A quinta parte pode ser lida aqui:
A quarta parte e anteriores podem ser acessadas por
aqui:
O capítulo 26 das Memórias de José Dirceu inicia
falando do que antecedeu a posse de Lula.
Há várias passagens interessantes acerca dos
conflitos abertos e velados entre Lula, Dirceu, Palocci, Berzoini e outros
personagens.
Por exemplo, a “primeira grande decepção com Lula”,
que foi este ter indicado Genoíno para discursar na comemoração da vitória em
São Paulo, dia 27 de outubro de 2002; e de ter informado Dirceu que ele não
falaria, através de Favre, então marido de Marta Suplicy.
Uma das passagens que considero mais reveladoras acerca
do papel que Dirceu cumpriria no governo, malgré lui ou não. Está na página
339:
“Lula sabia que a dose
era cavalar: Henrique Meirelles, deputado do PSDB, banqueiro do Bank Boston.
Então me indicou no mesmo dia. Havia um simbolismo na nomeação. Situava o
partido no centro do governo ao lado do presidente. Representava, de certa
forma, a militância petista, a esquerda, os movimentos sociais. Afirmava o
comprometimento com o partido e com minha história e com a luta pré-PT e de uma
herança de luta pelo socialismo. Pelo menos era o que se esperava de mim.”
A ironia é que durante o período em que esteve no
governo, a política de Palocci foi hegemônica. E depois que Dirceu caiu do
governo, a política de Palocci perderia peso até ser substituída por outra, mais
próxima daquela defendida pelo Partido.
Portanto, na prática, Dirceu foi mais “simbólico” e Meirelles
foi, digamos, mais efetivo.
Há uma série de outros episódios, impossível resumir
aqui, acerca da composição do primeiro ministério, acerca de como e porque Genoíno
assumiu a presidência do Partido, acerca do acúmulo de funções por parte de
Dirceu no governo, acerca da relação com o PCdoB e, principalmente, acerca da
negociação com o PMDB.
Para além dos argumentos políticos utilizados à
época, retrospectivamente Dirceu considera que (página 347) “a farsa do
Mensalão teria sido evitada com a aliança prioritária com o PMDB”.
Depois de relatar a posse, ele detalha sua equipe no
governo. Elogia José Antonio Dias Toffoli: “sólida formação”, “não vasta experiência
junto ao PT”, “não poderia ter feito escolha melhor”, “nunca me faltou”, “competência
e capacidade de trabalho”. E explica a origem de Waldomiro Diniz, que “seria
alvo do primeiro escândalo do nosso governo e também da primeira tentativa de
me tirar do poder”.
Fala também de seus colegas de ministério. Dedica a
Palocci o seguinte elogio, nas páginas 353 e 354:
“franco, paciente, excelente gestor, Palocci
é, antes de mais nada um político. Médico, tornou-se, pela exigência do cargo,
um economista autodidata. E dos bons, bem assessorado, com uma equipe de
primeira, e evidentemente com suas ideias das quais eu geralmente divergia e
buscava tensionar sem passar a fronteira da ‘ordem presidencial’.”
Não duvido que Dirceu pensasse isso sobre ambos, na
época. Mas não há como não sentir estranheza, ao ler isto hoje, depois de tudo
o que ocorreu, depois de Toffoli e de Palocci terem mudado de lado de maneira
brutal.
No capítulo 27, Dirceu relata seu conflito com
Palocci, que teria sido arbitrado por Lula em favor do segundo.
Ao chegarmos aqui, uma pergunta surge, sobre a qual
não há nenhum sinal no livro: não teria sido melhor, para o Partido e para o
governo, se Dirceu ficasse como presidente do Partido e, por exemplo, assumisse
a presidência da Câmara dos Deputados?
