O vocabulário da luta
(texto em fase de revisão)
Um militante socialista alemão -- que
nasceu e morreu no século 19 -- dizia que a classe trabalhadora tem três
tarefas permanentes: estudar, organizar e lutar.
Outro militante socialista -- um russo
que nasceu no século 19 e morreu no século 20 -- dizia que o segredo da vitória
da classe trabalhadora estava na ação coletiva.
Estudo, organização e luta coletiva:
estes são três aspectos permanentes de nossa ação.
O sucesso de cada um destes aspectos
está em parte vinculado ao convencimento individual, ao engajamento individual,
à responsabilidade individual.
Mas da mesma forma que "uma
andorinha só não faz verão", a ação da classe trabalhadora só tem êxito
quando dezenas, centenas, milhares, milhões de trabalhadores e trabalhadoras se
engajam.
Por quais motivos um indivíduo se
engaja na luta? São os mais variados.
Por quais motivos milhões de
trabalhadores e trabalhadoras se engajam na luta? Em geral, trata-se de uma
reação às agressões feitas pelos empresários, diretamente e/ou através das
instituições que agem em favor dos capitalistas (ou seja, da classe que explora
quem vende sua força de trabalho em troca de um salário).
Todo dia há indivíduos que despertam
para a luta.
Mas não é todo dia que milhões de
pessoas despertam para a luta. Aqueles que já são lutadores precisam lidar com
este descompasso entre a consciência das “vanguardas” e a consciência
das “massas”.
As alternativas básicas para lidar com
isto são:
a) aguardar passivamente que as “massas”
despertem;
ou...
b) tentar substituir a ação das massas
pela ação de uma minoria;
ou...
c) fazer alianças com os empresários e
seus representantes (não podendo vencer, unir-se ao inimigo);
ou...
d) estudar, organizar e
lutar, sendo que esta luta deve ocorrer na medida (forma e conteúdo)
necessária para contribuir na alteração do nível de consciência e organização
dos milhões.
Esta quarta alternativa baseia-se em
pelo menos dois pressupostos:
a) que a ação política e ideológica das
vanguardas pode estimular, acelerar e direcionar o processo de conscientização
das massas;
b) que este trabalho político e
ideológico organizado, combinado com o processo espontâneo de conscientização e
mobilização, pode fazer a maioria da classe trabalhadora adquirir consciência
acerca de seus interesses e converter-se em uma maioria política com
consciência de si.
Para saber como fazer isto, para
organizar melhor e lutar do jeito certo, é fundamental que as vanguardas estudem
(compreendendo por estudar não apenas tomar contato com conhecimento já produzido,
mas também investigar a realidade e produzir conhecimento novo).
Estudar quem somos, pelo que lutamos,
contra o quê e contra quem lutamos; aprender com quem lutou antes de nós e com
os que lutam em outras regiões do Brasil, da América Latina e do mundo.
Responder as velhas questões e também as novas questões.
Estudar é trabalhar; e trabalhar exige
disposição, esforço e técnica. Um dos aspectos técnicos envolvidos no estudo é
o domínio da linguagem.
Cada profissão tem seu vocabulário, um
conjunto de termos que os trabalhadores daquela profissão utilizam para se
comunicar.
Qual é o vocabulário da luta?
Quais os termos, as palavras, as categorias, os vocábulos utilizados pela
classe trabalhadora na luta por seus interesses?
Como sempre acontece, o verbo surge da
ação, da vida cotidiana da classe, das lutas que ela desenvolve, muitas vezes
tomando as palavras de empréstimo das demais classes (assim como tomamos
palavras de empréstimo de outros povos, de outras línguas e de outras épocas).
Um bom exemplo disto é a palavra greve.
Segundo alguns estudiosos, a palavra
tem origem latina, designando areia ou cascalho. Estes estudiosos nos informam
que a Place de Grève (Praça da Greve) ficava em Paris, à beira do rio Sena, num
ponto em que se acumulava areia e cascalho. Nesta praça reuniam-se
trabalhadores que estavam sem trabalho, à busca de um emprego. Mais adiante, o
termo será empregado não para designar trabalhadores em situação passiva
(parados por falta de um empregador), mas sim trabalhadores em situação ativa
(parado contra seus empregadores).
O vocabulário da luta é atualizado de
forma permanente.
Certas palavras vão mudando de
significado. Outras palavras possuem diferentes significados, a depender do
país, do momento da história, do setor da classe que as utiliza.
Por exemplo: governo e poder.
É muito comum ouvirmos algumas pessoas
falarem que “o PT chegou ao poder em 2002”. Ao que outras respondem: “o PT
nunca chegou ao poder, apenas conquistamos o governo”. E outras lembram que a
questão não está em que um partido chegue ao poder, mas sim que a classe
trabalhadora chegue ao poder.
Por trás destas três frases e de suas
variantes, há visões distintas acerca do que seja a política, o poder, o
Estado, o governo e os processos eleitorais, a relação entre os partidos e as
classes etc.
Portanto, um dos desafios que
enfrentamos, quando se trata de estudar, é dominar o vocabulário “técnico” com
o qual descrevemos a luta e planejamos nossa
intervenção nela.
Há várias maneiras de fazer isto. A que
consideramos mais adequada é a que toma como referência -- como “critério da
verdade” -- a realidade.
Ou seja: cada um pode significar
como quiser termos como classes sociais e luta
de classes, Estado e política, partidos
e sindicatos, conjuntura,
tática
e estratégia.
Mas para que haja diálogo e ação comum,
é preciso que muitas pessoas signifiquem da mesma
forma.
E para que isto seja possível,
é preciso que aqueles termos expressem algo em comum para muitas pessoas. E este
“algo em comum” é... a realidade, a prática social, a ação e o produto da ação
de dezenas e centenas de milhões de pessoas.
Com um detalhe importante: a realidade
social se transforma o tempo todo. E esta transformação ocorre antes de ser
traduzida em palavras, em conceitos, em categorias, termos e vocábulos. Por
isto é comum que utilizemos palavras antigas (que designam fenômenos passados)
para denominar acontecimentos do “presente” e previsões que fazemos sobre o
futuro.
Como dizia um poeta alemão, a coruja do
conhecimento alça voo ao anoitecer. As palavras que utilizamos para falar do
presente e do futuro tiveram origem no passado e designavam originalmente
realidades passadas.
Um exemplo disto: a palavra utopia.
O termo é de origem grega: u-topos, não lugar, um lugar que não existe. Foi
utilizado como título para um livro publicado por volta de 1516 (há 500 anos,
portanto). Naquele livro, Thomas Morus criava um personagem que descrevia uma
sociedade existente em uma ilha a qual chegara através de um naufrágio.
Portanto, uma sociedade que era contemporânea aos personagens do livro e também
aos leitores do livro.
Pois bem: desde o século 19 até hoje o
termo utopia é muito utilizado para designar uma sociedade... futura!!!
Aqui se faz necessário falar de um
“detalhe” importante: a ação humana faz parte da realidade, tanto como observadora quanto
como construtora da realidade.
Se muitos seres humanos acreditam em
algo e organizam-se em função desta crença, isto gera uma realidade, mesmo que
aquela crença seja fantástica, ficcional, artificial, ilusória, um mito. As
ideias quando são incorporadas por muita gente convertem-se em força material.
Aliás, um filósofo alemão do século 19
dizia que não foi Deus que criou o homem, foi o homem que criou Deus. Ou,
poderíamos dizer, os seres humanos criaram vários deuses, igrejas e doutrinas
que serviram como linguagem para expressar determinados interesses sociais
durante muitos séculos. Os deuses podem não existir, mas as igrejas e os
movimentos religiosos existem, assim como existem e atuam aquelas milhões de
pessoas que são crentes.
Antes de existir o vocabulário da luta
da classe trabalhadora, existiu o vocabulário da luta dos burgueses. E antes disto,
o vocabulário utilizado para expressar os interesses dos senhores feudais (e também
pelos que se opunham aos feudais) era um vocabulário religioso.
Foram as revoluções burguesas (séculos
17 a 19) que “criaram” um vocabulário político laico.
Entre 1789 e 1917, a classe
trabalhadora de todo o mundo utilizou um vocabulário político surgido
principalmente da revolução francesa.
O exemplo clássico disto: as
palavras esquerda e direita, bem
como a expressão partidos políticos.
A revolução francesa, por sua vez, foi
buscar estes e outros termos políticos na antiguidade grego-romana. Por
exemplo: democracia, república e proletariado. Mas
também resgatou e adaptou termos utilizados por movimentos religiosos,
econômicos e políticos dos séculos anteriores!!!
Partindo do vocabulário surgido da
grande revolução francesa de 1789, o movimento da classe trabalhadora ao longo
do século 19 foi “criando” -- o que geralmente significa resignificar ou
customizar -- seus próprios termos.
É o caso de termos como greve,
proletariado,
socialdemocracia,
trabalhismo,
anarquismo, populismo, cooperativismo,
socialismo
e comunismo.
Com a revolução russa de 1917 surgiu um
novo paradigma: até então, o vocabulário político tinha como referência a
revolução francesa de 1789. A partir de 1917, passou a existir uma nova referência.
Processo semelhante ocorreria com outras revoluções, que pelo seu impacto na
realidade converteram-se em fonte de transformação, de inspiração, foram
tomadas como modelo ou exemplo.
A partir de 1917 e até hoje, o
vocabulário da luta continuou mudando.
Mudanças no capitalismo, mudanças na
luta da classe trabalhadora, surgimento (ou reconhecimento da existência) de
outros setores sociais e de outras questões, diferentes tentativas de transição
socialista, além de muitas derrotas, todas estas novidades se expressaram em
palavras velhas ou novas, assim como em inventos como é o caso do termo neoliberalismo.
Portanto, estudar o vocabulário da luta
não é a mesma coisa que estudar matemática básica. Podemos dizer que é mais
parecido com o estudo da literatura ou da pintura, em que uma mesma obra pode
gerar diferentes percepções e avaliações, sendo sempre necessário distinguir
entre os aspectos “objetivos” e os aspectos “subjetivos” da obra. E poucas
vezes é possível chegar a um acordo, embora seja possível entender o que cada
um quer dizer.
Com todos estes cuidados, quais são os
termos fundamentais que precisam ser conhecidos por quem deseja organizar
melhor e lutar melhor? Que vocabulário básico precisa ser dominado pelos
militantes, lutadores, revolucionários?
Alguns dos termos essenciais são: classes
sociais, luta de classes, formação social, modo
de produção, Estado, politica, partido
político, reforma, revolução, estratégia, tática,
conjuntura.
Não há definições universais para cada
um destes termos. O que veremos a seguir é -- mais que um dicionário -- um guia
para estudo.
Classes sociais
O que diferencia os seres humanos de
outros animais? Fundamentalmente a capacidade de transformar a natureza, ou
seja, o trabalho.
Temos aqui uma interessante história,
que envolve o uso da mão; a extensão da mão em ferramenta; a ferramenta
combinada com a ação coletiva, convertendo um animal fisicamente frágil em um
caçador poderoso; a coleta e a caça convertendo-se pouco a pouco em criação e
reserva; o desenvolvimento de novos conhecimentos e novas ferramentas, como o
fogo; a constituição de agrupamentos cada vez mais numerosos e uma crescente
divisão de trabalho entre os integrantes deste agrupamento.
Em algum ponto desta história
originária, a divisão de funções técnicas serviu de base para uma divisão
social mais permanente, que nos acompanha até hoje: a divisão entre produtores e proprietários.
Resumindo de outro jeito a mesma
trajetória: os dois elementos básicos de qualquer sociedade são as relações
que os seres humanos estabelecem entre si e as relações da
humanidade com a natureza, para produzir e reproduzir suas condições de
existência.
Note-se que os seres humanos se
convertem em seres humanos, na medida em que agem socialmente, em comunidade,
em humanidade.
As relações que os seres humanos
estabelecem entre si no processo de produção podem ser de cooperação e
a subordinação. Que por sua vez desdobra-se em conflitos e
lutas. Ou seja: cooperação, subordinação e conflito.
Ao longo da história, estes tipos
estiveram presentes em proporções que foram variando.
Numa fábrica moderna, por exemplo,
existe alto nível de cooperação entre os trabalhadores (e em alguma medida
também entre estes e os capitalistas). Ao mesmo tempo há alto nível de
subordinação dos trabalhadores aos capitalistas. E, portanto, graus variados de
conflito entre os trabalhadores e os capitalistas, indo das reclamações às
sabotagens, das greves a outros atos de insubordinação.
