problema é: só ganharemos estas eleições se conseguirmos “terminar de ganhar os votos que eram de Lula entre os pobres”. 

Rocha Barros mesmo admite que isto (ganhar voto entre os pobres) é algo que “o PT sabe fazer”. Mas é impossível fazer isto, se a campanha assumir um discurso de ajuste fiscal.

(Vou pular a parte que fala em “discurso imbecil contra Lava Jato ou a favor do vagabundo Nicolás Maduro”; apenas registro que este tipo de approach, quando ganha as massas, vira "bolsonarismo".)

Rocha Barros termina seu texto pedindo que o PT “torne-se” digno da hora. 

Não apenas o tempo verbal é curioso, mas o conjunto do raciocínio. 

Vencemos quatro eleições, fomos derrubados por um golpe, podemos vencer a quinta eleição, mas se não conseguirmos, esta seria nossa “última chance”. 

E ainda: do PT derrotar Bolsonaro dependeria “a sobrevivência da conversa democrática brasileira, a sobrevivência tanto da centro-esquerda quanto da centro-direita, nossa participação na comunidade das nações livres”. 

E se o PT conseguir dar conta de tão grandiosa tarefa? Pois bem, mesmo neste caso ele deveria ser “recriado”. 

E para que ninguém tenha dúvida sobre o sentido dessa recriação, citemos Rocha Barros: “o partido que existiu até agora, aliás, acabou neste domingo. Serviu para manter o eleitorado lulista unido e colocar Haddad no segundo turno. Agora Haddad, junto a Jaques Wagner e os governadores do partido —que já vêm fazendo ajuste fiscal faz tempo— devem recriá-lo”.

De novo, para Rocha Barros o central é o ajuste fiscal.

Respeitosamente, sem ressentimentos nem sentido de vingança, eu sugeriria o seguinte: se quisermos ganhar eleição, e se quisermos tomar posse e governar, precisamos do voto e do apoio do povo. 

Até por isto, o PT não é nem pode ser o partido do “ajuste fiscal”. 

E quem precisa ser recriado não é o PT. É o PSDB. Este sim acabou no domingo 7 de outubro. 

Segue abaixo o texto criticado.

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PT, volte a ser digno da hora
O PT está prestes a ganhar algo raríssimo na política: uma segunda chance. O fracasso de Michel Temer e as revelações da Lava Jato sobre os partidos de direita deram sobrevida ao Partido dos Trabalhadores e colocaram Fernando Haddad no segundo turno, na eleição mais importante de nossa história. Há eleições que se pode perder, mas essa não é uma delas. É a chance do PT encerrar a crise que ajudou a começar com a política econômica do primeiro mandato de Dilma Rousseff.
O primeiro passo, portanto, é abraçar a responsabilidade econômica que faltou a Dilma em 2012. O segundo passo é até mais importante: precisa abandonar qualquer ressentimento, qualquer desejo de vingança causado pela crise política que seus adversários provocaram com o impeachment de Dilma Rousseff. Enfim, é hora de esquecer o programa do primeiro turno e abraçar o programa da frente democrática que deve se formar no segundo. Esse programa deve reconhecer a necessidade de ajuste fiscal, corrigindo os defeitos do ajuste de Temer, e deixar de lado toda palhaçadinha de nova Constituição, controle da mídia, e demais babaquices que intelectual petista burro enfiou no programa de governo porque estava com raiva do impeachment.
Algumas dessas propostas podem até ser dignas de discussão, mas só depois de o PT reconquistar a confiança geral da população quanto à sua condição de partido responsável, na economia e na política. Essa é a segunda chance do Partido dos Trabalhadores, mas também é a última. Se o PT perder para Bolsonaro, há uma perspectiva real de que os pobres brasileiros não consigam mais se fazer ouvir no sistema político por uma geração. O PT não tem o direito de impor aos pobres essa tragédia sendo incompetente ou radical. Agora é a hora do partido voltar a ser a alternativa da esquerda democrática como foi nos anos Lula.
A campanha no segundo turno deve ser a mais inclusiva possível para todo mundo, da esquerda, do centro ou da direita, que defenda a democracia contra Bolsonaro. Haddad é perfeitamente capaz de levantar as bandeiras que o PT precisa defender, mas o partido precisa deixá-lo vencer. É preciso terminar de ganhar os votos que eram de Lula entre os pobres, o que o PT sabe fazer. Mas também é preciso ganhar terreno no centro, que não está interessado em discurso imbecil contra Lava Jato ou a favor do vagabundo Nicolás Maduro. É preciso deixar que os centristas democratas votem no PT.
O partido que existiu até agora, aliás, acabou neste domingo (7). Serviu para manter o eleitorado lulista unido e colocar Haddad no segundo turno. Agora Haddad, junto a Jaques Wagner e os governadores do partido —que já vêm fazendo ajuste fiscal faz tempo— devem recriá-lo. Um partido de esquerda moderado sempre será favorito nas eleições brasileiras —o PT pode vencer a quinta presidencial seguida daqui a três semanas. É a última chance que o Partido dos Trabalhadores —de longe, o maior vitorioso de nossa história democrática, e, portanto, o maior interessado na preservação de nossa democracia —terá de desempenhar esse papel.
A sobrevivência da conversa democrática brasileira, a sobrevivência tanto da centro-esquerda quanto da centro-direita, nossa participação na comunidade das nações livres, depende da derrota de Jair Bolsonaro. Partido dos Trabalhadores, torne-se digno da hora.
Celso Rocha de Barros é servidor federal e doutor em sociologia pela Universidade de Oxford.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Antonio Martins e "os três erros grosseiros" do PT


