quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

O discurso de Lula no 8 de janeiro

Importante ouvir os dois discursos feitos por Lula, no ato em defesa da democracia, realizado no dia 8 de janeiro de 2025.

Os dois discursos - o oficial e o improviso - podem ser assistidos aqui: Lula faz ato em defesa da democracia pelos 2 anos do 8 de janeiro

Como todo discurso, teve seus pontos altos e outros nem tanto.

Entre os pontos muito altos do discurso oficial, destaco o fato de Lula ter reafirmado que só haverá democracia no Brasil, quando o povo tiver seus direitos sociais garantidos.

Reestabelecer esse sentido amplo da democracia é algo essencial, se quisermos que a defesa da democracia seja feita pelo conjunto do povo, não apenas por uma elite.

Destaco também a reafirmação de que todos os golpistas devem ser punidos.

Antes do discurso oficial, Lula fez um discurso de improviso.

Nesse improviso, Lula disse que "a democracia é tão boa, que ela permitiu que um torneiro mecânico sem diploma universitário chegasse a presidente da República, na primeira alternância concreta de poder neste país. Isso só pode acontecer na democracia, não pode acontecer noutro regime".

Em seguida, Lula disse que você pega a fotografia da Revolução Russa de 1917, não tem um operário na foto (...) porque eram os intelectuais, os ativistas políticos, os estudantes, as pessoas com um pouco mais de grau, porque historicamente sempre se pensou que trabalhador não prestava para nada a não ser para trabalhar. As pessoas não imaginavam que os trabalhadores pudessem organizar um partido e chegar à presidência da República (...)".

Não sei a qual foto Lula está se referindo. Talvez seja uma foto (ver abaixo) que me contaram ele teria visto no famoso Instituto Smolny, em São Petersburgo. 

Mas existem milhares de fotos mostrando o oposto, a saber: que foi ampla e decisiva a participação dos trabalhadores, com destaque para os operários fabris, inclusive metalúrgicos, na Revolução de Outubro de 1917 e guerra civil que veio depois. 

Aliás, é isso que consiste a alma e o motor das grandes revoluções, como a Russa, a Chinesa e a Cubana: a participação massiva das classes trabalhadoras. E por isso mesmo as revoluções são profunda e incomparavelmente democráticas.

Talvez, ao falar dos "intelectuais, ativistas, estudantes, pessoas com um pouco mais de grau", Lula tenha querido se referir não à Revolução Russa como um todo, mas aos que dirigiram a Revolução, especialmente os integrantes do Partido Bolchevique.

De fato, muita gente fala que a direção da Revolução Russa de 1917 coube a uma elite de intelectuais.

Mas isto tampouco é exato. 

Como foi demonstrado, entre outros, por George Haupt e Jean-Jacques Marie, no "estado maior" bolchevique "a proporção de militantes operários, não apenas por sua origem social, mas também por sua presença na produção, igualava, se não superava, a proporção que havia nos quadros dirigentes dos grandes  partidos socialdemocratas europeus da época. Este fenômeno é tanto mais significativo tendo em vista que o microcosmo dos quadros dirigentes não era recrutado a partir de um macrocosmos de um partido de massas composto em grande medida por operários - como foi o caso, por exemplo, do partido socialdemocrata alemão - mas sim nas condições, mais perigosas e delicadas, da ilegalidade".

Quem quiser ler a íntegra do livro citado acima, está aqui: Los_bolcheviques_por_ellos_mismos-K.pdf

Apesar de incorreta, a afirmação de Lula tem um lado extremamente positivo.

Afinal, se entendi direito o que ele quis dizer, concordo: só haverá democracia no Brasil se a classe trabalhadora se mobilizar e se organizar e lutar. 

E para isto segue sendo fundamental, sempre, que a esquerda brasileira tenha na sua direção uma grande proporção de trabalhadores, "não apenas por sua origem social, mas também por sua presença na produção".

Aliás, deixo a pergunta: hoje, na direção da esquerda brasileira, a proporção de militantes operários, "não apenas por sua origem social, mas também por sua presença na produção", é maior ou menor do que no Partido Bolchevique em 1917?