Na sociedade atual, não sobreviveríamos
sem água e energia elétrica, que são produto de um alto nível de cooperação, de
subordinação e de conflito. Como sabemos, em sociedades tecnicamente capazes de
produzir e fornecer água e luz para todos/as, o acesso não é universal: depende
de diferentes níveis de cooperação e subordinação, conflito e
luta, tanto na produção quanto na distribuição.
É importante lembrar sempre que as
relações humanas não se limitam ao processo de produção e reprodução das
condições materiais de existência.
Mas como não existe sociedade sem
produção, as relações de produção constituem as relações fundamentais, que
influenciam todas as demais.
Ao longo da história, podemos
identificar vários tipos de relações de produção.
As mais comuns foram a escravidão,
a servidão e o assalariamento.
Embora seja óbvio, vale lembrar: uma
relação de produção é uma... relação, uma unidade de
contrários: se há escravidão, há escravizados e senhores de escravizados; se há
servidão, há servos e senhores; se há assalariamento, há trabalhadores
assalariados e capitalistas.
Qual o nome que damos para estes “partes”,
estes grupos de pessoas que ocupam um mesmo lugar numa determinada relação
social de produção? Classes sociais.
E qual o nome damos para a
relação que estes grupos sociais estabelecem entre si? Luta de
classes.
Esta luta se exprime das mais diversas
maneiras e nos mais diferentes espaços. Quando um patrão e um empregado firmam
um contrato, há luta de classes. No processo de produção – inclusive na
definição sobre o direito de ir ao banheiro -- há luta de classes. A luta de
classe também está presente nas definições públicas e privadas que decidem como
será o transporte do trabalhador até sua casa, como serão suas condições de
moradia, de saúde, de educação, de cultura e lazer. De igual maneira, a luta de
classes está presente nas lutas sindicais, nas batalhas eleitorais, nas
definições de governo e parlamentares, em cada ato cotidiano da vida pública e
também da vida privada. Inclusive nas telenovelas, nas missas, no esporte.
As pessoas podem ou não ter consciência
dista, mas numa sociedade dividida em classes sociais, tudo que fazem ou deixam
de fazer está atravessado pela luta de classes.
Ao longo da história não existiram
sempre as mesmas classes sociais, portanto a luta de classes nem sempre foi a
mesma.
Claro que há semelhanças: os escravizados,
os servos e os assalariados têm em comum o fato de serem produtores
subordinados à exploração dos proprietários. Da mesma forma, senhores de escravizados,
senhores de terra e senhores de capital têm em comum o fato de serem proprietários
não-produtores que exploram os produtores diretos.
Mas há diferenças muito importantes,
motivo pelo qual falamos que há não apenas diferentes classes, mas sociedades
diferentes, modos de produção diferentes.
Um exemplo destas diferenças: o escravizado
era tratado como propriedade, o assalariado é considerado uma pessoa livre.
Outro exemplo destas diferenças: em
geral, o escravocrata compra e vende tanto os trabalhadores quanto os bens
materiais produzidos por eles; o senhor feudal não é dono dos servos
da gleba, mas se apropria da maior parte do que eles produzem; o
capitalista se apropria da maior parte do valor produzido pelo assalariado
para acumular e reproduzir, de forma ampliada, o... capital.
Numa mesma sociedade, podem coexistir
diferentes tipos de cooperação, subordinação e conflito. É o predomínio de uma
determinada combinação destas variáveis que define a sociedade como um todo.
Exemplo: no Brasil, por volta de 1850,
era a exploração do trabalho escravo, a dificuldade em continuar importando
“peças escravas”, as fugas e revoltas, a organização de quilombos e o
abolicionismo que determinavam o curso geral da sociedade.
Já no Brasil, por volta de 1950, era a
exploração do trabalho assalariado, as reivindicações, lutas e greves dos trabalhadores,
e a repercussão disto junto aos demais setores, que determinavam o
curso geral da sociedade.
Tanto num caso como noutro, ao lado da
escravidão e do assalariamento, respectivamente, existiam outros tipos de
relações de produção. Mas havia uma relação que era dominante. Noutras
palavras, havia um modo de produção que era dominante.
Falamos em modo de produção comunista
primitivo, modo de produção escravista, modo de produção feudal e modo de
produção capitalista exatamente para deixar claro qual a relação de produção
que predomina (e, por decorrência, que tipo de cooperação/subordinação/conflito
predomina).
Mas devemos sempre lembrar que nas
sociedades realmente existentes, é comum encontrarmos vários modos de produção
coexistindo. E não apenas isto: em sociedades onde predomina um determinado
modo de produção, é comum encontrarmos este modo de produção sob diferentes
formas. Por exemplo, um capitalismo predominantemente agrário, ou
predominantemente industrial, ou predominantemente financeiro etc.
Tanto em 1950 quanto em 2016, o
capitalismo é o modo de produção predominante nos EUA, Inglaterra, Brasil e
Índia (em todos predomina a exploração do trabalho assalariado), mas nestes
quatro países há sociedades com semelhanças mas também com muitas diferenças.
Nas sociedades onde predomina o modo de
produção capitalista, é comum encontrarmos outras classes sociais, além dos
casos extremos de proprietários capitalistas não-produtores e produtores assalariados não-proprietários.
Por exemplo, os artesãos de ontem e os pequenos-proprietários urbanos e rurais de
hoje.
Assim como é comum encontrarmos grandes
diferenças no interior das duas classes sociais fundamentais. Diferenças tão
grandes, que muitos autores tratam uma fração da classe trabalhadora, como se
fosse uma classe social autônoma: a “famosa” “classe média”.
Para dar conta destas diferentes
combinações, dessas diferenças que existem entre sociedades em que predomina um
mesmo modo de produção, é que utilizamos o termo formação social (alguns
preferem falar de formação socioeconômica).
Por exemplo: a formação social
brasileira dos anos 1889 até 1930 foi diferente da formação social brasileira
dos anos 1930 até 1980. Que por sua vez difere do que passa a existir desde
então até os dias atuais.
Importante perceber que os conceitos de
modo
de produção e de formação social “derivam” dos
conceitos de classe e luta de classes.
Dizendo de outra maneira: são as
relações de produção que os seres humanos estabelecem entre si, para produzir e
reproduzir as suas condições materiais de existência, portanto são as classes
sociais e a luta de classes que existem em cada época e lugar, que definem qual
“formação social” existe e qual “modo de produção” predomina.
Por isto, a questão básica que deve ser
respondida sempre é: quais são as classes e como lutam entre si?
Pois uma classe social nunca existe sozinha. Se todos fizessem parte de uma
única classe, não haveria classes nem luta de classes...
Estado e luta de
classes
Onde há classes, há luta de classes.
Notem que isto é diferente de falar que “onde há tribos, há luta pelo controle
do território”.
Nas épocas originárias, havia luta
entre os seres humanos, por exemplo entre diferentes tribos.
Mas esta luta era diferente da luta de
classes, que surgiu quando as sociedades se dividiram internamente entre
produtores não-proprietários e proprietários não-produtores.
Quando uma sociedade está dividida em
classes, isto significa dizer que uns exploram outros. E para que a exploração
se converta em parte normal da vida cotidiana, é preciso que haja “argumentos”
fortes: o controle das armas e o controle das
mentes, sendo que este último inclui a inexistência (ou
desconhecimento) de alternativa melhor.
Ao longo de séculos, as diferentes
classes dominantes desenvolveram mecanismos, instrumentos, discursos, hábitos
voltados a converter a exploração e a dominação em parte do cotidiano. O
“estado normal” seria a divisão entre ricos e pobres, senhores e escravos...
Deste processo milenar surgiu o
que hoje chamamos de Estado, uma instituição construída pela
luta entre as classes sociais, uma instituição que foi pouco a pouco assumindo
um duplo propósito:
a) impedir que os conflitos inerentes a
uma sociedade dividida por interesses antagônicos paralisem esta sociedade;
b) ao fazer funcionar uma sociedade
dividida em classes, perpetuar esta divisão em benefício dos interesses
essenciais da respectiva classe dominante.
Há tantos Estados quanto há sociedades.
Podemos, para fins didáticos, falar
em Estado escravista, Estado feudal e Estado
capitalista. Mas é preciso ter claro que estas palavras expressam algo
tão óbvio quanto saber qual a cor do cavalo branco de Napoleão. Ou seja: qual
ordem social é protegida pelo respectivo Estado.
Mais importante do que isto é saber como
a classe dominante faz, em cada sociedade concreta, para impedir que os
conflitos inerentes a uma sociedade dividida por interesses antagônicos
paralisem esta sociedade; como ela faz, portanto, para perpetuar a
divisão em benefício dos interesses essenciais da
respectiva classe dominante.
A resposta é intuitiva: através
da cooperação e da subordinação.
Utilizando outras palavras: através do convencimento e
da dominação. Ou ainda: através das palavras e
das armas.
Como por definição os dominantes sempre
são em menor número que os dominados, a forma “normal” de fazer uma sociedade
funcionar precisa estar baseada no convencimento. Pelo menos as pessoas
têm que achar que assim é.
Para usar outros termos, a forma
“normal” de fazer uma sociedade funcionar tem que estar baseada no consentimento,
na hegemonia, no convencer as maiorias a seguir as opiniões das
minorias.
O uso da subordinação explícita, da
dominação, da repressão militar, não pode ser a forma permanente. Se fosse
isto, a sociedade viveria eternamente em guerra civil, o que por sua vez
perturbaria os interesses fundamentais da classe dominante.
Porém, nos momentos de crise, nos
momentos em que podem ocorrer mudanças profundas, o que decide o conflito é a
força bruta. Por isto, aliás, falamos de classe dominante:
aquela que dispõe dos meios para dominar.
Mas se queremos entender como uma
classe dominante prevalece por tanto tempo sobre um número incrivelmente maior
de dominados, mais importante do que saber como funcionam as forças armadas e a
segurança pública, é entender os mecanismos pelos quais a classe dominante consegue
que uma maioria de explorados coopere, aceite, tolere sua própria exploração.
Ou seja: mais importante que saber como
uma classe domina, é saber como ela dirige uma sociedade.
Aqui se faz necessário compreender a
força do hábito (“sempre foi e sempre será assim”), o papel do racismo
(“naturalizando” a inferioridade de um setor social frente a outro), o papel
das religiões oficiais (definindo hierarquias e estimulando o conformismo), o
papel da cooptação (confrontar africanos escravizados contra indígenas, brancos
pobres contra escravizados negros, trabalhadores locais contra migrantes,
trabalhadores homens contra mulheres etc.), o papel do medo (inclusive o medo
da fome).
Estes e outros mecanismos vão se
tornando mais sofisticados e poderosos, à medida que o tempo vai passando.
Basta pensar no que era o Estado
escravista e compará-lo com o Estado capitalista, ou pensar no Estado existente
no Brasil da colônia e o Estado existente hoje.
Por qual motivo o Estado foi se
tornando mais sofisticado e poderoso, seja no que diz respeito aos mecanismos
de convencimento, seja no que diz respeito aos mecanismos de dominação?
Entre outros motivos porque a sociedade
se tornou mais complexa, tornando cada vez mais difícil impedir que
os conflitos inerentes a uma sociedade dividida por interesses antagônicos
paralisem esta sociedade.
Evitar que a sociedade capitalista seja
paralisada pelas crises do próprio capitalismo exige cada vez mais Estado,
mesmo que este Estado sirva essencialmente para cobrar tributos e transferir
recursos para o capital financeiro.
Acontece que a ampliação do
Estado -- ampliação indispensável para que ele possa cumprir o papel de
estabilizar o funcionamento de uma sociedade cada vez mais conflitiva -- é em
si mesmo um processo potencialmente conflitante com o objetivo de beneficiar
os interesses essenciais da respectiva classe dominante.
De maneira geral, o Estado capitalista
é mais “ampliado” que o Estado feudal e o Estado escravista. Também de maneira
geral, o Estado capitalista no século 21 é mais ampliado do que o Estado
capitalista no século 19.
Parte desta ampliação implica em um
grande número de funcionários públicos, que não têm origem na classe dominante.
O que introduz contradições. Basta pensar na diferença de comportamento entre
as cavalarias formadas por nobres, as tropas formadas por mercenários e os
exércitos formados por alistamento.
Outra parte da ampliação do Estado
consiste em dar a outras classes sociais os meios de interferir em algumas
decisões do Estado, por exemplo: elegendo presidentes, parlamentares e juízes.
Óbvio que este tipo de ampliação introduz contradições no papel do próprio
Estado.
