Repito aqui o que foi dito noutro texto: derrota tem de tudo.
Tem os que dizem não ser hora de fazer balanço. Especialmente se for um
balanço que aponte seus próprios erros.
Tem os que afirmam que a culpa é do derrotado. Muitas vezes sem perceber
que com isto apenas aliviam para o outro lado.
Tem os que alardeiam ter avisado há bastante tempo o que ocorreria. Às
vezes sem dar-se conta de que ter acertado sobre ontem não responde sobre o que
fazer amanhã.
Tem os que juram (e os que fingem) não ter nada que ver com isto. O que não
deixa de ser engraçado, considerando o papel que alguns jogaram desde 1980.
Tem os que cospem no prato em que comeram. O que em geral lhes custa
caro, pois ninguém confia em quem trai.
Tem os que buscam fazer uma crítica honesta, respeitosa, ponderada,
profunda e acertada. Mas nem sempre conseguem.
E tem muitos outros casos e tipos, alguns difíceis de denominar.
Vejamos por exemplo Tarso Genro, em particular um texto intitulado “Virtudes e erros na
questão democrática”, publicado em Sul21 em 16 de maio de 2015 (ver ao final).
Nele é dito que uma reflexão de “fundo” implica em “defender o legado de
uma parte da esquerda deste período”, “reestruturar a nossa visão frentista de
forma autocrítica” e pensar “uma saída concreta para a crise”, “política e
econômica, mais além das resistências de rua que, se não tiverem uma
correspondência no plano das disputas eleitorais pelo Governo, ou em direção a
uma Constituinte, tendem a declinar”.
Mesmo considerando que o texto não sofreu uma edição, o autor achou por
bem citar algumas conclusões fundamentais. Cabe perguntar se algumas ausências,
bem como as premissas implícitas, não estão vinculadas à derrota que sofremos, especialmente
com a posse do golpista que Tarso denomina de “interino”.
Por exemplo: Tarso diz que os “motivos do afastamento da Presidenta”
estão vinculados a “grandes movimentos políticos” que foram “motivados pela
luta contra a corrupção”. Sem dúvida estão vinculados. Mas existe vida além dos
setores médios. Muito mais relevantes foram os movimentos do grande capital num
ambiente de crise internacional; e os movimentos da classe trabalhadora frente à
política do segundo mandato Dilma.
Temas que aparecem quando Tarso afirma que “as futuras ações anunciadas
por Meirelles-Jucá (...) são medidas que já vinham sendo tentadas pela
Presidente Dilma”; “que os ‘remédios’ que o interino pretende para economia (...)
não são tão estranhos aos que a Presidenta vinha encaminhando antes do seu
afastamento”; que a presença no governo golpista de figuras como Romero Jucá,
Blairo Maggi, Henrique Meirelles, Moreira Franco, Padilha e Temer, leva a
perguntar “por quais motivos, então, a Presidenta Dilma foi afastada e o que
diferencia, efetivamente, o campo político de esquerda, que sustentava o
Governo Dilma daquele campo que agora chegou ao poder, sem votos?”
Perguntas bem-vindas, embora fosse bom fazê-las não apenas para o
período Dilma, mas também para o período Lula. E a resposta passa por aqui: o
grande capital rompeu a aliança, apesar das imensas concessões que foram feitas
por uma parte da classe trabalhadora, porque o grande capital quer e precisa de
muito mais do que estas concessões.
Foi isto que “esteve muito errado no nosso projeto”: fazer estas
concessões e achar que elas aplacariam o lado de lá.
Agora, estes erros não querem dizer que “os defeitos dos nossos governos”
sobrepujaram “suas virtudes”.
Este tipo de raciocínio desconsidera os posicionamentos e percepções
distintos que são típicos de uma sociedade de classes.
Na verdade, o grande capital rompeu a aliança por causa das nossas virtudes.
E uma parte da classe trabalhadora afastou-se por causa de nossos defeitos.
Um dos efeitos da crise internacional foi levar o grande capital a
buscar ampliar sua fatia e reduzir a nossa. É por isto que “perdem importância
os programas de inclusão e coesão social”. E reduzir os ganhos da classe
trabalhadora exige e supõe reduzir as liberdades democráticas.
Tarso acha que isto aumenta a “ilegitimidade do poder político, que
passa a governar para dívida, não para produção, o emprego e a sociedade”.