Lembra aquelas livrinhos de bolso, com histórias de faroeste ou de espionagem. Eram muito legais. Mas você lia um, lia todos.

Assim parecem certas análises de quem se acha vocacionado a renovar a esquerda, quando na verdade apenas opera nos marcos da “narrativa” da direita.

É o caso de “Três semanas para interromper um funeral”, assinado por Antonio Martins e disponível aqui: https://outraspalavras.net/brasil/tres-semanas-para-interromper-um-funeral/

Segundo ele, teremos pela frente “21 dias de enorme tensão”, mas derrotar Bolsonaro “é possível, porque os resultados de ontem são uma aberração, fruto de três erros grosseiros que é possível corrigir. Reparar estes equívocos – na prática, com determinação e em curtíssimo prazo – será tarefa dificílima. Mas é a única alternativa e, se concretizada com sucesso, permitirá trocar um funeral pelas chances de reinvenção da esquerda”.

De saída, quero deixar claro que não acho que o resultado do primeiro turno tenha sido uma “aberração”. O crescimento da extrema-direita não é um raio em céu azul, mas sim um fenômeno mundial. Tratar como “aberração” é não entender o que está se passando com as massas e com a democracia política no mundo capitalista contemporâneo.

Mas vamos aos três equívocos citados por Antonio.

O primeiro deles teria sido a “recusa do PT a uma frente antigolpe, fruto de um hegemonismo encruado e pueril”.

Como?

O PT recusou uma “frente antigolpe”?

Ah, entendi: quando Antonio Martins fala que recusamos uma “frente antigolpe”, ele quer dizer que nós recusamos apoiar o candidato que ele, Antonio, apoiou no primeiro turno.

Martins acha que este foi um “erro bizarro”, cometido pelo PT.

Da minha parte, só posso dizer que a vida demonstrou que a candidatura do PT tinha força para chegar aonde chegou, força esta que não foi construída artificialmente, mas sim politicamente, ao longo de décadas.

Martins acusa o PT de ter sabotado a candidatura de Ciro Gomes. Petistas acusam Ciro de “n” outras coisas. Mas a questão é: a essa altura do campeonato, qual o sentido de rememorar isto?

O que pretende Antonio Martins? Colocar a pasta de volta no tubo? Manter acesos os ressentimentos?

