sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Parte II de O presente de Dirceu


Retomo aqui meus comentários acerca das Memórias de José Dirceu.

Sobre o livro de conjunto, escrevi uma resenha para a revista Teoria e Debate, disponível no endereço https://teoriaedebate.org.br/estante/as-lembrancas-de-dirceu/.

Depois escrevi um comentário acerca das referências que Dirceu faz acerca da atuação da Articulação de Esquerda no período 1993-1995. Este comentário está aqui:

Nesta PARTE II, abordarei a versão de Dirceu acerca de alguns episódios que antecederam o curto período de dois anos (meados de 1993 a meados de 1995) em que a Articulação de Esquerda fez parte da maioria do Diretório Nacional do PT.

No capítulo 14, Dirceu trata de vários assuntos, entre os quais a constituição da Articulação dos 113, da vitória da Articulação dos 113 no Encontro Estadual do PT SP no ano de 1983, de sua atuação como secretário de formação política e depois como secretário-geral do PT paulista.

Neste capítulo Dirceu também fala da Campanha das Diretas Já e apresenta a crítica programática, estratégica e organizativa que a Articulação dos 113 fazia contra as chamadas “tendências organizadas” do PT.

Parte desta crítica seria sistematizada em um texto assinado por Wladimir Pomar e José Dirceu, texto que pode ser lido no seguinte endereço:

No capítulo 14 das Memórias Dirceu aborda a postura do PT frente ao Colégio Eleitoral, a campanha de Suplicy para a prefeitura de São Paulo capital em 1998 e a campanha de Dirceu para deputado estadual em 1986

Nas páginas 206 e 207, duas preciosidades: 

a) a primeira é a relação que Dirceu estabelece entre as pressões contra a candidatura de Suplicy em 1985, com a posterior “ladainha para apoiar o PSDB contra a direita”;

b) a segunda é a crítica que Dirceu faz ao “ovo da serpente que envenenaria o PT nos próximos trinta anos: o marketing político”.

Também neste capítulo, na página 211, se afirma que “algo de muito errado acontecia em nossos governos (...) o PT se recusara a associar-se com o governo e a governar. Era aí, síndrome do voluntarismo e do vanguardismo. Impunha-se não só chegar ao poder como aprender a governar”.

A afirmação pode ou não ser correta. Mas as experiências do PT em governos, até este momento, podiam ser contadas nos dedos de uma mão.

Em seguida, Dirceu resume suas lembranças do 5º encontro nacional do PT:
“Realizado no começo de 1987, o 5º Encontro ‘centralizou’, como se dizia, as tendências. Algumas estavam no PT de passagem. O partido era transitório, o ‘tático’, na linguagem cifrada da esquerda. Não passaria de uma frente parlamentar. Essa definição política e estratégica seria depois consolidada pelo 7º Encontro em 1990, mas o 5º Encontro avançou na definição, decisiva, da estratégia para construir e não assaltar o poder. Afirmou o socialismo como objetivo dessa luta por hegemonia contra as classes dominantes. A conquista do poder pelo voto, pacífica, era o caminho da luta pelo socialismo.”

Virei e revirei a resolução do 5º e mesmo do 7º encontro do PT, e não encontrei esta definição segundo a qual “a conquista do poder pelo voto, pacífica, era o caminho da luta pelo socialismo”. 

Arrisco dizer que em 1987 o próprio Dirceu não acreditava nisto, se é que acredita nisto hoje.

Dirceu nos conta, na página 213, que Lula o convidou para assumir a secretaria-geral nacional do PT:
“com a expectativa de que eu reproduzisse nacionalmente o trabalho de articulação, organização partidária, direção e orientação política que havíamos realizado em São Paulo. O problema é que, em São Paulo, existia um núcleo dirigente coeso e plural, disciplinado e formado na direção colegiada, coletiva, no movimento sindical e na esquerda. No país, não obstante todos os esforços nesse sentido, somente em 1995 conseguiríamos eleger uma direção sob uma orientação política comum e com metas políticas definidas.”

Confesso que a afirmação me causa espanto. 

Faziam parte da executiva nacional do PT, naquela ocasião, além do próprio Dirceu, as seguintes pessoas: Olívio Dutra, Djalma Bom, Jacó Bittar, Hélio Bicudo, Paulo Delgado, Perseu Abramo, Geraldo Magela, Marcelo Deda, Luis Dulci, Wladimir Pomar, Luis Eduardo Greenhalgh, Luiz Gushiken, Hamilton Pereira, Eurides Mescoloto, César Alvarez, José Genoíno, João Machado e Gilberto Carvalho.