A ampliação do Estado deixa cada vez
mais clara a diferença entre duas dimensões da ação estatal: aquela destinada a
fazer funcionar a sociedade (por exemplo o SUS, a educação pública, o controle
de trânsito) e aquela destinada a preservar os interesses da classe dominante
(as forças armadas, as polícias, o judiciário).
A ampliação do Estado não apenas deixa cada
vez mais claras aquelas duas dimensões, como reforça potencialmente a
contradição entre elas.
Esta contradição se manifesta de
maneira mais aguda nos períodos de crise e/ou de baixo crescimento econômico.
Nestes períodos, os recursos são
escassos e a luta por eles é maior. Por exemplo: mais impostos ou menos
impostos? Impostos para pagar juros ou para financiar políticas sociais?
Esta contradição potencial se manifesta
também quando o eleitorado dá vitória a governos e parlamentos contrários, em
maior ou menor medida, ao status quo.
Quando isto acontece, fica claro o
limite da democracia.
Esta palavra tem um significado muito
forte para a maioria das pessoas, significado sempre carregado de significados
positivos. Democracia seria o governo da maioria, portanto o oposto de uma
ditadura.
Mas quando observamos ao longo da
história, veremos que nem sempre foi assim. Na origem, aliás, democracia
era o governo dos homens proprietários de escravos. E
durante muito tempo, não se exigia de um governo democrático que fosse democrático
para todos, pois durante parte do século 19 e 20, o “povo cidadão” não incluía
todos os habitantes adultos.
à medida que a luta da classe
trabalhadora foi conquistando o direito de votar e ser votado para todos os
adultos, homens e mulheres, independente de raça, religião e propriedade, a
classe dos capitalistas foi agindo para impedir que este direito universal de
voto afetasse seus interesses fundamentais.
Esta ação dos capitalistas consiste,
por exemplo, em desestimular a participação política, criar dificuldades para o
registro eleitoral, corromper o processo através do dinheiro e da mídia,
cooptar os partidos e os eleitos de esquerda, sabotar os governos de orientação
popular e, no limite, praticar magnicídios e golpes de Estado.
Ou seja: a democracia existente no
capitalismo é plenamente democrática apenas para uma parte da sociedade. Para a
classe dominante, existe muita democracia. Para a classe dominada, existe pouca
democracia. O que, especialmente nos momentos de crise, pode ser dito assim: em
alguns momentos e para alguns setores sociais, a democracia capitalista não
passa de uma ditadura dos capitalistas.
Esta constatação traz muitas
implicações para a ação política dos partidos vinculados à classe trabalhadora.
A principal implicação é a seguinte: os
partidos ligados aos capitalistas não lutam pelo poder, pois eles já o possuem.
Os partidos capitalistas são
instrumentos para ajudar na gestão dos negócios do Estado, um dos instrumentos
para selecionar o pessoal que vai gerir a máquina estatal. E nem sempre são o
instrumento principal. Na história do Brasil, por exemplo, as forças armadas e
as grandes empresas de comunicação já demonstraram ter, em algumas situações,
maior importância do que os partidos.
Já os partidos ligados à classe
trabalhadora estão diante de uma disjuntiva.
Podem ser um instrumento para ajudar
a classe trabalhadora a participar da gestão da máquina do Estado; ou
podem ser um instrumento para ajudar a classe trabalhadora a se converter
em poder de Estado.
Claro que na luta cotidiana, não há
contradição absoluta entre estes dois objetivos.
Quem luta contra o capitalismo pode e
deve, também, lutar por melhorar a vida aqui e agora, inclusive os
salários, as condições de trabalho. Assim como pode e deve lutar por
reformas democráticas, ou democrático-burguesas (agrária, urbana, política,
sanitária, educacional, tributária). Mas também pode e deve lutar pelo fim
do capitalismo, o que conduz a lutar por reformas mais profundas,
democrático-populares e socialistas (que incluem a supremacia popular sobre o
Estado, a supremacia das empresas estatais nas áreas econômicas estratégicas, a
orientação do Estado sobre o mercado e sobre o conjunto do desenvolvimento
econômico e social, a hegemonia da orientação democrático-popular na educação,
saúde e outros serviços e questões sociais).
Mas embora possa ser assim, embora
aquelas duas dimensões possam ser combinadas -- ajudar a classe trabalhadora a
participar da gestão da máquina do Estado e ajudar a classe trabalhadora a se
converter em poder de Estado -- existe sempre uma contradição potencial
entre os dois objetivos (governo e poder), pois no limite eles podem
corresponder a metas diferentes: reforma ou revolução, capitalismo ou
socialismo. E os caminhos que levam a uma e a outra meta não são exatamente os
mesmos, fato que fica claro no dia-a-dia, mas principalmente nos momentos de
crise aguda da sociedade.
No caso da política, por exemplo, aqueles
que têm como objetivo final lutar por reformar o capitalismo tendem a se
integrar aos mecanismos do Estado.
As eleições se convertem no seu
objetivo principal, seus partidos passam a ser financiados da mesma forma que
os partidos burgueses, a vida interna de suas organizações vai ficando cada vez
mais tradicional e – principal alteração, pois está na base das demais— seu
programa de transformações é influenciado cada vez mais pelos capitalistas e
seus interesses.
Claro, se considerar ou se afirmar “revolucionário”
não impede que aconteça o mesmo. Há muitas organizações e partidos que se
proclamam revolucionárias, comunistas, socialistas, mas seu comportamento
prático é igual e às vezes pior que o de partidos que se assumem como
reformistas.
Como sempre, não se deve nunca medir
ninguém, partido ou pessoa, pelo que ela diz ou acha de si mesma. A prática é o
critério da verdade. E em muitos casos, só no longo prazo se pode medir a
correção ou erro de uma determinada linha política.
Por isto o debate estratégico é tão
importante.
Estratégia em debate
Entre os que valorizam as
experiências dos governos progressistas e de esquerda iniciada em 1998,
existem diferentes pontos de vista, que dizem respeito não apenas às
estratégias passadas, mas também à qual deva ser a estratégia no período em que
estamos e futuramente.
Estas diferentes visões às vezes são
expressas num mesmo vocabulário (as pessoas concordam quanto ao significado das
categorias, conceitos e termos, mas discordam no mérito), outras vezes são
expressas através de vocabulários distintos, em que uma mesma palavra ganha
significados distintos ou simplesmente não é adotada.
Neste texto entendemos “estratégia” com
base no significado originalmente militar da palavra, a saber: o
conjunto de ações que tem como propósito ganhar uma guerra.
Uma guerra é composta de várias
batalhas. O conjunto de ações que tem como propósito ganhar uma batalha é o que
denominamos de tática.
O termo estratégia exige, portanto, uma
definição preliminar: de que “guerra” estamos falando?
Responder a esta questão implica em
definir inimigos, aliados e objetivos estratégicos.
No nosso caso, a “guerra” de que
falamos é a luta entre a classe dos trabalhadores assalariados e a classe dos
empresários capitalistas.
É legítimo falar de “guerra”, não tanto
para destacar o caráter violento da luta, mas principalmente para acentuar o
componente de dominação envolvido no processo e, portanto, para
deixar claro que se pretende alterar a relação fundamental entre as partes em
luta.
Embora capitalistas e assalariados
existam há mais tempo, foi nos séculos 19 e 20 que foi predominando, no
interior de cada país e no conjunto do mundo, um tipo de sociedade baseado nas
relações de produção entre aquelas duas classes.
Hoje o chamado capitalismo é dominante,
em escala local e global.
Evidentemente, nem o capitalismo é
determinado apenas pela relação entre capitalistas e assalariados; nem os
destinos de cada sociedade e do mundo são determinados apenas pelos rumos do
capitalismo.
Mas ambos os fenômenos (capitalismo,
luta de classes entre capitalistas e trabalhadores) são variáveis fundamentais
para compreender o conjunto dos conflitos sociais dentro de cada país e o
conjunto dos conflitos internacionais.
Por isto escolhemos falar de uma classe
determinada, ao invés de adotar expressões como “o povo”, “os explorados”, “os
oprimidos” ou “os excluídos”.
Tais categorias genéricas expressam
fenômenos reais e tem utilidade analítica e na retórica política, mas não são
adequadas para precisar o conteúdo das definições estratégicas mais gerais.
Portanto, estratégia é o
conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados desenvolve para
ganhar a guerra que trava contra a classe dos capitalistas.
A classe dos trabalhadores assalariados
não é homogênea: sua formação (no duplo sentido: sua
história e sua composição) varia de região para
região, e varia de época para época.
Em cada momento dado, há ao mesmo tempo
diferentes classes trabalhadoras assalariadas convivendo, assim como diferentes
frações da classe trabalhadora assalariada convivendo.
Isto pode ser nítido em âmbito
internacional (os trabalhadores assalariados do Brasil vis a vis os
trabalhadores assalariados de outros países); mas também ocorre em plano
nacional, o que nem sempre é devidamente considerado.
A saber: a classe trabalhadora
assalariada brasileira possui diferentes “frações” internas, em função de
fatores “objetivos” como a região, a idade, o sexo, o ramo de atividade; e em
função de fatores “subjetivos” como a experiência adquirida na própria luta de
classe.
Na prática, isto significa que quando
nos referimos à “estratégia da classe dos trabalhadores assalariados”, estamos
nos referindo à estratégia que defendemos deva ser assumida e praticada por
esta classe, mas que nunca é a estratégia de todos os integrantes da classe,
pois sempre haverá diferenças no interior da classe que resultarão em
diferentes posições políticas, portanto diferentes estratégias.
A mais geral destas diferenças
políticas existentes no interior da classe dos trabalhadores assalariados
consiste no seguinte: em todo momento, o conjunto da classe está submetida à
exploração, mas apenas uma parte da classe reage coletivamente a isto.
Quando ocorre, a reação coletiva pode
ter dois propósitos fundamentais: o de melhorar as condições de vida da classe,
nos marcos do capitalismo; e/ou o de “mudar de vida”, superando o capitalismo.
Ambos os propósitos (“melhorar a vida”
ou “mudar de vida”) exigem enfrentar o capitalismo. Os dois propósitos podem
ser apresentados sob a forma de raciocínios estratégicos, que historicamente
foram denominados como “estratégia reformista” e “estratégia revolucionária”.
Neste caso, a denominação --
“reformista”, “revolucionário” -- diz respeito ao objetivo final que
se persegue, não aos caminhos utilizados.
É por isto que – na prática histórica –
vemos pessoas que se definem como revolucionárias dedicando a maior parte do
seu tempo militante à educação política, à luta sindical, à atividade
parlamentar ou governamental.
E vemos, também, pessoas que se definem
como reformistas envolvidas em guerrilhas, guerras de libertação nacional e
outros tipos de mobilizações sociais e politicas extremamente radicais.
Há, no interior da classe trabalhadora,
vários pontos de vista, vários objetivos estratégicos, portanto várias
estratégias.
Estas estratégicas desdobram-se, em
alguns casos, em alianças com outras classes. Por exemplo, alianças
estratégicas com setores que mantém conflitos com o capitalismo, como é o caso
dos trabalhadores que são pequenos proprietários, urbanos ou rurais, entre os
quais também há quem se proponha enfrentar o capitalismo, seja para
conviver com ele em melhores condições, seja para superá-lo.
Em tese, estas variadas estratégias
podem ser concorrentes, mas não precisam ser inimigas, uma vez são estratégias
adotadas por diferentes frações da classe dos trabalhadores assalariados.
Na prática, entretanto, ocorrem
situações em que o conflito entre diferentes estratégias transforma-se num
conflito frontal. É o caso, por exemplo, quando determinada estratégia conduz a
alianças estratégicas com a classe dominante.
Componentes de uma estratégia
Sendo estratégia o nome que damos
para o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados
deve desenvolver para superar o capitalismo, então estas ações podem
ser definidas como basicamente três: estudar, organizar e lutar.
O “estudar” significa fundamentalmente
compreender o funcionamento do capitalismo e o
que entendemos por superar o capitalismo.
Consideramos que este é um aspecto
fundamental do debate estratégico.
A superação do capitalismo exige uma
reorganização social profunda, tornando possível que aqueles que
produzem a riqueza social decidam como produzir, o que produzir e como
distribuir esta riqueza social. É isto que entendemos por socialismo e,
portanto, quando nos referimos a superar o capitalismo estamos falando de
construir o socialismo.
Aceita esta premissa, então estratégia
é o nome que damos para o conjunto de ações que a classe dos
trabalhadores assalariados deve desenvolver para construir o socialismo.
Fica clara, nesta definição, que existe
uma distinção formal entre o objetivo final (construir
o socialismo) e a estratégia propriamente dita (o
conjunto de ações).