O segundo equívoco teria sido “inteiramente articulado com o anterior. Para inviabilizar uma frente antigolpe, que teria dado à disputa eleitoral feição totalmente distinta, o PT tentou reduzir o pleito a um plebiscito sobre o legado de Lula. Ao fazê-lo, esqueceu-se do próprio sentido de ser da esquerda e voltou o debate político para a exaltação passado, ao invés de projetá-lo para as possibilidades do futuro”.

Ou seja: o primeiro erro bizarro teria sido defender o PT. E o segundo erro bizarro teria sido defender Lula. Como se vê, um discurso parente daquele que vem da outra extremidade do espectro político.

Mas, claro, como já ocorreu outras vezes na história de nosso país, gente de esquerda consegue dar mais verniz para teses de direita.

Nas palavras de Antonio Martins: “A rememoração das conquistas do passado até fazia sentido, como ponto de partida. (...) Mas o que poderia ter durado três dias, quiçá uma semana, prolongou-se por um longo mês, como se o candidato nada tivesse, ele mesmo, a dizer”.

Um longo mês?

Lula foi impedido de concorrer por uma decisão arbitrária do STF. Esta decisão obrigou o PT a substituir a candidatura no dia 11 de setembro. Haddad virou candidato a presidente neste momento. E o primeiro turno foi no dia 7 de outubro, menos de um mês depois.

Ademais, antes de ser candidato a presidente e antes de ser candidato a vice, Haddad foi coordenador do programa de governo do PT, aprovado numa reunião do Diretório Nacional realizado no dia 3 de agosto de 2018.

Portanto, dois meses antes do primeiro turno, existia um programa de governo, que pode ser lido aqui: https://lula.com.br/plano-de-governo-haddad-e-lula-baixe-aqui-as-propostas-para-trazer-o-pais-de-volta-para-o-futuro/

Sendo assim, como classificar a acusação a seguir, contida no texto de Antonio Martins: “A recusa a assumir propostas concretas corresponde a um velho cacoete petista: obter, via eleições, um cheque em branco da população; acomodar-se com as deformações do sistema institucional brasileiro, sem jamais ousar propor uma Reforma Política; negociar a governabilidade do presidente em parceria com as maiorias parlamentares que resultam destas deformações; e realizar, nestas condições, as “reformas fracas” (para usar expressão de André Singer) que tais acordos permitirem. Desta vez, porém, o primeiro efeito foi reacender e intensificar o antipetismo. Fernando Haddad era, de fato, apenas um poste? Ao votar no candidato, a população estaria transferindo sua vontade política a um partido que muitos veem – correta ou incorretamente, não importa – como uma máquina de aparelhamento do Estado?”

Recusa a assumir propostas concretas? Quem aprovou no dia 3 de agosto um programa pode ser acusado disto?

Antonio Martins não para aí. Ele diz que um efeito disto foi “reacender e intensificar o antipetismo. Fernando Haddad era, de fato, apenas um poste? Ao votar no candidato, a população estaria transferindo sua vontade política a um partido que muitos veem – correta ou incorretamente, não importa – como uma máquina de aparelhamento do Estado?”

Como é???

“Não importa” se é verdade ou não que o PT é uma “máquina de aparelhamento do Estado”???

Se há algo que devemos combater, nesses tempos de ascensão do fascismo, é a postura segundo a qual não faria diferença, "não importa", se algo é verdade ou não.

Faz diferença sim.

Importa sim.

O PT adotou uma linha política, que incluía defender a candidatura Lula; e a candidatura Lula era, em certa medida, um programa em si mesma, não por razões “afetivas”, mas porque Lula foi presidente do país por 8 anos e seu governo implementou políticas cuja defesa e proposta de retomada são, em si, um “programa”; mas além disso, o PT formulou um programa de governo, em que são propostas novidades em relação aos governos anteriores.

Antonio Martins desconhece isso tudo e vem falar de “poste”.

Mas ele não para por aí.

Segundo Antonio Martins, “a pior consequência de uma campanha Haddad voltada ao passado e à saudade foi dar a Jair Bolsonaro condições de vestir a máscara do antisistema”.