Bom, no capitalismo não é tão comum assim achar quem governe “para o
emprego e a sociedade”. Bem mais comum é achar quem governo para a dívida e
para a produção, no sentido de produção de lucro, rentabilidade, mais-valia.
O que Tarso chama de “grandes méritos dos governos Lula” não eram meritórios
do ponto de vista da acumulação de Capital. Acreditar nisto foi uma das imensas
ilusões que nos trouxeram até onde estamos.
Na base destas ilusões está um jeito de interpretar e descrever a
sociedade brasileira, em que certas análises, palavras e frases tentam flutuar
acima das classes sociais. Tentam, porque é uma missão impossível. Os
interesses de classe acabam se impondo e, quando nós não explicitamos os
nossos, os que se impõem são os da classe dominante.
Por exemplo: Tarso afirma que “o Governo que chega é um símbolo da
incoerência das elites capitalistas do país: não tem programa, não tem projeto”;
que temos que nos preparar para uma luta longa e difícil, para “relegitimar o
poder político no país”; que “lamentavelmente vamos entrar num longo período de
instabilidade política”, no qual estarão sendo disputadas “duas saídas para
crise estrutural de um Estado Social, que não integra o centro orgânico
capitalismo global”.
O governo Temer é golpista, hipócrita, mentiroso e tudo mais. Mas não é
incoerente: tem programa e tem projeto. Obviamente, antagônicos aos nossos. Mas
correspondem perfeitamente a conduta de uma classe social que tem o poder há muitas
décadas.
Que eles tenham sido obrigados a empurrar o país para um período de “instabilidade
política”, não é algo em si “lamentável”, assim como a estabilidade política em
si não é algo para comemorarmos. No caso em tela, a instabilidade mostra apenas
que por enquanto o jogo não está jogado, seja por motivos táticos, seja pelas
dificuldades estratégicas enfrentadas pelo projeto da classe dominante.
Do nosso ponto de vista, trata-se não de “relegitimar” em geral “o poder
político no país”, mas sim de reconquistar o apoio da classe trabalhadora e dos
setores médios para nosso projeto, para nossa saída. Se o fizermos, teremos
condições de travar a disputa de governo como parte da disputa pelo poder. Mas
para isto, será preciso explicitar programaticamente de que saída estamos
falando.
Noutras palavras, não é possível tratar a “questão democrática” como “condição
prévia para reformar a economia e as instituições”.
É preciso dar conteúdo programático concreto para a questão democrática,
sob pena de propostas como “referendo para eleições gerais”, “novas eleições
presidenciais”, “Constituinte para fazer a reforma política” e “Assembleia
Constituinte para um novo consenso democrático” não ganharem o apoio da maioria
do povo.
É isto, aliás, que ajudará a definir o perfil da “Frente” que se almeja:
vincular a luta democrática com o programa de transformações populares e
socialistas.
O outro caminho, da desvinculação ou das etapas prévias, vai nos levar a
repetir erros recentes. Ou nem tanto.
16/maio/2016, 8h08min
Virtudes e erros na questão democrática
Por Tarso Genro
Circulam nas redes e até na imprensa tradicional
-nesta em número insignificante- artigos excelentes sobre a conjuntura, que se
abriu com a posse interina de Michel Temer na Presidência da República. O golpe
institucional engendrado pela grande mídia, articulado com setores rentistas da
sociedade brasileira e lideranças políticas oligárquicas (que tanto estavam no
Governo Dilma como fora dele), prosperou e o país vive um novo ciclo político.
Após a fala de abertura do Presidente interino e da apresentação do seu
Ministério, uma reflexão mais de “fundo” pode ser ensaiada. Para ela, quero
contribuir com este pequeno texto, supondo que precisamos, não só defender o
legado de uma parte da esquerda deste período, mas também reestruturar a nossa
visão frentista de forma autocrítica, além de pensarmos rapidamente uma saída
concreta para a crise: saída política e econômica, mais além das resistências
de rua que, se não tiverem uma correspondência no plano das disputas eleitorais
pelo Governo, ou em direção a uma Constituinte, tendem a declinar.