Falamos de distinção formal, porque
evidentemente há uma relação entre meios e fins.
No que diz respeito ao objetivo final,
ele pode ser entendido de duas maneiras diferentes: 1) “construir o socialismo”
como dar início à construção do socialismo; 2) “construir o
socialismo” como construir uma sociedade socialista plena,
portanto, superar completamente o capitalismo.
Esta distinção pode ser apresentada de
duas maneiras, nos seguintes termos: 1) transição ao socialismo e socialismo
pleno; 2) transição socialista e comunismo.
Pensar a estratégia tendo como objetivo
final uma sociedade socialista plena (aquilo que Marx e Engels denominavam comunismo)
nos colocaria diante do seguinte desafio: imaginar um processo em escala
mundial, com a duração de várias décadas ou séculos.
Como isto seria tão genérico quanto não
operacional, preferimos pensar a estratégia como uma conduta que tem como
objetivo iniciar a construção do socialismo (ou, noutros
termos, iniciar a transição socialista).
Portanto, entendemos por
estratégia o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores
assalariados deve desenvolver para iniciar a construção do socialismo.
Ou, dito de outra forma: para poder dar início à transição socialista.
O que significa “construção do
socialismo”?
Alguns compreendem que a construção do
socialismo começa quando um trabalhador adere à sua organização coletiva de
classe, quando a classe trabalhadora cria e fortalece estas organizações,
quando a classe trabalhadora consegue vitórias concretas na luta contra os
capitalistas, vitórias que podem ser econômicas, políticas, sociais,
ideológicas, no plano nacional, regional ou mundial.
Outros compreendem que a construção do
socialismo supõe não apenas estas atitudes e conquistas parciais, nos marcos do
domínio capitalista, mas também alterações mais profundas, que só são possíveis
quando parcelas fundamentais da vida social passem a ser controladas pela
classe trabalhadora. O que supõe, em maior ou menor medida, que a classe
trabalhadora detenha um poder econômico e político equivalente ao que hoje
constitui monopólio da classe capitalista.
A rigor, a diferença fundamental entre
estas duas abordagens reside em como enxergam o tema do chamado poder
de Estado. O que implica discutir a força política relativa entre as
classes sociais.
O poder é uma relação de força,
portanto nenhuma classe ou setor de classe detém todo o poder. Mas na maior
parte do tempo, na maior parte das sociedades, o poder é distribuído de maneira
desigual entre os diferentes setores sociais.
Por isto é correto afirmar que o
poder de Estado está com as classes ou setores de classe que controlam
um conjunto de mecanismos (produtivos, militares, comunicacionais,
legislativos, executivos, nacionais e internacionais) que permitem a estes
setores manter e/ou definir o rumo geral de funcionamento de uma dada
sociedade.
Por exemplo: no Brasil, no dia 18 de
agosto de 2016, a classe dos capitalistas controla direta ou indiretamente o
governo federal, a maior parte dos governos estaduais e municipais, a maioria
dos parlamentos em todos os níveis, a maior parte do judiciário, a maior parte
das polícias e forças armadas, a maior parte das empresas privadas e também das
empresas estatais, a maior parte dos meios de comunicação, da indústria
cultural e educacional, bem como das igrejas.
Para construir o socialismo, a classe
trabalhadora necessita do poder necessário para alterar o funcionamento da
sociedade. Isto supõe ampliar o poder da classe trabalhadora e reduzir o poder
da classe dos capitalistas. Neste processo de ampliação/redução, há um momento
fundamental: quando os trabalhadores adquirem poder suficiente para manter e/ou
definir o rumo geral de funcionamento de uma sociedade. Quando chegamos neste
momento, falamos que a classe trabalhadora passou a deter o “poder de Estado”.
Por isto, ter o “poder de Estado” é um
indicador fundamental, uma preliminar para a construção do
socialismo.
Por isto, podemos definir estratégia
como o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados
deve desenvolver para ter o poder de Estado e assim poder iniciar a construção
do socialismo.
Esta definição permite compreender (no
sentido de “incluir no contexto” e “dar significado”) o conjunto de ações que a
classe dos trabalhadores assalariados desenvolveu, nos diferentes países do mundo,
ao longo dos séculos 19 e 20, bem como ao longo dos primeiros 16 anos do
terceiro milênio, para construir suas condições de
poder (o que pode incluir tanto auto-organização quanto ocupação de espaços no
Estado) e/ou para conquistar o poder revolucionariamente
(organizando-se para derrotar o Estado vigente e construir outro), assim como
as várias situações híbridas e intermediárias de que a história está feita.
Aqui vale retomar um assunto que
provoca seguidas confusões: o duplo sentido com o qual se utiliza, no debate
estratégico, os termos “reformista” e “revolucionário”.
Já dissemos antes que estes termos
podem ser utilizados para definir o objetivo final (“melhorar a vida” ou “mudar
de vida”, capitalismo ou socialismo).
Já dissemos, também, que na prática
histórica os que buscaram estes diferentes objetivos muitas vezes trilharam os
mesmos caminhos e utilizaram os mesmos métodos.
Portanto, tivemos revolucionários
extremamente moderados e reformistas extremamente radicais no
que diz respeito às formas de luta.
Ocorre que os termos “reformista” e
“revolucionário” também são utilizados para designar diferentes formas de
conquistar o poder de Estado.
Neste caso, chama-se geralmente de
“reformista” quem defende conquistar o poder de Estado, ocupando espaços no seu
interior (por exemplo, disputando eleições, mas também organizando a classe
trabalhadora e seus aliados para pressionar e obter conquistas frente ao Estado
capitalista).
E chama-se geralmente de
“revolucionário” quem, participando ou não das eleições e das lutas cotidianas
da classe, considera que o “problema do poder” só será resolvido através da
destruição do Estado burguês e sua substituição por outro de natureza distinta.
Devido a este duplo sentido, há
correntes políticas e ideológicas que se consideram como “reformistas
revolucionárias”, ou seja, defendem que lutemos através de meios reformistas
para atingir um objetivo revolucionário.
Vejamos a seguir qual a implicação – na
estratégia -- das diferentes visões acerca de como lidar com o poder de Estado.
Já dissemos que estratégia é o
conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver
para ter o poder de Estado e poder assim iniciar a construção do socialismo.
Nesta definição, ter o poder de Estado
é uma preliminar. Como fazer isto é a questão a ser
respondida.
Para os que adotam uma resposta
“reformista”, o como resulta da acumulação progressiva de
forças, que num determinado momento resultará em que a classe trabalhadora
detenha mais poder que a classe capitalista.
Não há, nesta visão “reformista” acerca
do processo de como chegar ao poder de Estado, um momento fundamental,
transcendental, um ponto de ruptura.
Podem até existir vários momentos de
embates profundos, de recuos e de avanços; mas o que predomina é a noção do
acúmulo progressivo.
Para os que adotam uma resposta
“revolucionária”, a acumulação de forças inclui dois momentos combinados, porém
qualitativamente distintos.
Um deles é o de acúmulo progressivo de
forças; mas quanto este acúmulo de forças chega próximo de dotar a classe
trabalhadora do poder de Estado, inaugura-se um novo momento, uma nova etapa: ou
bem a classe trabalhadora conquista o “poder de Estado”, ou bem ocorrerá um
retrocesso na acumulação de forças.
Nesta visão “revolucionária” acerca do
processo de como chegar ao poder de Estado, a conquista do poder não resulta de
um acúmulo “gradual”, mas sim de um salto, de uma ruptura, de uma mudança
qualitativa.
Destas duas respostas decorrem
diferentes implicações práticas e também conceituais.
Para os “revolucionários”, a estratégia
deve responder a duas questões: quais as maneiras de acumular forças e quais
as maneiras de conquistar o poder.
Já para os “reformistas”, a estratégia
deve responder a uma única questão, pois a maneira de acumular forças também é
a maneira pela qual se consegue ter o poder.
Em alguns textos debatidos pelo Partido
dos Trabalhadores nos anos 1980, isto era apresentado da seguinte forma: para
os revolucionários, o poder deve ser construído, mas também deve ser conquistado.
Já para os reformistas, o poder apenas se constrói (não existindo um momento
especial onde se “toma” o poder, quando se “assalta o Palácio de Inverno” – uma
frase sobre a qual já se disse muita besteira, tanto pró quanto contra).
Ao longo dos últimos duzentos anos, em
diferentes países do mundo a classe trabalhadora construiu uma “modalidade”
reformista e três “modalidades” revolucionárias para tentar resolver o problema
do poder.
A modalidade reformista foi uma
combinação entre a organização da classe (sindicatos, partidos, organizações
populares diversas, e suas respectivas alianças) e a conquista de espaços
institucionais (executivos, legislativos, democratização de outros aparatos de
Estado).
Em nenhum país esta modalidade reformista
de lidar com o problema do poder “resultou na”/”permitiu a” construção do
socialismo. Porém, em diversos países esta modalidade reformista resultou
na/permitiu a construção de melhores condições de vida nos marcos do
capitalismo.
Vale lembrar, entretanto, que a classe
dominante destes países citados no parágrafo anterior geralmente se beneficiava
da exploração imperialista sobre outros povos, o que permitiu/facilitou
concessões à sua própria classe trabalhadora.
Donde resulta um questionamento acerca
de como se combinaram -- para viabilizar a melhoria citada nas condições de
vida nos marcos do capitalismo -- a luta por reformas e a “gordura” disponível
para a classe dominante graças à exploração imperialista.
Já as três modalidades revolucionárias
foram: a insurreição urbana, a guerra (guerra
de guerrilhas, guerra popular prolongada, guerra de libertação nacional, guerra
de ocupação) e a “via chilena para o socialismo”.
Exceto o caso da Revolução Russa de
1917, todas as demais experiências de construção do socialismo tiveram início
na conquista do poder através de guerras. E mesmo a experiência de 1917 ocorreu
em meio a uma guerra mundial e incluiu, depois da revolução, uma sangrenta
guerra civil. Fatos que marcaram profundamente as características das
respectivas tentativas de construção do socialismo.
É importante, por outro lado, notar que
a “via chilena” para o socialismo não resultou na construção do socialismo em
nenhum dos países em que foi tentada.
A “via chilena” para o socialismo
A “via chilena”, como o nome sugere,
foi elaborada e experimentada no Chile, especialmente no período de governo da
Unidade Popular (1970-1973).
Deixemos de lado as características
especificamente chilenas e nos concentremos no que é proposto por esta
modalidade estratégica, enquanto solução para o problema do poder: a ideia
central é utilizar os mecanismos de construção do poder (modalidade
“reformista”), para possibilitar a conquista do poder (modalidade
“revolucionária”).
Dito de outra forma, fazer da disputa
e da conquista eleitoral de governos uma parte fundamental da disputa e da
conquista do poder.
Os defensores da “via chilena”
pretendiam, desta forma, resolver um problema que provavelmente angustiou e
segue angustiando muitos dos que se pretendem revolucionários: como agir, do
ponto de vista estratégico, em sociedades ou em momentos históricos em que não
estão ocorrendo, nem estão no horizonte visível, processos revolucionários,
crises revolucionárias, revoluções.
A “via chilena” oferecia, em tese, a
seguinte resposta: utilizar a maioria eleitoral para viabilizar uma presença
nos governos, governos que protagonizariam mudanças tanto de ordem
econômico-social quanto de ordem política, mudanças que ao fim e ao cabo
alterariam a natureza capitalista do Estado e da sociedade.
Obviamente, os defensores da “via
chilena” tinham consciência de que a implementação desta estratégia provocaria
uma reação por parte dos capitalistas: a oposição, a sabotagem e no limite o
golpe de Estado.
Portanto, uma questão implícita era
como criar as condições para que esta reação não tivesse êxito.
Uma primeira resposta era obter
maiorias eleitorais, que permitisse controlar os órgãos executivos e
legislativos, a partir dos quais se promoveria a democratização dos demais
órgãos de Estado e/ou a convocação de processos constituintes, que no limite
permitiriam substituir, a partir de processos eleitorais, o Estado capitalista
por um Estado popular.
Uma segunda resposta era neutralizar os
instrumentos que a classe capitalista utiliza para fazer oposição, sabotar e
dar golpes: o controle da economia, o controle dos meios de comunicação e o
controle das forças armadas. Isto se traduziria na ampliação da presença do
Estado na economia, na quebra do controle capitalista sobre os meios de
comunicação e na submissão das forças armadas ao controle democrático.
Este aspecto teve grande importância no
caso chileno, onde uma parcela da esquerda acreditou que as forças armadas
chilenas seriam fieis a uma suposta tradição legalista e não apoiariam um
golpe. Ilusões semelhantes sobre as forças armadas também estiveram presentes
noutros países, inclusive no Brasil.