Pergunto: Bolsonaro foi o primeiro político da história do Brasil ou do mundo a encarar a persona do anti-sistema? Ou este roteiro já foi adotado por outros, aqui no Brasil (Collor), noutros países (Trump) e noutras épocas (Hitler)?

Resposta: Bolsonaro não foi o primeiro. Portanto, é preciso no mínimo cautela antes de apontar o dedo para o PT. Até porque se pode, sem querer, acabar no mesmo caminho que levou Marina, Alckmin e outros a dizer que estamos diante de posturas que se alimentam reciprocamente.

Para que fique claro: Bolsonaro efetivamente teve êxito em vestir a fantasia de anti-sistema. E acho que o PT e a candidatura Haddad deveriam ter feito mais no sentido de desmascarar a fraude.

Mas, ao contrário do que diz Antonio Martins, a presença de Lula na disputa (direta ou indiretamente) ajudou a impedir que Bolsonaro ocupasse sozinho este espaço no imaginário popular.

Falo mais a respeito do tema aqui: http://valterpomar.blogspot.com/2018/08/a-tripla-polarizacao.html

Assim, embora ache que podíamos ter feito muito mais, fizemos bastante para impedir que o rótulo de “antissistema” fosse apropriado apenas por Bolsonaro. E só não fizemos mais, porque o sistema prendeu Lula.

Neste ponto, é bom que se diga, estou de acordo com Antonio Martins: “Foi esta a chave para sua vitória no primeiro turno. Dentre os que votaram em Bolsonaro, há uma enorme maioria de não-fascistas. São, porém, eleitores muito descrentes das instituições, da possibilidade de que estas assegurem os direitos estabelecidos na Constituição, e, mais ainda, de que estabeleçam novas garantias e conquistas. São pessoas ressentidas com uma elite supostamente bem-pensante, mas que cuida apenas de seus próprios interesses e não se importa com a degradação geral do país, desde que se mantenha acima da linha da barbárie”.

Minha divergência surge quando ele diz que: “Este imenso contingente de eleitores, que deu vitória a Trump nos Estados Unidos e promoveu o Brexit no Reino Unido, foi, no Brasil, entregue ao candidato fascista quando a esquerda abriu mão da chance de encarnar ela própria a oposição ao sistema; voltou-se apenas ao passado; e se recusou a oferecer, no futuro, uma perspectiva de direitos e igualdade”.

No fundo, Antonio Martins acha que podemos oferecer um futuro, desconsiderando o passado recente. Talvez seja por isso que, depois de ter criticado tanto a postura dos governos Lula e Dilma frente ao agronegócio, ele tenha se sentido confortável em votar no primeiro turno em Ciro e sua vice Katia Abreu.

Mas, novamente, estou de acordo com Antonio Martins quando ele diz que “Fernando Haddad precisa produzir, o mais rápido possível, uma virada na campanha; um fato político novo que impeça Jair Bolsonaro de continuar ostentando a máscara antissistema”.

Minha divergência reside, óbvio, em acreditar que isto será mais fácil de fazer se utilizarmos o patrimônio simbólico de Lula. Pelo seguinte motivo: não basta “apresentar, nos próximos dias ou horas, um conjunto de dez propostas muito concretas e claras, que dialoguem com as dificuldades concretas vividas pela população após o golpe e que seu adversário não possa responder – devido a seus compromissos com o poder econômico, o programa neoliberal de seu guru Paulo Guedes ou as máfias parlamentares”.

Note que várias das propostas listadas por Antonio Martins (ver texto copiado ao final) já constam do programa apresentado pelo PT. Algumas constavam do programa de Ciro Gomes. Mas uma questão é: não basta querer colocar o debate programático no centro da disputa.  Nem basta apresentar propostas ótimas. É preciso arrancar a máscara do adversário (Bolsonaro é Temer) e também é preciso que as pessoas acreditem que seremos capazes de implementar aquelas propostas. E nesta tarefa, reitero, considero que Lula (que Antonio Martins as vezes trata como “o passado”) é essencial.