A resposta a pergunta acima talvez ajude a explicar parte das dificuldades que  a esquerda brasileira enfrenta hoje.

As fotos abaixo (assim como a anterior) são do antigo gabinete de Lênin no Instituto Smolny.






Cavernicolas no xilindró!

 


Ainda falta muito para o Brasil ser uma verdadeira democracia.

Por exemplo, falta uma reforma politica, sem a qual os ricos e poderosos seguirão levando vantagem nas disputas eleitorais.

Falta um judiciário responsável frente ao povo, como no México, onde agora magistrados passarão a ser eleitos.

Falta uma comunicação democrática, impossível em regime de inconstitucional monopólio midiático.

Faltam uma segurança pública e forças armadas comprometidas com a democracia e com a soberania.

Falta muito.

Por isso mesmo, nenhum retrocesso é admissível.

Golpe, nunca mais.

Cadeia para os golpistas!

Cadeia para quem executou, para quem intentou, para quem planejou, para quem financiou, para quem apoiou, para quem foi cúmplice ativo e passivo, para os beneficiários.

A começar por Bolsonaro, seus milicos e milicianos!

Cavernícolas no xilindró!!


terça-feira, 7 de janeiro de 2025

PT presente na posse de Maduro

Nicolás Maduro, presidente eleito e reeleito da República Bolivariana da Venezuela, tomará posse no dia 10 de janeiro de 2025.

Na véspera da posse acontecerá uma reunião do Grupo de Trabalho do Foro de São Paulo.

Além de governos, um grande número de partidos, movimentos e organizações mandou representantes.

No caso do Partido dos Trabalhadores, estão presentes vários militantes e integrantes do Diretório Nacional, entre os quais Camila Moreno, Vera Lúcia Barbosa, Mônica Valente e Valter Pomar.


segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

A "classe média" vai atacar novamente?


Segundo O Globo, o Brasil voltou a ser “um país de classe média”.

A afirmação se baseia num “levantamento” feito pela Tendências Consultoria.

Segundo este levantamento, em 2024 teria havido “ganho de renda e ascensão social”.

Dirigentes do PT denunciaram o fato de O Globo ter escondido o papel do governo Lula neste “ganho de renda e ascensão social”.

A denúncia procede. 

Mas seria prudente combinar a denúncia com os seguintes esclarecimentos cautelares.

1/o Brasil nunca foi e continua não sendo “um país de classe média”. 

Esta afirmação serve para ocultar que o Brasil segue sendo um país brutalmente desigual, onde a maior parte da classe trabalhadora recebe menos do que o necessário para ter uma vida decente. Basta dizer que em dezembro de 2024 havia 327.925 pessoas em situação de rua, “14 vezes superior ao registrado onze anos atrás, quando haviam 22.922 pessoas vivendo nas ruas no país”, conforme a Agência Publica;

2/o conceito de “classe média” adotado pela Tendências Consultoria é baseado num contestável critério de renda média domiciliar mensal. 

A saber: classes D e E, até 3.400,00 mensais; classe C, de R$ 3.400 até R$ 8.100; classe B, de R$ 8.100 até R$ 25.200; classe A, mais de R$ 25.200. Na classe A estariam 4,3% dos domicílios; na classe B, 14,8%; na classe C, 31%; nas classes D e E, 49.9%. 

É com base nesses números que a Tendências Consultoria conclui o seguinte: pela primeira vez desde 2015, a maioria dos domicílios vive com uma renda média superior a R$ 3,4 mil. A maioria no caso quer dizer 51,1%. 

Noutras palavras, bastaria um pequeno ajuste na composição da denominada classe C, para a conclusão ser outra. 

E, convenhamos, colocar numa mesma classe quem recebe entre 3,4 e 8,1 mil é simplesmente desconhecer o peso que o aluguel e a comida têm no custo de vida; e colocar numa mesma “classe” rendas entre 8 e 25 mil é simplesmente non sense. 

Ou seja, mesmo que fosse correto o critério de renda para categorizar uma população, cinco categorias não bastariam;

3/o conceito de “classe” baseado em renda é, em si mesmo, enganoso. 