Já ficou comprovado, no próprio processo de
“impeachment”, que os motivos do afastamento da Presidenta nada têm a ver com
“crime de responsabilidade”. Eles estão vinculados aos grandes movimentos
políticos – colocados nas ruas a partir de julho de 2013 – motivados pela
luta contra a corrupção, glamourizados e orientados pela grande mídia. Está
claro, igualmente, que as famosas “pedaladas” foram apenas um arranjo jurídico
aventureiro, para simular uma deposição “legal” do Governo eleito. Pela
fotografia do Ministério, montado pelo Presidente interino, também ficou claro
que a inspiração da derrubada do Governo, pelo motivo da corrupção, já está
profundamente prejudicada. Não estou acusando pessoalmente – para os efeitos
deste artigo – nenhum membro do Governo atual de corrupto, mas afirmo que
o senso comum (produzido pela própria mídia golpista a respeito do
assunto), já começa a produzir, inclusive nos setores que apoiavam o
impedimento de Dilma, uma brutal sensação de frustração.
Dois outros fatos começam a adquirir, rapidamente,
relevância política. Primeiro, a importância cada vez mais publicamente
evidente de Eduardo Cunha na articulação golpista, que só não foi preso
pelas circunstâncias políticas que vive o país, onde os Tribunais estão
tratando de forma desigual os investigados que são “governistas” e os
investigados “golpistas”. Segundo, está ficando cada vez mais clara, a
falsidade da alegação de que a Presidenta não tinha condições de governar,
porque se recusava a promover um “ajuste” para economia deslanchar. As futuras
ações anunciadas por Meirelles-Jucá, redução de 4.000 cargos de confiança (que
tem zero de importância), Reforma da Previdência, viabilização da CPMF,
reestruturação da dívida dos Estados – principalmente – são medidas que já
vinham sendo tentadas pela Presidente Dilma, sem sucesso, com obstrução de
grande parte da sua própria base, que mudou rapidamente de lado.
Por quais motivos, então, a Presidenta Dilma foi
afastada e o que diferencia, efetivamente, o campo político de esquerda, que
sustentava o Governo Dilma daquele campo que agora chegou ao poder, sem votos?
É importante ressaltar que os nomes mais importantes do atual Governo -Romero
Jucá, Blairo Maggi, Henrique Meirelles, Moreira Franco, Padilha e Temer, entre
outros- foram quadros que tiveram importância nos Governos Lula e nos Governo
Dilma, o que pode demonstrar que os “remédios” que o interino pretende para
economia -com os quais eu divirjo como já divergia no próprio Governo Dilma-
não são tão estranhos aos que a Presidenta vinha encaminhando antes do seu
afastamento, no âmbito de uma pesada crise fiscal do Estado. Em algum lugar,
algo esteve muito errado no nosso projeto, para que os defeitos dos nossos
governos permitissem que as suas virtudes fossem sobrepujadas.
O Ministro Meirelles, no meio de uma entrevista,
deu uma pista importante do que deve guiar o Governo atual, ao dizer que o
problema mais urgente a ser tratado, é equacionar a questão da dívida pública.
Equacioná-la, para recuperar a “confiança” dos nossos financiadores e dos
investidores, ou seja, mostrar -como nos velhos tempos de Lula- que o Brasil é
“solvente”. E que os nossos primeiros compromissos são com os nossos credores.
Digo isso, sem fazer qualquer caricatura, porque este é o ponto de partida
econômico, liberal-capitalista, do qual decorre um conjunto de políticas
relacionadas com o desenvolvimento econômico e social do país. Para esta visão,
já que o preço das “commodities” não mais colabora para financiar o Estado, perdem
importância os programas de inclusão e coesão social e, consequentemente, a
mesa da democracia se vê profundamente afetada. Aumenta, assim, a ilegitimidade
do poder político, que passa a governar para dívida, não para produção, o
emprego e a sociedade. O “pato” da Fiesp, come o milho do seu próprio dono e o
Governo sem votos, mesmo com apoio da mídia, terá enormes dificuldades para
governar.
Os grandes méritos dos governos Lula não foram,
seguramente, mudanças estruturais no modelo de desenvolvimento liberal-capitalista,
autorizado pelo império do capital financeiro em escala mundial, que vem
sequestrando a autonomia dos Estados Democráticos. Seus méritos estiveram
ancorados na questão democrática, incorporando na mesa de diálogo político e
social do país, setores para os quais o Estado não existia, senão como
Estado-polícia. Isso foi feito através dos Programas destinados à Agricultura
Familiar e à Cooperação, o Prouni, Pronatec, Bolsa-família, Escolas Técnicas,
novas Universidades Federais, aumentos reais do Salário Mínimo e das
aposentadorias, reestruturação do financiamento da Pequena e Média Empresa e
vários outros programas de capilaridade social, para famílias de baixa renda. O
modelo rentista, porém, permaneceu intocado: não foi aprovada a CPMF, não
foram taxadas as grandes fortunas, as grandes heranças, os ganhos do capital de
forma significativa, nem foram desoneradas as camadas médias que pagam
alto Imposto de Renda, nem aumentadas as alíquotas deste imposto para os
bilionários. O fato de o Estado continuar sendo financiado, predominantemente,
pela dívida, é que agora cobra a sua coerência dramática, pois, para que os
seus credores fiquem tranquilos, os gastos com saúde, educação e inclusão é que
devem ser minimizados.