O tema das forças armadas teve
particular importância no caso venezuelano.
Lembramos que uma parcela das forças
armadas apoiou um golpe contra o presidente Hugo Chávez, enquanto outra parcela
apoiou a reação popular contra o golpe, forçando os golpistas a recuar e
tornando possível uma reforma na instituição militar, reforma que ajuda a
entender por quais motivos, pelo menos até o momento em que este
texto está sendo escrito, predomine nas forças armadas
venezuelanas o apoio ao governo popular.
Tanto no caso venezuelano quanto no
chileno, entretanto, a sabotagem econômica foi fundamental para o êxito
(parcial ou total) da reação capitalista. O que remete para uma complexa
discussão sobre a relação entre economia nacional e internacional, Estado e
mercado, discussão que também se faz necessária quando analisamos as
experiências de construção do socialismo no século 20.
Uma terceira resposta a como criar as
condições para que a reação capitalista não tenha êxito consiste em defender a
construção de um “poder popular” paralelo ao poder de Estado e/ou complementar
ao governo popular.
É importante perceber que todas as
respostas citadas têm, entre seus efeitos, o de acelerar a
reação capitalista. Fato que nos remete para uma das principais dificuldades
"práticas" da “via chilena”: o tempo.
Numa guerra ou numa insurreição, a
classe capitalista tende a perder completamente, ou quase, seus instrumentos de
poder. Já na “via chilena”, a classe capitalista mantém parte importante, maior
ou menor, de seus instrumentos de poder. E utiliza estes instrumentos para
fazer oposição, sabotagem e no limite promover golpes.
A questão, portanto, é saber se os
instrumentos que a classe trabalhadora vai conquistando, adquirindo e
construindo através da combinação entre eleições e auto-organização serão
capazes de deter a oposição, a sabotagem e o golpe.
Trata-se de uma “corrida contra o
tempo”, que assume a forma de uma disputa política e ideológica – geralmente
denominada de “disputa de hegemonia” e/ou de "guerra de posições"--
muito mais complexa do que a existente nos processos de guerra e de
insurreição.
As noções de "guerra de
posições" e de "guerra de movimentos" remetem a formas
diferentes de travar o combate militar entre dois exércitos. Neste âmbito, a
guerra de movimentos se expressa, por exemplo, nos ataques velozes da cavalaria
(animal ou blindada). Já a guerra de posições teve sua expressão típica nas
trincheiras e casamatas, com longas esperas e avanços lentos.
Guerra de posições conduz à "disputa
de hegemonia" – termo muito utilizado por Antonio Gramsci e, antes dele,
já utilizado pelos revolucionários russos no final do século 19, início do século
20.
Disputa de hegemonia corresponde a uma
atitude presente em todas as “modalidades” utilizadas pela classe trabalhadora,
ao longo dos últimos 200 anos, para tentar resolver o problema do poder.
A disputa de hegemonia não acontece
apenas nos momentos “pacíficos”, mas também nas guerras e nas insurreições, que
são expressões concentradas da luta política. Portanto, nelas também ocorre a
disputa de hegemonia, que aqui tem o sentido de influência, convencimento,
“quem dirige quem”.
Claro que quando a luta de classe chega
ao estágio da “batalha final” pelo poder de Estado, a busca do “convencimento”
tende a tornar-se secundária frente ao confronto direto de forças.
Portanto, o tema da disputa de
hegemonia tem maior relevância nos momentos de acúmulo de forças “pacífico”, momentos
prévios à “tomada do poder” ou posteriores a ele, neste segundo caso como parte
da consolidação de uma nova ordem política e social.
Por decorrência, a modalidade
"reformista" para tentar resolver o tema do poder (ou seja, aquilo
que estamos chamando aqui de “via chilena”), modalidade que pode ser
apresentada como um processo mais ou menos contínuo de acúmulo de forças, é
aquela onde o tema da disputa de hegemonia tem mais importância.
O ambiente em que as estratégias operam
Ao longo deste texto, o termo
estratégia foi utilizado em um duplo sentido: como uma formulação
teórica e como uma prática social.
A estratégia como prática social
designa o sentido geral da ação implementada -- durante longos períodos de
tempo -- pelas diferentes forças sociais e políticas. Não apenas o discurso que
produzem, mas o conjunto de atos que cometem.
De forma análoga, a tática como prática
social designa o sentido geral da ação implementada durante períodos de tempo
mais curtos.
Já quando falamos de estratégia enquanto
formulação teórica, estamos nos referindo ao “plano de ação” formulado pelos
dirigentes das diferentes forças políticas e sociais.
Todos conhecem a piada: ao ouvir as
detalhadas orientações do técnico de futebol, orientações que sempre terminavam
com drible e bola na rede,
o craque perguntou se o técnico havia combinado tudo aquilo com os adversários.
Como na piada, sempre tende a haver
alguma diferença entre o projeto e a ação real. Esta diferença pode ter várias
causas, mas a principal delas é que a ação real se desenvolve em combate com
outras forças sociais e políticas, portanto em choque com outras estratégias,
das quais surge uma resultante que sempre tende a diferir das intenções e
propósitos originais.
Falando em tese, a melhor estratégia é
aquela que considera – nas suas formulações e projeções – as potenciais
decorrências do choque com as demais forças políticas e sociais.
Por exemplo: o que faria a classe
dominante brasileira, se os governos Lula e Dilma tivessem “êxito”?
Uma das maneiras de tentar prever estas
e outras potenciais decorrências futuras é o estudo da
história, embora esta não se repita nunca, motivo pelo qual os “modelos” tendem
a ser muito enganosos.
Outra das maneiras de considerar estas
potenciais decorrências futuras é tentar detectar quais as tendências mais
gerais de um período. Estas tendências resultam de choques anteriores, que
definem o quadro geral, a superfície, o ambiente em que se travam as batalhas
do presente.
Alguns autores e dirigentes dão a este
contexto estratégico o nome de etapa e consideram que a
análise da etapa define os limites mínimos e máximos que uma estratégia pode
obter.
Por exemplo: num contexto histórico de
bipolaridade entre URSS e EUA, todos os processos nacionais eram levados a
“posicionar-se” em relação aos polos. O que “empurrava” em direção ao
socialismo processos que, em outros contextos, poderiam ter outros
desdobramentos.
Nos dias de hoje, por exemplo, as
variáveis mais gerais podem ser resumidas assim:
a) defensiva estratégica da classe
trabalhadora;
b) hegemonia do capitalismo;
c) crise do capitalismo;
d) declínio da potência hegemônica;
e) ascensão de outros polos de poder
(como os BRICS);
f) disputa entre diferentes vias de
desenvolvimento capitalista;
g) formação de blocos regionais;
g) hegemonia do neoliberalismo em
âmbito regional;
h) disputa entre diferentes modelos de
desenvolvimento nacional e regional;
i) vitórias eleitorais e forte
protagonismo dos governos progressistas até 2006;
j) desde então, crescente
contraofensiva das forças conservadoras.
No âmbito de cada sociedade, as
variáveis estratégicas fundamentais são as classes sociais. Motivo pelo qual há
uma relação entre a “taxa de êxito” de uma estratégia e a correção da análise
das classes e da luta de classes na qual a respectiva estratégia está baseada.
Isto fica claro, por exemplo, quando
falamos das políticas de aliança (lembrando sempre que no fundo das alianças
políticas entre partidos e organizações, estão classes sociais cujos interesses
são expressos por aquelas respectivas organizações e partidos).
Uma terceira maneira de considerar, na
análise estratégica, as potenciais decorrências futuras é
considerar quais as principais estratégias que estão interagindo.
Em cada momento da história, em cada
região do mundo, há várias estratégias operando e em disputa, no plano
nacional, regional e mundial, expressando os interesses de Estados, classes e
frações de classe e seus respectivos instrumentos políticos.
Algumas destas estratégias são mais
influentes do que outras. Desde 1998, por exemplo, podemos citar:
*no plano mundial, as estratégias
operadas pelos Estados Unidos, Alemanha, China e Rússia;
*no plano regional, as estratégias
operadas pelos Estados Unidos, Brasil e Venezuela;
*no plano nacional, as estratégias
operadas, respectivamente, pelo PT e PSDB.
Cada uma destas estratégias
correspondia/corresponde, no plano da luta política, aos interesses de
diferentes setores sociais. Interesses que no plano internacional apresentam-se
com forma e conteúdo distintos: como interesses de diferentes Estados.
Ao levar em consideração a análise
histórica, a análise das variáveis estratégicas e a análise das estratégias em
operação, tentamos reduzir a distância entre o plano e o que vai efetivamente
ocorrer.
A estratégia frente ao neoliberalismo dos anos 1990
Cada país da América Latina e Caribe
tem sua própria história, irredutível e única.
Mas quando consideramos a região como
um todo, especialmente a América do Sul, percebemos a incidência de algumas
características que conformam um ambiente estratégico, ao
mesmo tempo produto da
luta passada e contexto
da luta presente entre as forças sociais e políticas, bem como da luta
entre os Estados.
Estas características podem ser
resumidas assim:
1) toda a região foi, durante vários
séculos, colônia de metrópoles europeias e até hoje mantém uma relação dependente e
subordinada aos principais centros econômicos do mundo;
2) embora tenha assumido diferentes
formas, da escravidão ao assalariamento, o processo de exploração do trabalho
na região sempre foi extremamente intenso, com a decorrente desigualdade social;
3) em decorrência da dependência e da
desigualdade, as diferentes classes dominantes existentes na região a partir da
colonização buscaram sempre restringir ao máximo a
participação política e a auto-organização das classes dominadas;
4) como decorrência das anteriores, o
enfraquecimento da dominação externa ampliava as possibilidades de
desenvolvimento, igualdade e democracia na região, por exemplo no período
1789-1815 (independências) e 1914-1945 (industrialização);
5) portanto, a irredutibilidade das
histórias nacionais combina-se com a existência de “ciclos regionais”, em que
diversos países experimentam processos com características similares, por
exemplo o ciclo populista, o ciclo ditatorial, o ciclo neoliberal e o ciclo de
governos progressistas.
No ambiente estratégico dos anos 1990,
a maioria dos partidos e organizações de esquerda da América Latina e Caribe
foi convergindo na prática e também no plano das formulações para uma
estratégia que consistia -- malgrado profundas diferenças históricas, sociais,
políticas e ideológicas -- em buscar melhorar a vida do povo através
de políticas públicas que seriam implementadas a partir de espaços legislativos
e executivos conquistados através de processos eleitorais.
Tais políticas públicas foram de
diferentes tipos (universais/distributivas ou focalizadas/compensatórias) e
implementadas com diferentes graus de confronto, negociação e aliança com as
“elites” locais e com os “imperialismos”.
Em alguns casos, aquelas políticas
públicas foram precedidas ou acompanhadas de processos constituintes, que
resultaram em reformas importantes e foram acompanhadas de uma retórica
radicalizada, em que a palavra “revolução” era muito utilizada, mesmo que não
tivessem ocorrido de fato revoluções (por exemplo, expropriação
econômica e política da classe dominante).
Noutros casos, aquelas políticas
públicas foram implementadas sem processos constituintes, sem nenhuma tentativa
de reforma nas estruturas políticas, sociais e econômicas, no Estado e na
relação entre as forças sociais, além de acompanhadas de uma retórica que se
jactava de sua “moderação”.
Como sabemos, a classe dominante na
América Latina e Caribe não se importa muito com as diferenças retóricas e
trata igualmente a ferro e fogo, tanto a esquerda que se jacta de sua moderação
quanto de sua radicalidade.
Acontece que, apesar das múltiplas e
importantes diferenças entre o que ocorreu e ocorre em cada país da região,
havia um núcleo comum, o que permite dizer que estávamos diante de variantes
de uma mesma estratégia.
Este núcleo comum consistia, como já
foi dito, na implementação de políticas públicas
a partir de posições conquistadas através de processos eleitorais.
Neste aspecto, esta estratégia e cada
uma de suas variantes eram todas elas profundamente diferentes da estratégia
adotada – para ficarmos só neste exemplo – pelos que dirigiram a Revolução
Cubana de 1959.
No caso cubano tivemos a conquista do
poder (e não do governo), pela luta armada (não pela via eleitoral), a partir
da qual se introduziram não apenas outras políticas públicas, mas sim
transformações estruturais no padrão de desenvolvimento vigente até então em
Cuba, mudanças que incluíram da reforma agrária à transição socialista.
