Este "esquema de exposição" foi elaborado no ano de 2001, a partir dos debates convocados pela Fundação Perseu Abramo, acerca do socialismo.
1.Durante um debate realizado, nesta mesma sala, há cerca de um mês, o companheiro Lula disse não ter certeza sobre se uma revolução é necessária para chegarmos ao socialismo.
2.Nós achamos, pelo contrário, que sem revolução não haverá socialismo; e que, portanto, o período que precede a tomada do poder e o início da construção do socialismo deve ser encarado, teórica e praticamente, como um período de luta por uma revolução político-social.
3.Essas idéias, como é sabido, não têm nada de originais. Tanto a defesa de uma revolução, quanto as teses de que ela seria desnecessária e até negativa, têm pelo menos um século de existência –isso, se considerarmos apenas o debate no interior do marxismo.
4.Tampouco é este o primeiro momento histórico em que –no interior do movimento socialista— a revolução é uma categoria em descrédito ou de apelo minoritário. Acho desnecessário dizer que -na sociedade como um todo-- são raríssimos os momentos em que um número significativo de pessoas comuns está animado por uma disposição revolucionária.
5.Talvez a novidade histórica deste momento em que vivemos seja o tamanho da distância existente entre as possibilidades de uma revolução e a disposição subjetiva da vanguarda da classe trabalhadora. O período que me vem a mente, comparável com o atual, é o que rodeou o início da primeira guerra mundial, em 1914.
6.Em todo caso, me parece incontestável que as idéias revolucionárias passaram os anos 90 na defensiva e continuam, hoje, em minoria. Compreender por que isso aconteceu é um dos passos que devemos dar para mudar esta situação.
7.Meu ponto de partida é o ano de 1989, considerado um marco na debacle do chamado campo socialista. Essa debacle foi interpretada, pelo pensamento dominante, como atestado do fracasso histórico do projeto comunista.
8.Não é esse o balanço que fazemos da luta pelo socialismo, no século XX. Embora seja paradoxal, a dissolução da URSS e os acontecimentos no Leste Europeu confirmaram, ao invés de desmentir, aspectos fundamentais da teoria marxista.
9.Mas o pensamento dominante apresentou a crise do Leste Europeu e da URSS como a consagração do mercado e da propriedade privada, como o funeral do planejamento central, da propriedade pública-social e do desenvolvimento impulsionado pelo Estado.
10.Num ambiente hegemonizado pelo chamado neoliberalismo, amplos setores da esquerda socialista e revolucionária abandonaram o programa comunista e aderiram a programas melhoristas, possibilistas, fracamente reformistas, aumentando as já enormes fileiras da social-democracia.
11.Isto ficou claro, por exemplo, na intervenção de Marta Suplicy, naquele debate a qual fizemos referência no início desta exposição. Segundo Marta, o “socialismo moderno” teria as seguintes características: democracia, mercado, propriedade privada e um Estado que controle os limites do mercado e garanta a função social da propriedade. Esta visão apresenta como “socialismo” o que não passa de –na melhor das hipóteses— de um capitalismo com bem-estar social.
12.Para além do rebaixamento programático, amplos setores da esquerda interpretaram a debacle como decorrente de uma espécie de “pecado original”: a revolução. Não seria possível, na opinião desses setores, construir uma sociedade emancipada a partir de um ato violento, autoritário, anti-libertário.
13.Essa interpretação não poupou nem mesmo as revoluções burguesas. No mesmo ano de 1989, as comemorações do bicentenário da revolução francesa foram dominadas exatamente por aqueles que consideravam aquela revolução um ato negativo, desnecessário, uma brutalidade sem sentido. Ao mesmo tempo em que, nos países do Leste europeu, antigos nobres e reis pediam de volta seus “direitos”, a execução do rei inglês, dos monarcas franceses e da família real russa passaram a ser apresentados como “bárbaros assassinatos”.
14.Numa vertente paralela de análise, vários setores da esquerda concluíram ser impossível realizar novas revoluções, na correlação de forças originada da debacle do campo socialista. Segundo eles, a inexistência de contrapesos ao poderio capitalista, seus enormes recursos militares e econômicos, teriam tornado muito mais difícil e até mesmo impossível a ocorrência de novas revoluções. É curioso que a mesma preocupação foi anunciada por Engels, em 1894, e desde então todos sabemos o que aconteceu.
15.Seja pelo caminho do rebaixamento programático, que tornava supostamente desnecessário o recurso ao caminho revolucionário; seja pelo caminho da análise da correlação de forças mundial, que tornaria supostamente impossível o recurso ao caminho revolucionário, consolidou-se em amplos setores da antiga esquerda revolucionária um rebaixamento estratégico.
16.Uma exposição mais ou menos completa desse duplo rebaixamento –programático e estratégico—pode ser lida no livro “Utopia desarmada”, de Jorge Castaneda.
17.Pouco depois do lançamento deste livro, eclodiu a revolta zapatista e expandiu-se a guerrilha colombiana. Mas a ambiguidade do zapatismo –que diz não querer o poder— e os limites programáticos das FARC permitiram a Castaneda apresentá-los como uma confirmação e não como uma negação de suas teses.