Sigamos para o terceiro erro que, claro, como não, também teria sido cometido por nós do PT. O erro, segundo Martins, seria “a tendência do PT ao hegemonismo. Fernando Haddad precisaria acenar desde já, e sem rodeios, para a composição de um governo plural”.

Acho muito simpáticos vários dos nomes apresentados por Martins. Marina, por exemplo, apesar de tudo, a prefiro conosco do que “neutra”. E concordo com ele que o anúncio de uma “geringonça” pode ajudar.

Mans me causa espécie, petista que sou, a acusação de “hegemonismo”. O PT realmente existente, não este que o Antonio Martins tanto critica, fez mil e uma alianças para vencer eleições e para governar, tanto em prefeituras, governos estaduais ou na administração federal. Classificar isto de hegemonismo é a prova de que Antonio dialoga com um tipo ideal que ele criou para raciocinar, não com o PT realmente existente.

O problema que temos é, na minha opinião, outro: precisamos de uma frente democrática e popular, reunindo movimentos sociais, partidos de esquerda, lideranças democráticas, mundo da arte e da cultura. Os ensaios neste sentido ainda são ensaios. Mas para que isto funcione, não basta o PT querer. É preciso que todos queiram. E é preciso que não se exija do PT que peça perdão por existir.

Porque, vamos combinar, se é justo (e eu acho que é) dizer que a resiliência de Ciro foi fundamental para garantir segundo turno, também é justo dizer que a resiliência do PT foi pelo menos igualmente fundamental. 

E, considerando tudo que dizem e fazem contra o PT, que tenhamos chegado até aqui mereceria pelo menos uma palavra gentil

Antonio Martins não é capaz disto, porque ele está tomado de um antipetismo que o levará, se não tomar cuidado, por caminhos indesejados por ele mesmo. 

Dois últimos comentários.

Acho ótimo que Jeremy Corbyn exista. Mas a insistência com que Antonio Martins o cita é apenas a prova de que seu otimismo é seletivo: http://valterpomar.blogspot.com/2017/06/antonio-martins-e-o-otimismo-seletivo.html

E acho fantástico o título “três semanas para interromper um funeral”. 

É um incrível ato falho. Afinal, segundo nos explica o pai dos burros consultado, funeral é “o conjunto das cerimônias de sepultamento”. Ou seja, interromper o funeral é interromper o sepultamento de alguém que já estaria morto.

Isto posto, quero dizer para Antonio Martins que, parafraseando Mark Twain, “as notícias sobre a morte do PT são manifestamente exageradas".