Os protagonistas da estratégia adotada --
especialmente entre 1998 e 2016 -- pela maior parte da esquerda
latino-americana e caribenha talvez não estejam de acordo com esta definição,
mas podemos dizer que a estratégia adotada nesta região e momento histórico constitui
uma modalidade da “via chilena para o socialismo”, ressalvada pelo menos duas
importantes diferenças: primeiro, a situação internacional e as características
da época; segundo, no Chile o tema do socialismo era destacado explicitamente
tanto pelo presidente Salvador Allende quanto pelos principais partidos que
integravam a Unidade Popular.
Sucesso e limites da estratégia
A estratégia de melhorar a
vida do povo através de políticas públicas, que seriam implementadas a partir
dos espaços legislativos e executivos conquistados através de processos
eleitorais atingiu, durante certo tempo, o objetivo central a que
se propunha. A saber: a vida do povo melhorou devido às políticas adotadas
pelos chamados governos progressistas e de esquerda.
Isto ocorreu, em maior ou menor grau,
em diferentes países e governos, nos quais se adotaram diversas variantes
(“carnívoras” ou “vegetarianas”) daquela estratégia comum.
Além do objetivo de melhorar a vida do
povo, objetivo este presente em todas as variantes da estratégia citada, outros
objetivos podem ter sido mais ou menos atingidos (integração regional,
ampliação da democracia, ampliação da propriedade pública, acúmulo de forças em
direção ao socialismo etc.).
Noutros termos: se a história tivesse
tido chegado ao fim em 2010, apesar dos limites e contradições o saldo seria
claramente positivo em favor daquela estratégia.
Entretanto, a partir de um determinado
momento -- que variou de país para país, mas que em todos os casos ocorreu
depois da crise internacional de 2007-2008 --, naqueles países onde foi
aplicada a estratégia de melhorar a vida do povo através de
políticas públicas implementadas a partir dos espaços legislativos e executivos
conquistados através de processos eleitorais passou a ocorrer o
seguinte:
1. A vida do povo passou a melhorar
cada vez menos;
2. A vida do povo passou a melhorar
cada vez mais lentamente;
3. Em seguida, a vida do povo começou a
piorar;
4. Tudo isto aconteceu antes que se
tenha conseguido recuperar os padrões de vida médios existentes antes da onda
neoliberal;
5. Caiu a adesão popular às lideranças,
partidos e governos que implementavam aquelas políticas públicas;
6. O refluxo do apoio popular, somado à
oposição dos que se contrapunham àquelas políticas públicas, alterou a
correlação de forças política nos espaços legislativos e/ou executivos,
possibilitando o regresso das forças políticas e sociais que se opunham àquelas
políticas públicas e à melhoria das condições de vida do povo;
7. O regresso da antiga oposição é
marcado não apenas por um retrocesso social, mas também por um retrocesso
econômico e por um retrocesso político cujos limites e consequências ainda não
estão totalmente claros.
Esgotamento da estratégia ou simples alternância?
Considerando a cronologia dos eventos,
pode ser dito que os chamados governos progressistas e de esquerda não
conseguiram resolver os problemas criados a partir da crise internacional de
2007-2008, especialmente aqueles ligados a deterioração dos preços das commodities,
à dependência financeira e comercial, à força dos oligopólios – especialmente
estrangeiros – vis a vis o enfraquecimento das empresas estatais.
Entretanto, também pode ser dito que a
incapacidade acima referida não é apenas a causa, mas também a consequência de
um conjunto de problemas que já vinham se acumulando (fadiga de material,
limites da estratégia adotada etc.), incluindo nestes problemas políticas
macroeconômicas que mantiveram a predominância do setor agroexportador, o peso
do setor financeiro etc.
A depender de como se compreenda o que
foi descrito nos parágrafos anteriores, a conclusão poderá ser uma das
seguintes: 1) ou bem estamos diante de uma derrota de natureza tática, devido a
causas conjunturais e/ou erros ocasionais; 2) ou bem estamos diante de uma
derrota de natureza estratégica, causada por mudanças nas condições estruturais
nas sociedades e no mundo, bem como por limites insuperáveis da própria
estratégia.
Se estivermos diante de uma derrota
tática (ou seja, de uma derrota eleitoral das esquerdas), não se
faz necessário alterar a estratégia.
Mas se estivermos diante de algo mais
profundo e mais grave do que uma derrota eleitoral e tática, neste caso se
coloca a necessidade de reavaliar a estratégia.
O fato de estarmos diante de algo mais
profundo do que uma derrota eleitoral e tática por si só não
quer dizer que a estratégia adotada antes esteja esgotada, superada, não seja
adequada para o próximo período.
Para chegar a esta conclusão, de que se
faria necessária uma nova estratégia, distinta da adotada até agora, é
necessário levar em consideração não apenas o que ocorreu no período que se
encerra, mas também as características do período que se abre.
Sobre o que ocorreu no período que se
encerra, há um aspecto destacado: em que medida o sucesso da presente onda
reacionária está vinculada aos limites da própria estratégia adotada pela
esquerda?
A este respeito, apontamos a seguir
dois “efeitos colaterais” da própria estratégia, mais exatamente consequências
negativas decorrentes do seu próprio sucesso:
1. Uma estratégia baseada apenas em políticas
públicas tende a produzir efeitos positivos decrescentes
A base das políticas públicas é a
tributação, no capitalismo em que vivemos a tributação depende em última
análise da rentabilidade do setor privado, rentabilidade que tende a diminuir
quando há uma elevação da remuneração do trabalho, elevação da remuneração que
tende a resultar – direta ou indiretamente -- das políticas públicas.
No caso dos países imperialistas, esta
dinâmica pode ser retardada devido à exploração de outras sociedades. Mas as
tentativas feitas pela socialdemocracia na Europa confirmam que mesmo nos
países centrais, o capitalismo suporta por algum tempo, mas não suporta por
muito tempo a ampliação do bem-estar e da democracia.
Lá, assim como na América Latina,
podemos dizer que apenas com políticas públicas, sem reformas que
alterem a correlação de forças no interior do Estado, o padrão de distribuição
da riqueza e o modelo de desenvolvimento, não se torna possível
melhorar a vida do povo de maneira veloz, profunda e permanente;
2. Uma estratégia baseada em maiorias
eleitorais tende, em parte pelos motivos expostos acima, a produzir resultados
eleitorais decrescentes
Devido ao decréscimo na profundidade e
na velocidade das mudanças, a partir de certo momento cresce mais rápido o
descontentamento do que a adesão; neste contexto, a classe dominante tem
maiores chances de organizar a reação, contando para isto com os aparatos de
poder que seguem em suas mãos.
Noutras palavras, uma estratégia que
busca melhorar a vida do povo através de políticas públicas
implementadas a partir dos espaços legislativos e executivos conquistados
através de processos eleitorais, está fortemente arriscada a
perder estes mesmos espaços e, com isso, ver as políticas públicas serem
desmontadas antes que elas produzam efeitos de longa duração.
Como sabemos observando o conjunto das
experiências de governos progressistas latino-americanos, esta dinâmica também
está presente -- embora possa ser retardada -- naqueles casos em que houve
processos constituintes, forte participação popular e democrática no Estado,
e/ou instrumentos estatais de forte intervenção na produção econômica.
É importante perceber que os citados
“efeitos colaterais” da estratégia, consequências negativas decorrentes do seu
próprio sucesso, atingiram e seguem atingindo o conjunto da
esquerda regional.
Seja onde foi adotada uma variante mais
“confrontacionista”, seja onde foi adotada uma variante mais “negociadora”, o
processo desembocou na deterioração das condições políticas, econômicas e
sociais, em parte devido a opções feitas pelos respectivos governos e seus
apoiadores, em parte devido ao fato da classe capitalista seguir controlando os
meios econômicos e políticos, assim como dispondo dos apoios internacionais
necessários para reagir e criar a deterioração citada, que por óbvio não se deu
por combustão espontânea.
Em nenhum momento, é bom lembrar, as
respectivas classes dominantes e seus aliados internacionais abriram mão de
utilizar um conjunto de instrumentos econômicos e políticos para buscar deter e
reverter a melhoria nas condições de vida do povo. A reação adotou variadas
formas, que foram da oposição parlamentar até o golpe de Estado.
Que tenham mantido estes instrumentos
sob seu controle não é um acaso, nem uma concessão indevida, é uma consequência
da própria estratégia adotada, que em nenhuma hipótese previa
a expropriação parcial ou total de setores das classes dominantes.
Note-se que isto vale inclusive para os
casos em que houve reformas constitucionais: o fortalecimento dos instrumentos
populares e democráticos de intervenção econômica e política estatal convivia
com a presença, maior ou menor, dos instrumentos de poder político e econômico
da classe dominante.
Se a análise anterior for correta,
então a explicação fundamental para o êxito da ofensiva reacionária reside na
estratégia. Outros aspectos --como as dificuldades sucessórias -- devem
ser considerados, mas de forma subordinada.
Os países em que ainda existem governos
progressistas não necessariamente terão o mesmo destino daqueles onde a
ofensiva reacionária teve pleno êxito. Porém, aqueles governos progressistas
passam agora a atuar num novo cenário estratégico, tanto nacional quanto
regional.
Já dissemos antes que uma das
principais dificuldades "práticas" da “via chilena” era o fator
tempo.
Pois bem: o fato de vários governos
progressistas terem existido ao mesmo tempo e terem se apoiado uns aos outros
foi um fator importante na extensão temporal destas experiências. Extensão que
poderia ser maior, se a integração tivesse sido mais veloz e mais efetiva.
A medida que a direita avança na
Venezuela, Argentina e Brasil, podemos dizer que estamos diante de uma contraofensiva
reacionária, conformando-se assim um novo ambiente estratégico na
região e dentro de cada um dos países.
A existência de um “eixo do mal” de
governos reacionários e conservadores terá maiores ou menores chances de êxito,
a depender da respectiva situação interna.
Defensiva estratégica
Quais as implicações estratégicas que
podem ser extraídas desta constatação? Entre as várias implicações possíveis,
destacaremos a seguir a "defensiva estratégica".
Um período de defensiva não significa
um período de passividade. Num período de defensiva travam-se grandes lutas, se
obtém vitórias e até avanços.
O que caracteriza um período como sendo
de defensiva é o objetivo dele.
Num período de defensiva, o objetivo
principal é defender as conquistas antigas e recuperar o terreno perdido. Ou
seja: os avanços parciais visam recuperar o status
quo ante, o que já tínhamos e agora perdemos.
A defensiva não dura para sempre. Uma
situação de defensiva pode se converter em uma situação de equilíbrio
(relativo, como qualquer equilíbrio) e este pode se converter numa situação de
ofensiva estratégica.
O que permite a defensiva se converter
em ofensiva é a mudança no estado de ânimo da classe trabalhadora. E esta
mudança ocorre em parte como reação à ação dos inimigos e em parte por ação das
diferentes vanguardas da classe, numa combinação de elementos.
Evidente, se existe o propósito de
criar as condições para sair de uma situação de defensiva, então a ação das
vanguardas deve ajudar a classe trabalhadora a mudar seu estado de ânimo.
Para isto é preciso elaborar e saber
diferenciar as propostas de curto, médio e longo prazo. E para isto é preciso
saber escolher muito bem as batalhas que devem ser travadas em cada momento,
levando em conta (embora invertendo os termos) o ensinamento implícito na
famosa frase: “nem tão devagar que pareça afronta, nem tão depressa que pareça
medo".
E por isto é importante, especialmente quando
estamos na defensiva, ser o mais didático, paciente e correto no debate de
ideias. Pois nos momentos de defensiva, de recuo, de confusão, as forças
inimigas ampliam sua influência também no terreno das ideias.
Nossa ação não decide tudo, mas nossa
ação não é irrelevante. Mais do que isto: nos períodos de ofensiva, quando a
vanguarda erra, as massas passam por cima. Mas num período de defensiva, quando
a vanguarda erra, quem passa por cima de nós são os inimigos.
Por isto é tão importante, num período
de defensiva, acertar. Acertar nas palavras de ordem, acertar nas politicas organizativas,
acertar nos métodos de trabalho etc.
Do ponto de vista organizativo, a
principal batalha é defender nossas organizações. E afirmar o princípio da
unidade da classe, da unidade das forças populares, da unidade do nosso campo
político e social.
Nesta perspectiva, os sindicatos e a
central sindical cumprem papel decisivo, porque são organizações que estão (ou
que deveriam estar, ou que podem estar) em contato direto e cotidiano com a
maior parte da classe trabalhadora.