Se “as classes C e B são tipicamente as de classe média” porque “nessas famílias, a principal fonte de renda vem do trabalho”, parece óbvio que muito mais adequado seria utilizar a categoria “classe trabalhadora”, dentro da qual existem diversas subcategorias, entre as quais aquelas derivadas dos distintos níveis de renda. 

Mas, claro, falar de “trabalho” e falar de “renda” tem consequências políticas e ideológicas distintas. 

Uma consequência meio óbvia: quem se acha classe média, é particularmente resistente a se organizar em sindicatos. 

Por outro lado, se as classes C e B são aquelas cuja “principal fonte de renda vem do trabalho”, de onde vem a renda das pessoas categorizadas como D e E, exatamente aquelas que votaram maciçamente em Lula e no PT nas eleições de 2022? Suponhamos que venha de transferências do Estado. Isso faria com que elas não fossem mais consideradas como "trabalhadoras"?

Comentário lateral: por qual motivo os empresários, quando recebem subsídios do Estado, continuam sendo parte das "classes produtoras"; e os trabalhadores, quando recebem bolsa família ou outro tipo de transferência, deixam de ser considerados "trabalhadores"??

4/finalmente, o mais importante é o alerta político.

Segundo O Globo, essa ascensão da classe média que estaria acontecendo agora não ocorria desde 2015. 

E o que mais aconteceu em 2015? 

Estava em curso uma sequência de eventos que desembocou no golpe. 

Naquela época, houve um intenso debate sobre o comportamento dos setores sociais que (supostamente) haviam ascendido à condição de classe média. Foi dito, por exemplo, que a elevação do nível de vida das pessoas, quando desacompanhada de consciência e organização, pode provocar uma direitização.  

Também foi dito o seguinte: que os ricos e os setores mais bem remunerados não suportam ver a ascensão (mesmo que modesta) dos setores pior remunerados da classe trabalhadora. 

Ou seja: o que é uma notícia estatisticamente positiva, pode ser uma notícia politicamente preocupante.

Por tudo isso, cuidado com a marmota.








Cantalice e Cervantes


O Ano é Novo, mas certas coisas não.

É o caso dos Tuítes Completos de Alberto Cantalice.

Por exemplo este aqui: Alberto Cantalice no X: "A desumanidade é um traço que une os ditadores: Netanyahu repete Hitler, Mussolini, Stalin. 'Vi como meu bebê começou a congelar, sua pele ficou azul', diz mãe de recém-nascido que morreu de frio em Gaza https://t.co/6uiSaBxrDZ" / X

A esse respeito, um comentário.

Entendo os motivos que levam muita gente a enfiar alhos e bugalhos na cesta dos "ditadores & tiranos".

Mas uma coisa é a aparência, outra é a essência. 

A essência remete para o papel jogado por cada "ditador" nos conflitos realmente existentes, o contexto histórico, inclusive a natureza da sociedade em que atuaram ou atuam. E, para além das diferenças entre as "pessoas jurídicas", há as diferenças entre as "pessoas físicas".

Quem viveu ou estudou a Segunda Guerra, por exemplo, percebe muito bem a diferença entre Hitler, Mussolini e Stálin.

Por mais que constatemos analogias, por mais que possamos ter ódio e nojo em relação ao comportamento pessoal deste ou daquele personagem, é impossível desconsiderar a história e o papel desempenhado por cada indivíduo na história.

Por exemplo: Vargas e Médici. Ambos foram ditadores. Ambas ditaduras foram cruéis. A esquerda lutou contra ambas. Mas existem diferenças que nenhum historiador ou militante político pode desconsiderar. 

Nazismo, fascismo, sionismo e socialismo soviético são distintos, em alguns casos profundamente.

Cantalice, que foi do Partido Comunista Brasileiro e estudou na União Soviética certamente sabe disto. 

Mas o tipo de marxismo que ele aprendeu o faz confundir "democracia" com "liberalismo". Antes, isso o levava a desenganos sobre a democracia. Hoje, o leva a aderir ao liberalismo.

Neste sentido, a analogia que Cantalice faz entre Hitler, Mussolini. Bibi e Stálin alimenta um tipo de confusão política e histórica muito ao gosto de quem deseja dividir o mundo entre "democracias e totalitarismos".