No capítulo 16, Dirceu trata do tema da Constituição de 1988, explicando a posição do PT: não votar, mas assinar. E reclama da tentativa de revisão constitucional, feita pela direita em 1993, omitindo que setores do Partido também defendiam esta revisão.

Outro tema abordado neste capítulo são as eleições de 1988, introduzidas assim:
“Ascendia um poderoso ciclo de embates sociais e o PT crescia como produto e motor dessas lutas. Não era impossível chegar ao governo provocando uma ruptura, risco de difícil avaliação, que não podíamos correr. Havíamos optado pelo caminho da luta social e institucional e nos preparamos para disputar as eleições municipais de 1988.”

O parágrafo acima, localizado na página 219, é bem típico de um modo de pensar que, por suas limitações, contribuiu para nosso impasse atual: a incapacidade de enquadrar num mesmo pensamento estratégico luta social, luta institucional e ruptura. 

O curioso é que as resoluções do 5º e depois do 6º encontro nacional do PT tratam disto.

Acerca das eleições de 1988, Dirceu cita as prévias entre Plínio e Erundina, vencidas por esta última. Reconhece que a cúpula da Articulação estava errada ao considerar Erundina uma “opção inviável eleitoralmente. Estávamos redondamente enganados e o eleitorado popular nos mostraria o equívoco”.

O episódio, infelizmente, não ocupa mais que um parágrafo das Memórias. Como no caso do plebiscito sobre sistema de governo, Dirceu reconhece o erro, mas não se aprofunda nas razões pelas quais o erro foi cometido.

Aliás, o governo de Erundina não foi esquerdista, muito pelo contrário. 

Caberia ao Diretório Municipal do PT de São Paulo, sob a gestão de Rui Falcão, o papel de combater o “administrativismo” da gestão, termo que equivale ao atual “republicanismo”. 

E foi exatamente aí que começaram muitas das divergências que resultariam na cisão da Articulação, em 1993.

Dirceu faz uma avaliação positiva do governo de Erundina. Sua crítica mais dura é a seguinte: “Pecou por isolar-se com sua corrente, o PT Vivo, e por tender às decisões pessoais e de grupo”. E o na época dramático rompimento com Luiz Eduardo Greenhalgh é resumido assim: “sem sucessor, rompido com seu vice”.

Acontece que Dirceu, na análise dos governos, está mais preocupado com os desvios de esquerda do que com os desvios de direita. Nas suas palavras, na página 229:
“Ficaram a experiência e a necessidade de superar a tendência de setores importantes do PT que se recusaram a governar e viam o acesso aos cargos eletivos mais como instrumentos apenas para fomentar e organizar a luta política. Nesse processo enfrentamos, embora em menor escala, mas ainda danosa, a atitude de alguns setores ao recusarem o ônus de ser governo. Inúmeras vezes, o próprio PT era o principal opositor aos nossos governos, produzindo crises gravíssimas com os governadores Vitor Buaiz, Zeca do PT e Cristovam Buarque.”

Podemos concordar ou discordar pontualmente acerca do balanço deste ou daquele governo. Mas depois de 36 anos de experiências de governo, alguém acha que é possível insistir que nosso problema principal sejam os desvios de esquerda?

Escrevendo a respeito no ano de 2017, Dirceu chega a dizer o seguinte, na página 229:
“Era, e é natural, a tensão no debate das políticas relacionadas ao funcionalismo público, importante base do partido e de parlamentares de esquerda. Mas era preciso distinguir. Governo e partido são ambas instâncias do Estado, mas partem de universos diferentes. O governo representa o interesse da sociedade, de classes, é verdade, enquanto o PT exprime interesse do coletivo, da maioria partidária e de nossa base social, os trabalhadores e excluídos.”

A definição segundo a qual partidos e os governos são instâncias do Estado é uma definição tipicamente socialdemocrata.

Esta definição está na base do republicanismo, que tanto contribuiu para a criminalização de Dirceu, Lula e do PT.

Aceita esta definição que transforma o partido em instância estatal, é praticamente impossível dar uma solução positiva para aquilo que Dirceu defende no parágrafo seguinte da mesma página 229:
“Saber defender dentro do governo os interesses que representamos sem confundir o governo com o partido e vice-versa, é o x da questão. A questão envolve a forma de ampliar e consolidar, centro da gestão, o interesse do partido e de sua representação social. Mas se opor ao governo para não assumir ônus, só bônus, é a pior solução. Uma coisa é contestar decisões abertamente contrárias ao nosso programa. Outra é refugar a solidariedade com o governo na crise e na disputa com os adversários que, como sabemos, se comportam como inimigos.”