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POR 
– ON 08/10/2018CATEGORIAS: BRASILCAPAPOLÍTICAS
É possível evitar a grande ameaça. A condição é corrigir os três erros grosseiros que levaram ao desastre de ontem e abrir caminho para uma reinvenção da esquerda
Por Antonio Martins
1.
É nas grandes derrotas que se enxergam os problemas ocultados por “sucessos” ilusórios; e que se abre caminho para o novo. As dimensões do retrocesso de ontem, primeiro turno das eleições gerais, dificilmente poderiam ser mais dramáticas. O circo de horrores que já é o Congresso Nacional será piorado por uma bancada de extrema-direita. O antes pequenino PSL, de Bolsonaro, passará de 7 para 51 deputados. Expoentes da arrogância desvairada, como os irmãos Bolsonaro e a advogada Janaína Paschoal, Kim Kataguiri e Alexandre Frota receberam enxurradas de votos, enquanto Eduardo Suplicy, Dilma Rousseff e Lindberg Farias naufragaram. Exceto no Nordeste, a boia de salvação que evitou uma catástrofe, o que se chama até agora de “esquerda” não governará estado algum. O PCdoB e a Rede, ficaram abaixo da cláusula de barreira e perderão acesso à TV e recursos do Fundo Partidário. E no entanto, o pior não se deu. Depois de ter perdido por um tris a chance de eleger-se presidente no primeiro turno, Jair Bolsonaro estava abatido e soturno ontem à noite, ao gravar um pronunciamento a seus eleitores. Serão 21 dias de enorme tensão, mas derrotá-lo é possível, porque os resultados de ontem são uma aberração, fruto de três erros grosseiros que é possível corrigir. Reparar estes equívocos – na prática, com determinação e em curtíssimo prazo – será tarefa dificílima. Mas é a única alternativa e, se concretizada com sucesso, permitirá trocar um funeral pelas chances de reinvenção da esquerda.
2.
A recusa do PT a uma frente antigolpe, fruto de um hegemonismo encruado e pueril, foi, em ordem cronológica, o primeiro dos três erros bizarros cometidos – e que é possível agora corrigir. Há seis meses, quando o cenário eleitoral se conformava, o governo Temer era um farrapo político. A agenda de retrocessos deixava claro o sentido da tomada do poder por uma coalizão conservadora, em 2016. As pesquisas de opinião mostravam que vasta maioria da opinião pública rechaçava pontos essenciais da agenda imposta após a derrubada do governo legítimo – como as privatizações, a contrarreforma trabalhista e a tentativa de desmonte do sistema da Previdência. Os dois principais símbolos do poder ilegítimo – o presidente e o Congresso – eram apoiados por menos de 10% da população.
TEXTO-MEIO
Propor, como decorrência, uma frente antigolpe teria enorme poder simbólico e mobilizador. Permitiria ampliar a repolitização que se esboçava, transformar a campanha eleitoral numa oportunidade para convocar as ruas, colocar na defensiva os políticos conservadores e o poder econômico neoliberal. Mas, como ocorre com todas as frentes, implicava não ter certeza sobre seu comando. Lula seria o candidato natural a disputar a presidência. Mas diante de seu impedimento, a condição era incerta. Líderes históricos do PT, como o agora senador Jacques Wagner, propuseram que o partido cedesse o lugar Ciro Gomes, que somava consistência política e forte apelo eleitoral.
O medo de perder o protagonismo levou o PT a sabotar a possibilidade. Ao longo dos meses seguintes a ideia de uma frente antigolpe (que o PCdoB enunciou, mas da qual abriu mão rapidamente) foi não apenas esquecida, mas ativamente sabotada. O comando petista trabalhou com empenho para impedir que Ciro se articulasse com setores do “centrão” e, em seguida, até mesmo para que ele tivesse apoio do PSB. Esta ação tirou-lhe tempo de TV e palanque nos Estados. Cada manobra era celebrada por parte dos petistas, nas redes sociais, como sinal de sabedoria política. Os pretextos apresentados são risíveis. Ciro não teria comparecido a São Bernardo do Campo, nos dias que antecederam a prisão de Lula… como se as decisões políticas pudessem ser guiadas pelo cumprimento das regras de boas maneiras. Foi apenas graças à resiliência impressionante do candidato do PDT, ao longo da campanha, que a sabotagem não permitiu a Bolsonaro liquidar a disputa presidencial já no primeiro turno.
3.
O segundo erro grosseiro está inteiramente articulado com o anterior. Para inviabilizar uma frente antigolpe, que teria dado à disputa eleitoral feição totalmente distinta, o PT tentou reduzir o pleito a um plebiscito sobre o legado de Lula. Ao fazê-lo, esqueceu-se do próprio sentido de ser da esquerda e voltou o debate político para a exaltação passado, ao invés de projetá-lo para as possibilidades do futuro.