Mas há pelo menos um aspecto correto que decorre da comparação feita por Cantalice. A morte de Hitler não acabou com o nazismo, a morte de Mussolini não acabou com o fascismo, a morte de Stálin não acabou com o tipo de socialismo soviético que ele simbolizava. 

Raciocínio análogo vale para Bibi. Sua morte, deposição ou prisão não vão acabar com o sionismo. 

Infelizmente para quem defende o Estado de Israel, acreditando que o problema é o governo Bibi, a derrota do sionismo exigirá cortar fundo, bem fundo, muito mais fundo.

Não sei se Cantalice está de acordo com essa conclusão. Mas isso é um problema dele, não meu.

Afinal, como diria a maga protetora “telepatizada” por Cervantes, el que imprime necedades dalas a censo perpetuo.

Ps. certa feita, ao ouvir eu dizer algo parecido ao que escrevi acima,  um cidadão que me conhece desde que eu nasci vaticinou que na época de Stalin eu não sobreviveria um mês. Entre outros motivos, porque tenho repulsa a qualquer tipo de culto à personalidade. Muito antes pelo contrário, tenho até medo de pensar do que seria capaz certo tuiteiro, que nos tempos que correm, de "amplas liberdades democráticas", é capaz de cultuar (leia-se: puxar o saco) até mesmo a falta de personalidade. 



domingo, 5 de janeiro de 2025

Lindbergh e a marmota

Já tinha lido uma entrevista do deputado Lindbergh Farias ao Brasil 247, disponível aqui: "A chegada de Galípolo muda tudo para melhor na economia", diz Lindbergh | Brasil 247

Agora vejo sua postagem abaixo, comemorando que "o Brasil voltou a ser um pais de classe média".

Compreendo perfeitamente os motivos que levam o deputado a fazer este giro otimista.

Compreendo, mas destaco ser totalmente contraditório com o que o próprio Lindbergh disse publicamente, quando do debate acerca do arcabouço fiscal, para não falar de outras situações mais recentes.

Entretanto, motivos pragmáticos e programação neurolinguística à parte, a postagem do deputado sobre a "classe média em alta" me causou especial preocupação.

Isso porque faz lembrar a comemoração feita por alguns petistas, na época dos governos Lula e Dilma,  exatamente acerca do crescimento da "classe média".

Além do equívoco sociológico e além da mediocridade estatística, havia a mais completa ilusão acerca do significado político do que estava ocorrendo. 

Na época, muita gente acreditava que a elevação das possibilidades de consumo ampliaria automaticamente a adesão e a votação em nossas candidaturas.

No que deu esta ilusão, totalmente economicista e despolitizada, nós já sabemos. 

O incrível é que, mesmo sabendo do ocorrido, voltamos agora a repetir este e muitos outros erros.

Se não houver alteração na política do Partido e do governo, são altas as chances de colhermos retornos decrescentes. 

Aliás, já estamos colhendo, como se viu nas eleições municipais de 2024 e como se vê nas pesquisas de opinião, segundo as quais a opinião pública não corresponde como esperado às realizações comemoradas.

Certamente, quando a situação se tornar irreversível, sempre haverá alguém disposto a colocar a culpa na mesma "classe média" que antes era exaltada.

Ainda bem que hoje é domingo. Dá para assistir pela enésima vez O feitiço do tempo. Lá pelo menos o desfecho é mais simpático que a marmota.






sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

"Lembrem-se de nós"


O vídeo acima é explicado no texto abaixo, publicado no dia 3 de janeiro de 2025 e disponível em: 

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2025/01/03/indignado-embaixador-chora-na-onu-por-silencio-internacional-sobre-gaza.htm?cmpid=copiaecola

Segue uma transcrição do texto de Jamil Chade: 

"Num momento de profunda comoção dentro da sala do Conselho de Segurança da ONU, o embaixador da Palestina, Riyad Mansour, não se conteve ao descrever a situação de Gaza e a incapacidade de a comunidade internacional de reagir aos crimes. A reunião havia sido convocada para lidar com os ataques contra hospitais, que se transformaram em campos de batalha e alvos de Israel. 