A impossibilidade é simples: se ambos, partido e governo, são instâncias estatais, o governo é mais amplo e, portanto, seus interesses supostamente maiores subordinarão os interesses supostamente menores do partido.

Noutras palavras, a correta e acaciana ideia segundo a qual o Partido deve defender o governo que elegeu, cede na prática seu lugar para a noção segundo a qual o partido deve ser uma correia de transmissão do governo.

O capítulo 17 termina falando introduzindo o tema das eleições de 1989. Aqui comete-se um dos muitos pequenos erros que uma revisão mais atenta evitaria:
“o cenário [das eleições de 1989] não era dos melhores para o PT, pela pressão e exploração da mídia. Viviam-se os momentos finais da União Soviética e havia a queda do Muro de Berlim. Ocorrera o massacre da Praça da Paz Celestial, em Pequim. Os sandinistas haviam sido derrotados eleitoralmente na Nicarágua e agravara-se a crise em Cuba. Uma época se encerrava, a das revoluções proletárias.”

Os sandinistas, como sabemos, foram derrotados em fevereiro de 1990, portanto depois das eleições de 1989.  

Mas o que chama atenção na passagem acima é a maneira como se despacha o chamado socialismo real. Segundo Dirceu:
“a legenda não tinha compromisso com o chamado socialismo real e tampouco se portava como sua herdeira. Ao contrário, formara-se na solidariedade internacional aos trabalhadores e depositária dos ideiais socialistas, mas avessa ao autoritarismo dentro e fora do Brasil. Apoiara as lideranças do sindicato polonês Solidariedade e opusera-se à repressão na China, embora com retórica diversa da política agressiva dos EUA.”

Certamente este é mais ou menos o discurso oficial que o Partido adotou na época, especialmente nas resoluções do 7º encontro nacional.

Mas depois de que tanta água passou por debaixo da ponte, e vindo de alguém como Dirceu, que faz uma defesa firme de Cuba, a impressão que fica é que falta mais reflexão.

Especialmente porque, como Dirceu mesmo alerta, “por trás do discurso adversário, tentava-se influir no partido e na avaliação que fazia daquela catástrofe política e ideológica. Outros interesses trabalhavam para domesticar o PT”.

A expressão “domesticação”, aliás, é central no manifesto Hora da Verdade.

O capítulo 18 trata das eleições de 1989.

Já observamos, na resenha publicada na revista Teoria e Debate, a curiosa ausência de qualquer menção a Wladimir Pomar, que foi coordenador geral da campanha Lula e secretário nacional de formação política do PT entre 1986 e 1989.

Os interessados na análise de Wladimir acerca da eleição de 1989 podem ler o livro Quase lá, disponível no seguinte endereço:

Neste livro, Wladimir Pomar apresenta uma versão diferente acerca de pelo menos dois episódios citados nas Memórias de Dirceu: a escolha do vice (Gabeira ou Bisol?) e a postura da maioria do Diretório Nacional frente às chances de vitória de Lula.

Na página 239, Dirceu diz o seguinte:
“Mas fica a pergunta: será que não foi melhor perdermos e só ganharmos em 2002, treze anos depois. Digo que não. Nunca se chega ao governo ou poder porque se quer. Nunca todas as condições estão ou estarão criadas. O triunfo de Lula em 1989 desencadearia uma sucessão de fatos, acontecimentos imprevisíveis e de mudanças em todos os sentidos. Teríamos evitado a tragédia dos anos Collor e o Brasil não seria o mesmo.”

Folgo em ler isto, pois contradiz a lembrança que tenho de uma rápida conversa com Dirceu no comitê da campanha, em 1989.

Claro, é só uma lembrança, e como acontece com algumas do próprio Dirceu, pode estar totalmente errada.

Encerrado seu relato sobre a campanha de 1989, Dirceu fala da reciclagem ocorrida em algumas tendências petistas (o PRC em Nova Esquerda, o Poposo em Vertente Socialista, o PT Vivo, “era a direita do PT se consolidando, com uma crítica radical a eles próprios, ao esquerdismo do passado recente, à ditadura do proletariado, ao socialismo real, à revolução armada”); cita de passagem o 7º Encontro Nacional, trata do Primeiro Congresso do Partido e dos primeiros passos do governo Collor de Melo.  