Também nesta perspectiva, a existência
de uma frente de organizações (movimentos, sindicatos, partidos) como a Frente
Brasil Popular é algo muito importante, porque permite ao mesmo tempo: a) unir
esforços para resistir; b) criar um ambiente de debate comum; c) construir um
instrumento essencial para criar as condições para sair da defensiva.
Não é fácil criar uma frente. Há
divergências ideológicas e políticas, há diferenças de método, há disputas por
protagonismo. Assim, antes de mais nada é preciso entender que estamos diante de
um processo, que não se encerra numa reunião e não se confunde com uma
declaração de intenções.
O que organiza uma frente é um programa
mínimo, uma tática para o período e um “protocolo mínimo” de funcionamento. Já quanto
ao programa máximo e a estratégia, cabe a cada organização decidir.
Qual o programa máximo de um sindicato
e qual o programa máximo de um partido? Qual a estratégia de um sindicato e
qual a estratégia de um partido?
É difícil responder em tese a esta
pergunta. Ou melhor: a resposta em tese é fácil, mas ela não esclarece muita
coisa.
Falando em tese:
a) um sindicato é uma organização de
uma categoria, para organizar a luta pelos objetivos desta parte da classe;
b) uma central sindical pretende
organizar toda a classe. Pode incluir nos seus objetivos a luta pelos
interesses históricos da classe, mas na prática sua luta é pelos objetivos
imediatos do conjunto da classe;
c) um partido político ligado à classe
trabalhadora tem como objetivo organizar pelo menos uma parte da classe, mas para
lutar pelos objetivos históricos do conjunto da classe.
Portanto, falando em tese, o programa
máximo do partido deveria ser mais amplo do que o da central e este deveria ser
mais amplo do que o do sindicato.
Também falando em tese, o objetivo
estratégico de cada organização é diferente.
Um partido que tenha o comunismo ou a
transição socialista como objetivo programático máximo, deve ter a
construção/conquista do poder como objetivo estratégico.
Já a central sindical e o sindicato não
organizam sua ação tendo em vista alcançar estes objetivos programáticos (o
socialismo) e estratégicos (o poder).
Claro, estes podem ser os objetivos dos
dirigentes sindicais, mas não constituem objetivos imediatos ou permanentes do
conjunto da classe ou do conjunto de uma determinada categoria, motivo pelo
qual não podem ser o programa máximo nem o objetivo estratégico da central e do
sindicato.
Neste sentido, quando usamos o termo
estratégia, precisamos saber de qual guerra estamos falando.
Primeiras batalhas de
uma nova guerra
Estratégia é o conjunto de decisões que
tem por objetivo ganhar uma guerra; uma guerra é composta por uma sucessão de
batalhas; tática é o conjunto das decisões que tem por objetivo ganhar a
batalha.
Assim, se a guerra é contra o
capitalismo, o objetivo estratégico é um; se a guerra é contra o
neoliberalismo, o objetivo estratégico é outro; se a guerra é contra o
analfabetismo ou contra o mosquito, os objetivos estratégicos são outros; e
assim por diante.
Falando em tese, no caso dos que lutam
contra o capitalismo a estratégia envolve pelo menos os seguintes elementos: a
caracterização da etapa (internacional e nacional), a definição das
tarefas, a politica de alianças, a via de acúmulo de forças e a via de tomada
do poder.
Tomando como marco o ano de 1989, reafirmemos
os traços principais do cenário internacional: defensiva estratégica da classe
trabalhadora; hegemonia do capitalismo; crise do capitalismo; declínio da
potência hegemônica; ascensão de outros polos de poder; disputa entre vias de
desenvolvimento capitalista; formação de blocos regionais. No âmbito
internacional, a tendência predominante é de instabilidade, crises e conflitos.
Já os traços principais do cenário
regional são: hegemonia econômica do neoliberalismo; disputa entre diferentes
vias de desenvolvimento nacional e regional; vitórias eleitorais e forte
protagonismo dos governos progressistas até 2006; desde então, crescente
contraofensiva das forças reacionárias. Ou seja, também em âmbito regional
estamos entrando num período de defensiva estratégica.
Hoje todos os governos progressistas
estão enfrentando uma contraofensiva reacionária (muitas vezes contra a simples
existência de um governo considerado progressista).
No caso brasileiro, a contraofensiva
envolveu e envolve ações simultâneas da direita partidária, da direita social,
da alta burocracia de Estado, do grande capital e do oligopólio da mídia.
Apesar de diferenças táticas, há um
amplo consenso estratégico entre as forças reacionárias, em torno dos seguintes
objetivos:
a) realinhar o Brasil ao bloco
internacional comandado pelos Estados Unidos (afastando-o tanto dos BRICS
quanto da integração latino-americana);
b) reduzir os níveis de remuneração,
direta e indireta, da classe trabalhadora brasileira (o que inclui desde
alterações na legislação trabalhista até cobrança de serviços públicos,
passando por revisão nas políticas de reajuste do salário mínimo e repressão
aos movimentos sociais reivindicatórios);
c) reduzir o acesso dos setores
populares às liberdades democráticas em particular e aos direitos humanos e
sociais.
Caso a ofensiva reacionária tenha pleno
êxito, não estaríamos apenas de volta aos governos 100% neoliberais de
1994-2002. Nem estaríamos apenas diante do desmanche dos direitos inscritos na
(em geral conservadora) Constituição “Cidadã”. Mais do que isto, sob pelo menos
dois aspectos importantes estaríamos “rumando” em direção a características do
Brasil pré-revolução de 1930: no que diz respeito aos direitos trabalhistas
(vide as ameaças contra a CLT) e no que diz respeito ao lugar do Brasil na
“divisão internacional do trabalho”.
Dadas estas características da situação
internacional, regional e nacional, é que falamos – como já foi explicado antes
-- de defensiva estratégica.
Entramos num período de defensiva
estratégia, que pode ser mais longo ou mais curto, com uma duração que depende
de um conjunto de variáveis, inclusive internacionais.
Portanto, além de debater a necessidade
e o conteúdo de uma nova estratégia, estamos chamados a debater quais as
táticas adequadas para reagrupar forças e retomar a ofensiva.
Temas a debater
A conquista de maiorias eleitorais faz
parte da disputa pelo poder, mas não “resolve” a maior parte do “problema” do
poder.
Em primeiro lugar, porque a classe
dominante -- e seus partidos -- mantêm seus direitos eleitorais e, portanto,
minorias eleitorais mais ou menos expressivas.
Além disso, há elementos de poder que
não sofrem influência direta da disputa eleitoral, tais como a ingerência
externa, o poder econômico, o oligopólio da mídia, o judiciário, as forças de
segurança.
Embora não resolva o problema do poder,
as vitórias eleitorais da esquerda aguçam a disputa pelo poder, tornando mais
violenta a disputa de hegemonia cultural, comunicacional, ideológica, política
e econômica.
Quando as forças reacionárias conseguem
afastar a esquerda do governo (seja pela via eleitoral ou do golpe, seja este
clássico ou jurídico-parlamentar), elas voltam dispostas a reduzir ao mínimo as
possibilidades de que a história se repita.
Inclusive porque as forças reacionárias
aprenderam com as derrotas que sofreram a partir de 1998; e também porque a
situação do capitalismo as empurra a adotar medidas para recompor rapidamente
sua rentabilidade e controle, medidas que só serão politicamente viáveis se
forem acompanhadas de alterações profundas na correlação de forças entre as
classes; o que por sua vez as levará a tentar fechar e colocar ferrolhos nas
“portas” que permitiram à esquerda acessar espaços executivos e legislativos,
para implementar políticas públicas que melhorassem a vida do povo.
Por tudo isso, a ofensiva reacionária
não é apenas eleitoral: ela abre um novo período estratégico, no qual a classe
trabalhadora vive e viverá situações táticas mais difíceis. E no qual será
necessário adotar outra estratégia.
Reconhecer uma derrota estratégica
implica, no caso, em reconhecer que uma estratégia foi derrotada. Mas
reconhecer a necessidade de uma nova estratégia por si não reverte a derrota
estratégica, não altera a correlação de forças.
Noutras palavras, a correlação de
forças atual impede o êxito parcial da antiga estratégia; mas também dificulta
a implementação de outras variantes estratégicas, por exemplo aquelas baseadas
em melhorar a vida do povo através da combinação entre políticas
públicas & reformas estruturais, implementadas a partir da combinação entre
a conquista de espaços legislativos e executivos & a construção de uma
hegemonia popular.
Neste emaranhado de variáveis, o
aspecto ao qual devemos dar atenção principal é o estado de ânimo, consciência,
organização e mobilização das camadas populares, especialmente da classe dos
trabalhadores assalariados.
De maneira geral, faz-se necessário
retomar a análise das classes sociais, de seus interesses de médio e longo
prazo, de como eles se articulam e conflitam entre si, conformando diferentes
padrões de desenvolvimento em âmbito nacional, regional e mundial, diferentes
níveis da realidade que mantém inter-relação.
Além disso, faz-se necessário debater:
1) como travar a disputa pelo "poder econômico"?
2) como disputar a hegemonia ideológica sobre a sociedade?
3) qual a dimensão estratégica da luta contra a corrupção?
4) quais são as indispensáveis reformas democráticas no âmbito econômico, social, cultural e político?
Quando saímos do plano nacional e
passamos a análise do plano regional, a questão pode ser posta da seguinte
forma: sem integração regional, não é possível melhorar a vida do povo de
maneira profunda, veloz e permanente.
Entretanto, qual padrão de integração
regional é necessário, se falamos em processos de mudança mais profundos, mais
velozes e mais duradouros? Por exemplo: como articular a integração entre
Estados e a integração entre os setores sociais comprometidos com os projetos
de transformação?
Quando saímos do plano regional e
passamos à análise do plano mundial, a questão pode ser posta assim: como o
processo de transformações nacionais e de integração regional se articula com a
“guerra” (com cada vez menos aspas) mundial entre diferentes projetos de
desenvolvimento?
Finalmente, é preciso investigar quais
as decorrências da defensiva estratégica sobre as organizações da classe,
especialmente sobre aquelas que foram hegemônicas no período estratégico que
ora se encerra.
Quando perguntamos qual
estratégia deve ser adotada frente à situação aberta pela contraofensiva
reacionária, partimos do pressuposto de que ocorreram mudanças
estruturais em âmbito mundial, regional e no interior de cada sociedade,
mudanças que tiveram como desdobramento a criação de uma situação
qualitativamente distinta da que existia anteriormente.
Se reduziu muito o espaço de êxito da
estratégia que pretendia melhorar a vida do povo através de
políticas públicas implementadas a partir dos espaços legislativos e executivos
conquistados através de processos eleitorais.
Esta estratégia foi implementada por
amplos setores: “reformistas” e “revolucionários”, “social-democratas” e
“socialistas-comunistas”. Mesmo forças minoritárias que criticavam esta
estratégia, na prática aderiram a ela.
Também por isto, o debate atual tem um
componente imenso de confusão, sendo comum ver determinados setores criticarem
sem nenhuma autocrítica aquilo de que fizeram parte, apresentando os
problemas como decorrência de falhas morais e éticas (dos outros), falta de
coragem e vontade (dos outros) etc.
Também por isto, é preciso fazer um
esforço imenso para perceber a natureza objetiva dos problemas enfrentados e
buscar respostas que também tenham base objetiva.
Em última análise, trata-se de
responder, entre outras, questões como as seguintes: quanto de
reforma o capitalismo contemporâneo aceita; e quanto de
socialismo é necessário para viabilizar mesmo um “programa mínimo” de reformas.
Reprogramando a
estratégica
No caso do Brasil, a atual ofensiva de
direita é também um indicador do esgotamento da estratégia adotada pela maior
parte da esquerda nos últimos 20 anos.
Precisará ser construída, tanto na
teoria quanto na prática, outra estratégia: uma estratégia de luta pelo
socialismo, não apenas por um capitalismo pós-neoliberal; uma estratégia de
luta pelo poder, não apenas pelo governo; uma estratégia das classes
trabalhadoras, não de conciliação com setores da classe dominante.
Para alguns setores da esquerda, mais
importante que discutir qual o conteúdo e como construir esta nova estratégia,
é debater se isto será feito com o PT, sem o PT ou contra o PT.
Há várias razões que explicam esta
atitude, entre as quais a campanha de criminalização do PT, que estimula
qualquer discussão a desembocar na crítica ao petismo.
É o PT quem terá que decidir se vai
buscar construir outra estratégia ou se vai insistir na estratégia da
conciliação. E da resposta a esta questão dependerá não exatamente a
“sobrevivência futura” do PT, mas sim qual papel o PT jogará no presente e no
futuro.