A rememoração das conquistas do passado até fazia sentido, como ponto de partida. Milhões de eleitores se emocionaram com as imagens que comparavam a melhora das condições de vida, na era Lula, com as portas de aço do comércio se fechando agora, sinal da recessão. Mas o que poderia ter durado três dias, quiçá uma semana, prolongou-se por um longo mês, como se o candidato nada tivesse, ele mesmo, a dizer.
A recusa a assumir propostas concretas corresponde a um velho cacoete petista: obter, via eleições, um cheque em branco da população; acomodar-se com as deformações do sistema institucional brasileiro, sem jamais ousar propor uma Reforma Política; negociar a governabilidade do presidente em parceria com as maiorias parlamentares que resultam destas deformações; e realizar, nestas condições, as “reformas fracas” (para usar expressão de André Singer) que tais acordos permitirem. Desta vez, porém, o primeiro efeito foi reacender e intensificar o antipetismo. Fernando Haddad era, de fato, apenas um poste? Ao votar no candidato, a população estaria transferindo sua vontade política a um partido que muitos veem – correta ou incorretamente, não importa – como uma máquina de aparelhamento do Estado?
4.
Mas a pior consequência de uma campanha Haddad voltada ao passado e à saudade foi dar a Jair Bolsonaro condições de vestir a máscara do antissitema. Paralisado, o candidato do PT foi incapaz de desafiar a casta política, suas ações e suas misérias. A direita tradicional, umbilicalmente ligada a Temer, ao Congresso e ao golpe, evidentemente não poderia fazê-lo. Todo o imenso espaço político da contestação a uma “democracia” que empobrece e humilha a maior pare dos brasileiros caiu no colo do ex-capitão.
O caráter grotesco desta apropriação basta para demonstrar a estupidez da tática que prevaleceu entre a esquerda. Jair Bolsonaro integra o partido que seguiu de modo mais canino as orientações de Michel Temer. Seu programa expressa a adesão mais completa ao programa das grandes corporações. Seus vínculos com a casta política e seus métodos odiados são tão profundos que ele não se envergonha de reconhecer que se beneficia de verba pública para receber auxílio-moradia superior a R$ 4 mil, possuindo imóvel próprio, e de alardear que usou dinheiro do contribuinte para “comer gente”. A este personagem deprimente, permitiu-se que aparecesse com o rótulo de “antissistema”…
Foi esta a chave para sua vitória no primeiro turno. Dentre os que votaram em Bolsonaro, há uma enorme maioria de não-fascistas. São, porém, eleitores muito descrentes das instituições, da possibilidade de que estas assegurem os direitos estabelecidos na Constituição, e, mais ainda, de que estabeleçam novas garantias e conquistas. São pessoas ressentidas com uma elite supostamente bem-pensante, mas que cuida apenas de seus próprios interesses e não se importa com a degradação geral do país, desde que se mantenha acima da linha da barbárie. Este imenso contingente de eleitores, que deu vitória a Trump nos Estados Unidos e promoveu o Brexit no Reino Unido, foi, no Brasil, entregue ao candidato fascista quando a esquerda abriu mão da chance de encarnar ela própria a oposição ao sistema; voltou-se apenas ao passado; e se recusou a oferecer, no futuro, uma perspectiva de direitos e igualdade.
5.
O caminho para evitar a conquista do aparato de Estado pelo fascismo, e para abrir espaço a uma nova esquerda, começa por enfrentar este último erro gravíssimo. Para que tenha alguma chance, Fernando Haddad precisa produzir, o mais rápido possível, uma virada na campanha; um fato político novo que impeça Jair Bolsonaro de continuar ostentando a máscara antissistema.
Uma forma concretíssima de fazê-lo seria apresentar, nos próximos dias ou horas, um conjunto de dez propostas muito concretas e claras, que dialoguem com as dificuldades concretas vividas pela população após o golpe e que seu adversário não possa responder – devido a seus compromissos com o poder econômico, o programa neoliberal de seu guru Paulo Guedes ou as máfias parlamentares.