O capítulo seguinte, de número 19, começa falando da campanha de Dirceu a deputado federal, em 1990. Esta campanha, segundo ele, é afetada por “uma luta subterrânea” que eclodira na Articulação:
“Não havia mais unidade no núcleo duro da Articulação. Gushiken e Mercadante se aproximaram das teses e posições de Genoíno e Eduardo Jorge. Florescia a posição de ‘dissolução das tendências’, de partido de interlocução, de refundação e de aproximação com o PSDB. Teses às quais eu me opunha e com as quais não concordava em hipótese alguma.”

O curioso é que os adversários de Dirceu, neste momento, serão seus aliados contra a esquerda petista entre 1993 e 1995 e nos anos seguintes. E, ao contrário, seus aliados em 1990 serão mais adiante tratados por Dirceu como inimigos.

Para além da curiosidade, há uma questão de fundo: quem prevaleceu? Dirceu escapa de responder esta questão, que está no fundo da cisão da Articulação dos 113.

As posições que o PT e o próprio Dirceu passaram a defender depois de 1995 são diferentes das que prevaleciam até 1990; e são posições mais parecidas com essas que Dirceu combateu no Primeiro Congresso do PT.

Uma das provas disso apareceria, uma década depois, quando Dirceu perde a batalha para Palocci acerca de quem, e de qual política, hegemonizará o primeiro mandato do governo Lula.

Entre 1990 e 1993, a direita da Articulação dos 113 considerava Dirceu um de seus principais inimigos. Ao contrário, boa parte da esquerda da Articulação dos 113 via em Dirceu um aliado. 

Para surpresa nossa, e talvez também para surpresa do outro lado, Dirceu escolheu não marchar com a esquerda. Se isto tivesse ocorrido, o que teria mudado na história do PT nos anos 1990? Nunca saberemos. Mas o esforço que Dirceu faz para desqualificar a Articulação de Esquerda é, num plano estritamente psicológico, muito revelador.

Também é revelador o fato das Memórias não falarem praticamente nada acerca do 7º encontro nacional do Partido, em 1990. Nem das polêmicas acerca da aprovação do Fora Collor. Nem do seu papel e de suas opiniões acerca da expulsão da Convergência Socialista, em 1992.

Toda memória é seletiva e uma autobiografia escrita na cadeia tem limitações que devemos compreender. Mas uma vez que estamos diante de uma obra pública, ela passa a fazer parte da luta de ideias e merece ser criticada pelo que diz e pelo que não diz.

Por exemplo: no capítulo 20, o mesmo em que reconhece (embora não analise as causas) o erro cometido em defender o parlamentarismo no plebiscito sobre sistema de governo, Dirceu reclama da decisão aprovada por 26 a 25, no Diretório Nacional do PT, acerca do governo Itamar.

Dirceu afirma que teria dito a Lula, nesta ocasião:
 “perdemos aqui, hoje, a eleição de 1994. Como era admissível o PT, responsável pelo impeachment, lavar as mãos? Pior, colocar-se na ‘ilegalidade’. Era um risco se nossos adversários quisessem explorar aquilo. Ademais, a proposta estava absolutamente fora da realidade, como os fatos de 1993 e 1994 cabalmente provariam.”

O Diretório Nacional de 1992, é bom lembrar, foi aquele eleito pelo 7º Encontro Nacional do PT. 

A chapa da Articulação tinha 56% dos votos, portanto 46 membros. A chapa da “direita” partidária tinha 17% dos votos, portanto 14 membros. As duas chapas da esquerda tinham, somadas, 27% ou 22 integrantes do DN. Segundo Dirceu, votaram 51 pessoas, de um total de 82. Quem exatamente votou nesta resolução? Não sabemos, Dirceu não diz.  

Mas sabemos qual era o pano de fundo da discussão. Havia um setor do Partido que acreditava que o governo Itamar seria uma espécie de “transição” entre Collor e Lula. Outro setor percebia, embora nem de longe vislumbrasse o tamanho da encrenca, que nossa chance de vitória dependia do governo Itamar não se estabilizar.

Os fatos de 1993 e 1994 mostraram que o governo Itamar foi a incubadora do governo FHC. Podemos divergir acerca de qual tática poderia/deveria ter sido adotada frente a isto, mas considerar que Lula teria perdido as eleições de 1994 quando o PT aprovou uma resolução dura contra o governo Itamar é uma visão que vai na exata contramão dos fatos.
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Aliás, Dirceu mesmo reconhece que “as relações de Lula com o governo Itamar Franco não tinham nada a ver com a posição ‘oficial’ do PT e do Diretório Nacional”. Mas Dirceu não liga lé com cré, não percebe que a atitude complacente frente ao governo Itamar contribuiu para que, dentro dele, os neoliberais articulassem o plano Real e a candidatura FHC.