Ao tomar a palavra para fazer seu discurso, Mansour leu mensagens deixadas por médicos mortos em Gaza.

“Mahmoud Abu Nujaila, que foi morto em um ataque aéreo israelense ao Hospital Al-Awda, escreveu uma mensagem há muitos meses em uma lousa no hospital, normalmente usado para planejar cirurgias: “Quem ficar até o fim contará a história. Fizemos o que podíamos. Lembrem-se de nós”, relatou o embaixador.

Aos prantos e visivelmente indignado, ele repetiu o que estava naquela lousa. “Aquele que ficar até o final, vai contar a história. Fizemos o que pudemos. Lembre-se de nós. Lembre-se de nós”, insistiu, batendo sobre a mesa.

Para o diplomata, o mundo deve mais que apenas lembranças. “Nada pode explicar que, por 15 meses, palestinos em Gaza tiveram de viver o inferno e abandonados a seu destino”, disse.

Durante a reunião, a OMS anunciou que 12 mil palestinos gravemente feridos esperam evacuação. No atual ritmo de autorizações por parte de Israel, seriam necessários dez anos para retirar todos os que precisam de atendimento. 

Certamente lembraremos.

Hoje, como vítimas de um genocídio.

E amanhã, como parte de uma luta que terminou vitoriosa.

Como são lembrados os soviéticos que tombaram lutando contra o nazismo.

Como são lembrados os soldados do Exército Popular que libertou a China.

Como são lembrados os vietnamitas, que derrotaram a França e os Estados Unidos.

Os palestinos que tombaram em Gaza serão lembrados como parte de uma luta que terminou vitoriosa.

O sionismo vai ser derrotado, como o nazismo foi derrotado.

E os colaboracionistas, os que passaram o pano, os que falsificaram os fatos, os que silenciaram, os cúmplices ativos e passivos, estes também pagarão pelos crimes que estão cometendo.

Quem vai ficar até o fim é o povo. E o povo vai contar a verdadeira história.



quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

“Universidade” e “militância”

Num grupo de zap, li no final de 2024 a seguinte mensagem, que transcrevo tal e qual foi publicada:

“(…) umas das nossas diferenças está no entendimento do papel da militância na interpretação da realidade. Voce vê a militância como um patamar superior que eleva a compreensão da realidade a outro plano. Eu vejo muito mais como uma limitação que vincula a atividade intelectual a compromissos de poder, necessidades de sobrevivência pessoal e expectativas de promoção e ascensão social do que a uma interpretação mais independente e critica da realidade. Em alguns casos a militância se combina ainda com uma visao religiosa de mundo que tambem é propria de facções ou torcidas organizadas. Alias por isso que as universidades e não os partidos políticos ainda são o espaço de referência para debater a realidade. E por isso a estabilidade no emprego e tao importante para garantir a independência mimima na interpretação da realidade (…)”.

Não sou eu o alvo da mensagem acima transcrita. Por isto, mas também porque foi dita num espaço mais ou menos informal, prefiro não nominar os santos envolvidos na polêmica, que por óbvio teve outros lances. 

Mas o milagre merece comentário. 

Será mesmo verdade que “as universidades e não os partidos políticos ainda são o espaço de referência para debater a realidade”?

Vejamos o caso do Brasil. Temos, creio, 29 partidos legalmente registrados. Na maioria dos casos, são vinculados a diferentes setores da classe dominante. Seu principal papel é escolher e inscrever candidaturas aos processos eleitorais. Sua contribuição ao debate acerca da realidade brasileira é marginal (em alguns casos, totalmente marginal).

No caso dos partidos vinculados à classe trabalhadora, acontece algo diferente. Há uma evidente preocupação em debater a realidade brasileira. Mas, ao menos nos dias que correm, não é possível dizer que tais partidos constituam um “espaço de referência” para aquele debate. E mesmo que fossem, a esquerda é minoritária no mundo dos partidos brasileiros.

E quanto às “Universidades”, seriam elas tal “espaço de referência”?