O conjunto pode incluir, por exemplo: a) a retomada da política de valorização real do salário mínimo e da bolsa-família, interrompido por Temer; b) a revogação da Emenda Constitucional 95 e um plano de reforço financeiro ao SUS e de reinício da expansão das universidades federais; c) a renegociação da dívida das dezenas de milhões de brasileiros que se encontram negativados no SPC, como proposto por Ciro Gomes; d) os primeiros passos de uma Reforma Tributária, com a isenção de Imposto de Renda para salários até cinco mínimos, taxação dos lucros, dividendos e grandes fortunas; e) a revogação dos leilões de entrega do Pré-Sal a petroleiras estrangeiras; f) o reinício das demarcações das terras indígenas e quilombolas e a volta de critérios sérios para licenciamento das obras de infraestrutura, como querem Marina Silva e os ambientalistas; g) a revisão dos privilégios odiosos de que desfrutam os parlamentares e juízes, tais como auxílio-moradia, as férias longuíssimas, as diárias polpudas, o subsídio a Saúde e Educação privadas; h) uma Reforma Agrária que implique, além da concessão de lotes aos sem-terra, a revisão do modelo agrícola com ênfase no cooperativismo, na policultura, no orgânico e na limitação do uso de venenos.
Medidas como estas permitem reparar o segundo erro catastrófico cometido até agora: o de voltar a campanha para o passado. Propostas de maneira enfática no programa eleitoral, nas ruas, nas entrevistas à imprensa e nos debates, estas medidas são a melhor fórmula para chamar Bolsonaro ao debate político, do qual ele tenta a todo custo se esvair. Reproduzidas de maneira popular, difundidas nas ruas e nas redes, criarão um constrangimento ao ex-capitão. Seu programa de ultraliberalismo o impede de concordar com elas; sua vinculação com os setores mais fisiológicos da casta política, também. Mas como dizê-lo, sem despir a máscara de antissistema que tanto o beneficia?
6.
A correção dos dois primeiros erros políticos permite tocar num terceiro: a tendência do PT ao hegemonismo. Fernando Haddad precisaria acenar desde já, e sem rodeios, para a composição de um governo plural. Não significa “chamar o Meirelles”, ou ventilar um ministro da Fazenda que corteje a aristocracia financeira. Isso não traria voto algum e permitiria a Bolsonaro identificar seu oponente com o sistema – ou, ao menos, neutralizar o desgaste que pode sofrer ao manter a seu lado um banqueiro neoliberal como Paulo Guedes.
Trata-se, ao contrário, de acenar com uma espécie de “geringonça brasileira”, de coalizão firme entre os partidos de esquerda e centro-esquerda, capaz de indicar claramente um novo rumo. Implica convidar Ciro Gomes para que, num ministério do Planejamento reforçado (inclusive com o BNDES), articule o enorme esforço de reflexão necessário para desenhar e começar a aplicar um novo projeto de desenvolvimento. Significa convocar desde já gente como Guilherme Boulos e Ermínia Maricato, e sugerir-lhes que construam um programa pelo Direito à Cidade, contra a ditadura do automóvel e a especulação imobiliária. Equivale a reinserir no governo as correntes ambientalistas que Marina Silva em certo momento representou. Inclui lançar acenos ao setor democrático que ainda resta no PSDB, convocando por exemplo Bresser Pereira para a formulação macroeconômica ou Paulo Sérgio Pinheiro (que atuou nos governos FHC) para a política de Justiça e Direitos Humanos. Envolve desenvolver políticas de Segurança Pública, retomando um esforço que a esquerda abandonou e restabelecendo a colaboração com formuladores como Luiz Eduardo Soares ou Ibis Pereira.
7.
Compromissos claros com propostas de futuro. Abertura para um governo compartilhado com outras forças democráticas. Uma postura assim criaria um conjunto de fatos novos na eleição. Permitiria retomar as ruas, acenando não apenas aos que já apoiam Haddad, mas aos que se mobilizaram por Ciro, Boulos e Marina. Dialogaria, em especial, com os movimentos (os feminismos, o antirracismo, os sindicatos, o ambientalismo e tantos outros) e coletivos que, agindo autonomamente, tornaram possível, por exemplo, as gigantescas manifestações #elenão, em todo o país. Mudaria o cenário de uma eleição até agora fúnebre. Seria suficiente para a vitória? É impossível assegurar – mas certamente prepararia e vertebraria a resistência, em caso de vitória de Bolsonaro.
Seria uma ruptura nítida com o que o petismo significou até agora – em especial em sua fase governista. Abriria caminho para uma renovação da esquerda. É algo possível – como mostra, por exemplo, a transformação que Jeremy Corbyn lidera, há dois anos, no Partido Trabalhista inglês.
Fernando Haddad estará à altura de algo semelhante? Ou sucumbirá, sem nada criar, ao destino que hoje parece o mais provável?