Sobre o plano real, Dirceu afirma que “não sabíamos o que fazer, Nosso discurso oscilou da condenação ao desconhecimento e, depois, ao apoio envergonhado”.

Dirceu chega a dizer o seguinte:
“Mercadante, deputado federal, vice presidente do PT, economista, líder sindical na PUC, assessor da CUT e de Lula, ocupou um espaço especial na campanha, como vice e porta-voz de Lula diante do Real. Sem entrarmos, por enquanto, no mérito, foi um desastre político e de comunicação. Não se sustentou e confundiu ainda mais o partido com relação à nova moeda, levando mais balbúrdia do que esclarecimento às campanhas estaduais.”

Pena que Dirceu não entre no mérito, algo que ele fará nas páginas 266 a 268. Pois a verdade curiosa é que no debate sobre o plano Real, as posições que previam desastre imediato vieram exatamente de quadros da Unidade na Luta, enquanto economistas da esquerda foram mais cautelosos na análise e alertaram para a possibilidade do plano “dar certo” no curto prazo.

Claro, reconhecer isto hoje, assim como reconhecer isto na época, não contribui para a narrativa segundo a qual a derrota nas eleições de 1994 deveu-se aos erros da esquerda petista, então majoritária no Diretório Nacional.

Do ponto de vista político, quem é maioria na direção paga pelos erros cometidos. Mas 24 anos depois, é plenamente possível fazer um balanço mais equilibrado do que ocorreu. Dirceu prefere, entretanto, repetir a mesma (pego empregado dele o termo) ladainha.

Mesmo que a ladainha não se sustente na descrição que ele mesmo faz de sua campanha para governador, onde o problema principal vinha do seguinte:
“Lula e seu entorno – Gushiken, Clara Ant, Vannuchi, Mercadante – viviam de ilusões sobre o PSDB e Covas e, na prática, “apoiaram” Covas, deixando claro que minha candidatura era um estorvo e prejudicava Lula.
Na imprensa e dentro do PT, Genoíno, Eduardo Jorge, Tarso Genro, Plínio (então covista) e com apoio de Roberto Freire, do PPS, defenderam o apoio a Covas e a retirada de minha candidatura.
(...) A campanha para o governo estadual estava ferida de orte e eu abandonado à própria sorte, com manifesta e pública oposição da ala do bunker de Lula e dele próprio, apesar das aparências. Não seria a primeira vez que Lula, por razões políticas – não se trata de um juízo moral – me deixaria ‘falando sozinho’.”

Como se vê, alguns dos muitos problemas reais enfrentados por Dirceu em 1994 não vinham da esquerda petista que ele tanto ataca. Vieram dos setores com os quais ele se aliaria para derrotar a esquerda petista.

Concluo esta terceira parte da análise das Memórias, citando o parágrafo da página 266 em que Dirceu faz um balanço das eleições de 1994:
“Era possível vencer em 1994? Não. Perdemos por causa do Real? Não. Perdemos antes da eleição, na decisão “Fora Itamar”, na divisão interna, na eleição da Nova Maioria, na coordenação tripartite da campanha na TV e no Rádio, nas ilusões sobre Covas e o PSDB. Tratava-se da pior derrota e merecia uma resposta à altura da nossa parte.”

É a primeira vez que eu leio, em algum lugar, esta subestimação acerca do Real. Trata-se de uma posição insustentável no plano dos argumentos. Todo mundo sabe que o impacto eleitoral do Real foi colossal. Os demais fatores podem ter contribuído mais ou menos. Mas subestimar o peso do Real faz sentido, para quem precisava imputar à esquerda petista, majoritária no DN, a responsabilidade pela derrota.

(E por falar em ilusões sobre o PSDB, vale lembrar que um encontro extraordinário do PT em SP decidiu, por maioria, apoiar Covas no segundo turno das eleições estaduais. A posição majoritária foi apoiada por Dirceu. E por David Capistrano, entre muitos outros dirigentes do Hora da Verdade/Articulação de Esquerda. Prevaleceu a "ladainha" de que devíamos apoiar o PSDB contra a direita.)

A partir daqui começou, para Dirceu e para o PT, uma nova fase: a de preparar a derrota da esquerda petista no Encontro de Guarapari, em 1995.

As opções feitas naquele ano contribuíram para a vitória de 2002, mas também contribuíram para o que ocorreria em 2005.

Mas isto fica para a próxima parte deste texto.

(Sem revisão. Aliás, agradeço a quem se disponha a indicar eventuais erros de digitação ou mesmo informações equivocadas.)



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