Dificilmente, as reformas para refinanciar o
Estado – sejam elas liberais ou social democratas – serão feitas em
nosso país, com o sistema político atual, como não foram feitas nos Governos
Lula, independentemente da convicção do então Presidente. O sistema político, tal
qual está posto, vai continuar sendo o espaço no qual as oligarquias políticas
regionais, o clientelismo e os interesses corporativos de todas as
ordens, vão continuar predominando sobre a ideia de nação com coesão
social. Na verdade, em essência, se é que a nossa Constituição de 88 escolheu
fazer do Brasil uma Noruega tropical do ponto de vista social, nos legou -do
ponto de vista institucional- um sistema político digno da Velha República. A
tese do “golpe” está sendo aceita como verdadeira, dentro do país e no exterior,
porque de fato foram rompidas instituições importantes da soberania
popular -eleições presidenciais por voto direto e uso do “impeachment”
sem crime de responsabilidade- que nos envergonham perante o mundo.
Um Governo que é derrubado pelas suas virtudes, é
mais trágico do que um Governo derrubado pelos seus erros. Porque, se ele tinha
virtudes tão fortes e não se preparou para defendê-las, não merecia permanecer
no poder ou foi inepto para tanto. Prefiro pensar que o Governo da Presidenta
Dilma foi derrubado, principalmente, pelos seus erros de análise política, por
não compreender a correlação de forças que estava se instaurando em virtude de
uma frente política que não tinha mais nenhum significado, por não conseguir
manter -em função da internalização da crise mundial- a coerência programática
com o discurso que a elegeu, por não ter enfrentado com preparo, portanto, a
luta de classes radical, que a grande mídia – como partido moderno do
rentismo liberal-capitalista – instalou contra nosso programa
social-reformista, que melhorou a vida de 50 milhões de brasileiros. Se o
Governo da Presidenta Dilma tinha problemas de governabilidade – e os tinha – e
incapacidade de manter um diálogo ampliado, com todos os setores da sociedade,
o Governo que chega é um símbolo da incoerência das elites capitalistas do
país: não tem programa, não tem projeto, não tem unidade na sua base
parlamentar e já nasce rachado em questões de fundo, como o aumento dos
impostos e a reforma da previdência. Trata-se de um aglomerado de interesses
sem propósito a não ser o de chegar no poder: seus erros serão muito maiores do
que nossos, mas os seus resultados atingirão diretamente os 50 milhões de
brasileiros que melhoraram de vida nos últimos doze anos.
Independentemente de que consigamos bloquear o
“impeachment”, temos que nos preparar para uma luta longa e difícil, para
relegitimar o poder político no país. Trata-se da questão democrática, como
condição prévia para reformar a economia e as instituições, seja através de um
referendo para eleições gerais, seja através de novas eleições presidenciais,
seja através de uma Constituinte para fazer a reforma política, seja por uma
Assembleia Constituinte para um novo consenso democrático. O que será possível
vai depender da amplitude e da radicalidade democrática que emprestarmos a uma
nova Frente, que possa se preparar novamente para ser, no futuro, poder
político no país. Lamentavelmente vamos entrar num longo período de
instabilidade política, no qual estarão sendo disputadas duas saídas para crise
estrutural de um Estado Social, que não integra o centro orgânico capitalismo
global. Nestes centros orgânicos, as classes trabalhadoras podem perder um
pouco -esse é o cálculo liberal- sem ir massivamente para a fome e a
marginalidade. Aqui não: as pessoas do mundo do trabalho, formal ou informal,
quando perdem um pouco vão diretamente para a miséria. Não comem. Quando muitos
não comem, outros não dormem. A receita “não falem em crise, trabalhem”,
é cínica e elitista. E esse foi o principal recado do Governo Temer.
.oOo.
Tarso Genro foi Governador do Estado do
Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da
Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
https://www.youtube.com/watch?v=BfWst51fvNM
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