Voltando ao livro, Dirceu relata uma conversa dele
com Palocci, na presença de Lula, onde “o pau comeu”. Está na página 360:
“uma dura discussão com
queixas e acusações mútuas. Palocci, magoado comigo, alegando que eu usara ‘argumento
sigilosos, em discussão pública’. No fundo, acusava-me de ‘desonestidade
intelectual’, um nome educado, como ele, para ‘traição’ ou ‘sabotagem’. No
fundo era sua insistência no sigilo e sua obsessão por decisões monocráticas
que fossem tomadas por ele e sua equipe, como se fossem os únicos qualificados
para tanto. Do outro lado, o velho método de discutir a forma e não o conteúdo da
questão e da divergência, que terminou abafado pelo modo como a discussão se
dera, pública e envolvendo temas em tese sigilosos, na verdade nem sempre.”
Este relato é por demais interessante.
Primeiro, por uma questão menor: Dirceu reclama do “velho
método de discutir a forma e não o conteúdo”, que é exatamente o que ele faz em
seu livro, ao reclamar da suposta violência verbal que David Capistrano e
outros lhe dedicaram em 1993.
Segundo: embora as Memórias estejam
obviamente corretas ao informar que Lula, naquele momento, arbitrou em favor de
Palocci, é preciso explicitar algo que, salvo engano, as Memórias não
explicitam com o destaque que pelo menos eu penso ser necessário. A saber: ao
decidir ficar no governo, Dirceu se tornou corresponsável pela política
defendida por Palocci e avalizada por Lula.
Aliás, isto nos foi de certa forma dito por ele, em reunião mantida em
seu gabinete, na minha presença e de Iriny Lopes e Luciano Zica: o que ele
buscava era uma inflexão progressista nos marcos de uma política conservadora.
Terceiro, uma questão maior: as divergências de
fundo sobre a política econômica eram dirimidas e neutralizadas no ambiente do governo.
No partido, na bancada e nos movimentos sociais, as críticas eram algumas vezes
atacadas como lesa pátria. Esta atitude resulta da concepção expressa por
Dirceu mesmo, quando fala da relação entre governo e partido, ambos
instituições de Estado.
O restante do capítulo é consumido por um relato
sobre o que foi feito de positivo no governo, apesar das limitações.
O capítulo 28 também aborda as realizações do
governo. Chama a atenção a defesa da reforma da previdência, feita nas Memórias
com a mesma ênfase com que foi defendida, por Dirceu e muitos outros, em 2003.
Segundo ele, “Lula fez a reforma na medida exata”.
Os argumentos são os conhecidos: ataque aos
privilégios. Podemos concordar ou discordar deste argumento. Mas como estamos
em 2018, não há como debater o tema sem perguntar: politicamente falando, valeu
a pena? Valeu a pena inaugurar o governo Lula com esta batalha? Ela era mesmo necessária?
Ou fazia parte das decorrências implícitas na Carta aos Brasileiros? Estas
perguntas não são feitas.
Mas de alguma forma Dirceu responde a questão,
quando afirma, na página 372, o seguinte:
“durante esses embates –
com forte oposição interna e com seu uso para a luta interna e na sociedade
contra nós, a maioria que conduzira e elegera Lula – fiquei convencido da
necessidade de elaborarmos uma narrativa para nosso governo e levá-la ao PT, a
sua militância, ao primeiro e segundo escalões do governo, à sociedade. Impunha-se
um projeto de desenvolvimento nacional e capaz de retomar o crescimento, mas
com distribuição de renda”.
Recomendo que leiam de novo o parágrafo anterior. O
problema apontado não é de “narrativa”, mas sim da necessidade de “outra
política”. E quando se fala de lutar interna contra “a maioria que conduzira e
elegera Lula”, está reafirmada a narrativa que só um setor do Partido tinha o
direito legítimo de reivindicar as vitórias e avanços. Motivo pelo qual um
setor do Partido tinha o direito de fazer críticas; as mesmas críticas, noutras
bocas, eram apenas “luta interna”. Este jeito com o qual Dirceu raciocina está na origem de muitos dos graves problemas que tivemos/teríamos.
Voltaremos a isso na próxima parte deste texto.
(Sem revisão. Agradeço
a quem se disponha a indicar eventuais erros de digitação ou mesmo informações
equivocadas.)
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