Responder a esta pergunta, no Brasil de 2025, exige começar lembrando que parte do sistema universitário é fábrica de diplomas. Na parte restante há de tudo um pouco. Inclusive “compromissos de poder, necessidades de sobrevivência pessoal e expectativas de promoção e ascensão social”, sem falar de facções, torcidas e religiões.

Mesmo assim, ao menos no caso do Brasil parece acertado dizer que, comparando “Universidades” e partidos políticos, as primeiras se saem melhor enquanto “espaço de referência para debater a realidade”. 

Entretanto, há um “detalhe” que precisa ser lembrado: salvo para os diletantes radicais, “debater a realidade” não é e nunca foi um fim em si mesmo.

Donde surge a questão: como incidir na realidade, inclusive para garantir que as “Universidades” possam seguir sendo um “espaço de referência”?

Fazendo docência, pesquisa e extensão, certamente. Mas mesmo supondo que isso fosse suficiente, as condições em que isto é feito, para não falar do impacto efetivo na realidade, dependem em imensa medida de variáveis externas à “Universidade”: numa palavra, dependem da política.

Para alguns, política é uma espécie de “profissão”, exercida por pessoas eleitas e por suas assessorias formais e informais. Quem pensa assim, limita-se quando muito a votar uma vez a cada dois anos. E, fora desses momentos eleitorais, comporta-se como se política fosse algo alheio ao seu cotidiano.

Todavia, embora às vezes esta possa ser a aparência, a essência é outra. Numa sociedade como a nossa, todo mundo “faz política” o tempo todo, queira ou não, saiba ou não, comporte-se ou não como “idiota”.

Embora todo mundo participe, a política brasileira é historicamente hegemonizada por uma pequena parcela da sociedade que, por isto mesmo, é denominada “classe dominante”. A classe dominante segue hegemônica mesmo quando um dos seus não ocupa a presidência da República.

Já a classe trabalhadora, seja para ter alguma influência, seja para buscar converter-se em classe dominante, precisa fazer um enorme esforço ideológico, organizativo e de luta. 

Noutras palavras, a classe trabalhadora precisa de muita “militância”, de todo tipo, cor e sabor. Não apenas militância partidária, enfatize-se. Mas por razões óbvias, a militância partidária tem importância fundamental na disputa política mais ampla, que diz respeito a disputa pelo (e contra o) Estado.

Sendo assim as coisas, seria muito grave se a militância (especialmente a partidária) fosse mesmo “uma limitação” que dificulta uma adequada interpretação da realidade. Neste caso ou teríamos que nos conformar com uma militância de bússola quase sempre falha, ou seria necessário buscar em algum outro “espaço” a interpretação da realidade indispensável para orientar a ação da militância. 

E que espaço seria este, na opinião do autor da mensagem que transcrevi no início deste texto

Se entendi direito a opinião dele, of course my horse, seria a “Universidade”!

Que a “Universidade” contribuiu e segue contribuindo na educação de muitos militantes, partidários ou não, é um fato (embora parte importante desta educação política não seja obra e graça de procedimentos formais, mas sim da atividade militante estudantil e sindical, com tudo que esta atividade proporciona como “efeito colateral” no plano intelectual).

Que muitos partidos, mas também sindicatos e movimentos buscam apoio nas “Universidades”, todo mundo sabe. 

E tampouco há dúvida que muito mais pode e deve ser feito, pelas “Universidades”, em favor da classe trabalhadora, inclusive para “compensar” o que as “Universidades” sempre fizeram em favor da classe dominante. 

Aliás, é nas “Universidades” que ocorreu e segue ocorrendo a formação politica de boa parte dos quadros políticos da classe dominante. Sem falar nos que são cooptados: o famoso dito - “não há mais nada parecido com um Saquarema do que um Luzia no poder” - vale para muita gente que, quando se licencia para trabalhar em governos, faz muito diferente do que se imaginava, tendo em vista o que predicava na “Universidade”.

Seja como for, na sociedade em que vivemos, no período histórico em que estamos, a “Universidade” nunca dará conta das necessidades intelectuais da classe trabalhadora, especialmente naqueles temas que dizem respeito ao objetivo estratégico e histórico de superar o capitalismo.