Para fazer uma analogia histórica, com
toda imprecisão que as analogias possuem: no final dos anos 1910, a vanguarda
da classe trabalhadora brasileira estava sob hegemonia anarquista. O anarquismo
foi derrotado e parte dele contribuiu na criação do Partido Comunista. Mas só
depois da Segunda Guerra Mundial a estratégia comunista tornou-se hegemônica na
vanguarda da classe trabalhadora.
O golpe de 1964 desmoralizou
profundamente a estratégia do PC, mas a direção daquele partido insistiu na
mesma orientação, o que estimulou defecções, cisões, rupturas e a proliferação
de novas organizações de esquerdas.
Mas só nos anos 1980 as lutas de uma
nova classe trabalhadora dariam origem a uma nova estratégia hegemônica,
simbolizada numa nova organização, o Partido dos Trabalhadores, que reuniu a
maior parte da vanguarda da classe.
Até 1989 o PT seguiu uma estratégia. Já
nos anos 1990, frente a ofensiva neoliberal e a crise do socialismo, optou (após
intensa luta interna) por outra estratégia. Hoje, aquela estratégia seguida desde
1995 está sob questionamento (a partir de dentro e também de fora; a partir da
esquerda, mas principalmente por parte da direita).
O que acontecerá se PT não for capaz de
construir uma nova estratégia?
Milhões de trabalhadores e de
trabalhadoras que algum dia votaram, confiaram e inclusive militaram no petismo
vão dividir-se. Uma minoria seguirá noutros partidos e movimentos de esquerda.
Uma parte adotará posições conservadoras. A ampla maioria vai afastar-se da
política ativa durante muito tempo.
Neste cenário, o enfraquecimento do
petismo não seria acompanhado do fortalecimento de outra hegemonia de esquerda.
No futuro, com pelo menos uma geração de intervalo, isto poderia/poderá
acontecer. Mas de imediato, o enfraquecimento do petismo teria/terá como
resultado o fortalecimento da direita. E eventuais setores de esquerda que
conseguissem/conseguirem crescer absorvendo o ex-petismo, o fariam num contexto
de enfraquecimento da esquerda como um todo.
É por isto que, não apenas para
derrotar a direita agora, mas também para evitar que se “perca uma geração”
(como ocorreu em 1964), é necessário que o PT mude de estratégia. Isto
independe do que venha a ocorrer no futuro próximo com o governo Dilma,
lembrando que do ponto de visto histórico e estratégico é bem mais fácil
conquistar e reconquistar governos, do que construir e reconstruir partidos.
Do ponto de vista teórico, construir
outra estratégia exigirá enfrentar a análise do capitalismo do século XXI, a
retomada do balanço da luta pelo socialismo no século XX, assim como um balanço
dos governos “progressistas e de esquerda” no Brasil e na América Latina.
Do ponto de vista prático, exigirá no
essencial um conjunto de ações que recuperem nosso apoio junto à classe
trabalhadora, criando as condições sociais indispensáveis para derrotar o
grande capital, a oposição de direita e o oligopólio da mídia, em favor de um desenvolvimentismo
democrático-popular e articulado com o socialismo.
Quando falamos em recuperar o apoio
junto à classe, em reatar laços com nossa base social, não falamos apenas das
dezenas de milhares que vão às marchas, manifestações e congressos. Falamos em
primeiro lugar das dezenas de milhões que apoiaram as esquerdas nas eleições de
1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014, mas que agora estão decepcionados e
em muitos casos sob a hegemonia da direita.
Estratégica, tática e
análise de conjuntura
As definições estratégicas podem ser
perfeitas no papel, mas se a tática for equivocada, de pouco adiantará.
Ou seja: não é provável que vença uma
guerra alguém que perde todas as batalhas de que participa. Pois de derrota em
derrota não se constrói a vitória final, embora seja impossível vencer sem
antes ter sido derrotado; e seja imprescindível extrair lições da cada uma das
derrotas.
A estratégia visa alterar a correlação
de forças entre as classes sociais num plano fundamental: o do poder de Estado.
E a partir daí, agir sobre o terreno das relações de produção.
A tática visa alterar a correlação de
forças entre as classes sociais em níveis menos fundamentais: no governo, no
parlamento, nas eleições, nas lutas sociais etc.
Ambas (estratégia e tática) dizem
respeito à correlação de forças entre as classes sociais; ambas se articulam; e
no limite ocorrem batalhas táticas com efeitos estratégicos (aquela batalha
tática em que se decide a “tomada do poder” é também uma batalha estratégica,
ou seja, mesmo tendo vencido todas as anteriores, perder esta batalha pode
significar perder a guerra).
Noutras palavras: voltamos ao ponto de
partida. Tudo depende da análise das classes sociais e da luta de classes.
A análise de conjuntura (ou seja, a
análise de um conjunto de elementos) tem por objetivo medir a correlação de
forças entre as classes sociais e definir quais passos táticos devem ser dados para
acumular forças em direção aos objetivos estratégicos.
Como “medir” se estamos acumulando? É
preciso verificar qual o nível de consciência, organização e mobilização da
classe trabalhadora, vis a vis as demais classes sociais.
Um “ortodoxo” russo dizia que a
essência do marxismo é a análise concreta da situação concreta, que o marxismo
é um guia para a ação.
“Situação concreta” e “ação” podem
dizer respeito a períodos de tempo mais ou menos longos, em territórios mais ou
menos extensos.
Podem dizer respeito à estratégia
deduzida da análise das tendências de desenvolvimento de uma sociedade ao longo
dos últimos 100 anos; ou dizer respeito à tática deduzida da análise de uma
sociedade ao longo dos últimos 100 meses.
Podem dizer respeito à análise da situação
de uma empresa, de uma cidade, de um estado, de um país, de um subcontinente,
de um continente, do mundo.
Quando falamos de análise de
conjuntura, estamos nos referindo a uma análise concreta de uma situação
concreta mais curta no tempo e restrita no espaço.
Isto é assim não por conta da
incapacidade de quem analisa, mas sim por conta da natureza do fenômeno
analisado.
A análise de conjuntura é uma análise
da correlação de forças em luta, correlação que em última análise remete para
dois “sujeitos”: as classes sociais (no âmbito de cada país) e os Estados
(expressão desta luta de classes no âmbito internacional).
A correlação de forças se altera com
muita rapidez ao longo do tempo; e num mesmo momento, mas em territórios
diferentes, também apresenta enormes diferenças.
Por isto, analisar a conjuntura de um
século ou analisar a conjuntura do mundo inteiro é, na verdade, estudar várias
conjunturas encadeadas ou simultâneas.
Isto é perfeitamente possível de fazer,
mas neste caso estaríamos realizando não uma “análise de conjuntura” --ou seja,
das tendências de curto/médio prazo-- mas sim uma análise das tendências de
médio/longo prazo, portanto uma “análise de estrutura”.
A análise “estrutural” é fundamental,
até porque sem ela a análise de conjuntura torna-se volúvel. Da análise de
conjuntura deriva a tática, da análise de estrutura deriva a estratégia.
Um dos problemas que temos hoje, na
esquerda brasileira em geral e no PT em particular, diz respeito exatamente à
análise de estrutura & a estratégia.
A esquerda brasileira --impactada pela
crise do socialismo soviético e pela ofensiva neoliberal— não foi capaz de
produzir uma análise consistente das tendências do capitalismo no século XXI,
nem no mundo, nem no Brasil.
Dizendo de outra maneira: a maior parte
da esquerda brasileira não possui uma análise acerca das classes e da luta de
classes existente atualmente no Brasil. E sem isto, a análise de conjuntura
torna-se míope, politicista, episódica, “curtoprazista”.
Seja como for, “análise de conjuntura”
é uma expressão que faz parte do jargão das pessoas que fazem política de forma
militante.
Há análises de conjuntura para todos os
gostos e sabores; assim como há diferentes maneiras de analisar a conjuntura;
não havendo consenso sobre o que significa “analisar”, nem tampouco sobre o que
significa “conjuntura”.
Na segunda metade dos anos 1980, o
Instituto Cajamar incluía nos seus cursos de formação política uma disciplina
intitulada “instrumental de análise de conjuntura”.
Na mesma época, outras instituições faziam
o mesmo, com direito a cartilhas e livretos tratando especificamente de sugerir
um método, um procedimento, um passo a passo para analisar a conjuntura.
Não cabe, aqui, fazer uma análise
comparada das diferentes visões a respeito de como analisar a conjuntura, desde
os anos 1980. Mas é fundamental retomar aquele debate sobre o “método”.
E a questão central do método, como já
foi dito anteriormente, diz respeito à análise das classes sociais em luta (no
âmbito de cada país) e dos Estados (no terreno mundial).
Importante lembrar, ainda, que o
intérprete de uma análise de conjuntura é alguém envolvido nela, direta ou
indiretamente, consciente ou inconscientemente.
Isto vale inclusive para os que se
apresentam como “cientistas políticos” (não importando sua coloração política).
Qualquer ponto de vista é a vista a partir de um ponto.
Não há nenhuma relação direta,
mecânica, entre o ponto de vista de quem analisa e a qualidade (no sentido de
maior ou menor correção) da análise.
Aliás, o fato de alguém se julgar porta-voz
autorizado da ciência pura, da nação, da democracia, da classe, de Deus ou de
Marx não torna “verdade” nada do que ele diz, nem muito menos garante uma
adequada análise dos fenômenos conjunturais.
Entretanto, não é irrelevante a questão
do sujeito da análise, ao menos no caso da classe trabalhadora. Isto por dois
motivos fundamentais:
1) a classe trabalhadora está submetida
à influência da ideologia da classe dominante (os capitalistas). Reconhecer
isto e desenvolver de forma consciente seu próprio ponto de vista é parte
integrante da luta por fazer da classe trabalhadora a futura classe dominante;
2) as análises da conjuntura fazem
parte... da conjuntura. A difusão de determinadas interpretações, narrativas,
conclusões, propostas faz parte da luta política permanente que se trava em
nossa sociedade. Por isto é fundamental saber que não existe análise neutra,
acima e a parte daquela luta.
A análise de conjuntura deve levar em
conta os “marcos estratégicos” nos quais se desenvolve a atual conjuntura brasileira.
Eles já foram citados anteriormente e os repetiremos aqui:
a) defensiva estratégica da classe
trabalhadora;
b) hegemonia do capitalismo;
c) crise do capitalismo;
d) declínio da potência hegemônica;
e) ascensão de outros polos de poder
(vide os BRICS);
f) disputa entre diferentes vias de
desenvolvimento capitalista;
g) formação de blocos regionais;
g) hegemonia do neoliberalismo em
âmbito regional;
h) disputa entre
diferentes modelos de desenvolvimento nacional e regional;
i) vitórias eleitorais e forte
protagonismo dos governos progressistas até 2006;
j) desde então, crescente
contraofensiva das forças conservadoras.
A análise de conjuntura também deve
levar em conta as alternativas programáticas que defendemos:
a) o desenvolvimento de uma indústria
forte e tecnologicamente avançada, com forte participação estatal nos
setores estratégicos, forte participação nacional nos demais setores,
permitindo o desmanche dos monopólios e oligopólios estrangeiros e nacionais, com
os desdobramentos que isto tem no âmbito da ciência e da engenharia nacionais
(sem o que não se altera o “lugar” do Brasil na divisão internacional do
trabalho);
b) a constituição de um setor
financeiro poderoso e público (sem o que não haverá recursos para o
desenvolvimento e continuaremos submetidos à ditadura do capital financeiro);
c) a reforma agrária e a universalização
das políticas sociais (sem o que não há condições materiais para combinar
crescimento econômico com elevação do bem-estar social);
d) a integração regional
(possibilitando cadeias produtivas, economia de escala, recursos e retaguarda
estratégica);
e) a ampliação da auto-organização da
classe trabalhadora e ampliação das liberdades democráticas do conjunto do
povo, com destaque para quebra do oligopólio da comunicação, reforma política e
do Estado, outra política de segurança pública e de Defesa, outra política de
educação e cultura (sem tais medidas, a classe dominante terá os meios para
sabotar e reverter o processo de mudanças).
Em 31 de agosto de 2016 teve fim uma
etapa da história recente do Brasil. Teve início um novo período, em que a
relação entre as forças políticas, as instituições e as classes sociais, bem
como a relação do Brasil com o mundo serão substancialmente distintas daquilo
que prevaleceu durante a maior parte dos governos Lula e Dilma. Neste sentido,
a batalha do impeachment não foi a última batalha de uma guerra antiga, mas sim
a primeira batalha de uma guerra nova.
Um momento em que será fundamental
dominar o vocabulário da luta.
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