Tais necessidades são imensas, são urgentes e exigem, para seu debate e formulação, outro tipo de abordagem, de propósitos e de institucionalidade. Exigem, em resumo, partido e militância partidária. 

Portanto, embora compreenda os motivos que levam muita gente a não querer se engajar neste tipo de militância, não vejo como justificar estes motivos com uma “teoria” que afirma a suposta superioridade das “Universidades” na solução de uma problemática que está fora de seu escopo.

Para além da impossibilidade pura e simples, existem pelo menos dois outros aspectos a considerar nesta polêmica entre "Universidade" e "militância".

O primeiro aspecto: o “espaço” mais adequado para formular acerca da atividade militante, com o propósito de orientar esta atividade, é a própria atividade militante. Ressalto que isto deveria ser óbvio para alguém que se considera marxista. 

Aliás, a obra de Marx e de muitos outras pessoas engajadas na luta da classe trabalhadora é inseparável de sua atividade militante, é incompreensível fora deste contexto, só sobreviveu e ampliou sua influência graças à militância de centenas de milhões de pessoas, desde os anos 1840 até hoje.

Se a militância no Brasil, em 2025 e nos próximos anos, será capaz ou não de elaborar uma teoria à altura das necessidades históricas, aí já são outros quinhentos. 

Mas se esta militância não for capaz, não adiantará de quase nada que outros - supostamente fora e acima das mesquinhezas e contradições da luta política em geral e da militância partidária tal como ela é - se proponham a dar conta da tarefa.

Afinal, isso que chamamos de “militância” são centenas de milhares, milhões ou dezenas de milhões de pessoas que constituem a vanguarda da classe trabalhadora. 

Achar que este coletivo, que denominamos de “militância”, está por definição impossibilitado de interpretar corretamente a realidade, é decretar por antecipação que a emancipação da classe trabalhadora ou não seria possível, ou que seria algo absurdo, a saber, uma “emancipação” que não seria obra da própria classe trabalhadora, nem mesmo daquela parcela que tem consciência acerca dos objetivos da classe.

O segundo aspecto: a intelectualidade profissional (docentes, jornalistas, trabalhadores da arte e da cultura etc.), mesmo aqueles que possam não gostar muito disso, são parte ativa da luta de classes. Mesmo quando escolhem aparentemente abster-se, continuam sendo parte ativa.

A parcela da intelectualidade que, para além de ser objetivamente trabalhadora, também se identifica com a classe trabalhadora, deveria buscar militar, senão em algum dos partidos de esquerda, pelo menos junto aos sindicatos e movimentos existentes.

Digo “deveria”, porque no limite é contraditório ser de esquerda e não “tomar partido” (no sentido amplo do termo, não necessariamente estar num partido estrito senso). 

Talvez por este motivo, alguns dos que criticam os partidos realmente existentes acabam construindo, no ambiente acadêmico, "simulacros" de partidos. Ao fazerem isso, criam todo tipo de distorção, como sabe muito bem quem lida com estes simulacros no movimento sindical docente.

Seja como for, fica evidente que mesmo no caso dos que não se identificam e optam por não militar em partidos estrito senso, há gradações. 

Aliás, ninguém é obrigado a militar em partidos. Se não fosse por outro motivo, porque toma tempo e dista muito de ser uma atividade agradável, subjetivamente falando. 

O que, a meu juízo, deve ser considerado inaceitável é atacar e/ou depreciar a noção mesma de “militância”. Nesse caso se está costeando o alambrado. Pois na prática se está questionando a necessidade e a possibilidade da classe trabalhadora construir sua própria intelectualidade orgânica.

Um último comentário: a “estabilidade no emprego” é importante por diversos motivos. Mas não é esta estabilidade em si mesma que garante a “independência mínima na interpretação da realidade”.

Dentro de certos limites, a tal estabilidade possibilita, mas de nenhuma forma garante, que aquela tal interpretação seja “independente” em relação a classe dominante, ou seja, não garante que seja correta no sentido de corresponder ao ponto de vista dos interesses da classe trabalhadora. 

Quem quiser “independência de interpretação” neste sentido de classe, deveria valorizar ao máximo o engajamento e a militância, mesmo que isso não caiba nos “lattes” da vida.