18.O abandono do socialismo, constatado por Castaneda et caterva, geralmente é mediado pela reafirmação dos “valores socialistas”. Ou seja: a luta pelo socialismo prossegue, mas agora através da tentativa de afirmar os “valores” socialistas no interior do capitalismo. Claro que entre estes valores, o posto supremo seria ocupado pela liberdade. E entre as liberdades, vigora a liberdade do proprietário, liberdade e propriedade que não podem ser suprimidas em nome da igualdade.
19.Parece óbvio que isto não tem mais relação com o socialismo –como, aliás, é dito abertamente pelos defensores mais honestos desta tese. Mas é importante dizer que este percurso teórico foi o mesmo seguido pelo velho social-democrata alemão Eduardo Bernstein.
20.Bernstein nasceu em 1850 e morreu em 1932. Judeu, filho de um ferroviário, trabalhou em bancos e como tantos outros de sua geração, ligou-se ao Partido Social-Democrata. Foi diretor do jornal do Partido, de 1881 a 1890. Morou em Londres, onde conheceu e tornou-se testamenteiro intelectual de Engels. Entre 1896 e 1898, publicou um conjunto de artigos na revista teórica do Partido e depois um livro intitulado “Os pressupostos do socialismo e as tarefas da social-democracia”.
21.Neste livro e naqueles artigos, Bernstein afirma que –contrariando as previsões de Marx— o capitalismo não estaria gerando uma polarização social crescente. Segundo Bernstein, o desenvolvimento capitalista não fazia os camponeses e a classe média desaparecerem. Ao mesmo tempo, ainda segundo Bernstein, as crises não estariam se tornando cada vez maiores, a miséria e a servidão não estariam aumentando cada vez mais.
22.O que aumentaria, segundo Bernstein, é a “insegurança, a dependência, a distância social, o caráter social da produção, a superfluidade funcional dos que detêm a propriedade”. Nessas condições, Bernstein defendia ser possível alcançar o socialismo através de reformas obtidas pelo avanço constante do movimento social-democrata, que deveria abandonar sua política de isolamento e fazer alianças com os camponeses e setores médios. Assim seria possível transformar o Estado no sentido de uma democracia cada vez mais ampla.
23.Para Bernstein, o movimento social-democrata já era estrategicamente reformista na prática, mas precisava assumir-se teoricamente como partido socialista, democrático e da reforma. Segundo sua frase famosa, “o movimento é tudo para mim, e o que é habitualmente chamado de ‘objetivo final do socialismo’ não significa nada”.
24.As idéias de Bernstein foram combatidas por Rosa Luxemburgo e por Carlos Kautsky, entre outros. Não é possível aqui resumir este debate, mas é necessário dizer que –guardadas as proporções—o que debatemos hoje foi fartamente debatido no final do século XIX e no início do século XX.
25.Um aspecto importante daquele debate diz respeito ao fundamento do projeto comunista. Para Bernstein, o socialismo não era uma “necessidade histórica”. Ele seria apenas “desejável”, fundando-se em valores subjetivos, éticos, não em determinações materiais, objetivas. Me arrisco a dizer que grande parte da esquerda, inclusive da esquerda revolucionária, coincide com Bernstein nisto –e, portanto, está dormindo com o inimigo.
26.Outro aspecto importante do Bernstein-debate diz respeito a posição de Kautsky, que disse da social-democracia o seguinte: “nós somos um partido revolucionário, mas não fazemos a revolução”. Como já foi dito e repetido, sob o risco da caricatura, Kautsky expressava a posição daqueles para quem o socialismo seria inevitável.
27.Ao ressaltar a importância do objetivo final (o socialismo), Kautsky parecia estar à esquerda de Bernstein. Mas ao dizer que este objetivo era "inevitável", Kautsky abria um fosso teórico entre o socialismo, a revolução e a prática concreta da social-democracia. Afinal, se o socialismo é o principal mas é inevitável, tudo se torna permitido no aqui e agora.
28.As posições mais explícitas de Bernstein foram derrotadas em seguidos congressos da social-democracia alemã. Mas sua força era muito grande, tendo sido eleito deputado por diversas vezes (1902-1906, 1912-1918; 1920-1928). Em 1915, esteve entre os deputados que votaram contra os créditos de guerra. Em 1917, rompeu com o Partido Social Democrata e ajudou a formar o Partido Social Democrata Independente –junto com Kautsky. Depois da guerra, Bernstein voltou ao SPD.
29.A trajetória do capitalismo, ao longo do século XX, parece ter confirmado e desmentido, simultaneamente, as posições de Bernstein. Mas o desmentido foi, digamos, mais forte: a sobrevivência do capitalismo custou, à humanidade, duas guerras mundiais e outras tantas de menor porte, para ficar só nesta parte dos custos. E o chamado estado de bem-estar social só foi possível graças a existência das revoluções socialistas.
30.O Bernstein-debate ocorreu há um século. Os seus termos são repostos, hoje, devido a natureza contraditória do capitalismo e do movimento da classe trabalhadora sob o capitalismo.
31.O desenvolvimento do capitalismo combina períodos de expansão com períodos de crise, nos quais são destruídas as riquezas e as forças produtivas acumuladas anteriormente. No limite, esta é a única maneira encontrada pelo capitalismo para reverter a tendência à queda da taxa de lucro e para reequilibrar a relação entre forças produtivas e relações de produção.
32.A forma e a duração dos períodos de expansão e de crise do capitalismo variaram ao longo da história. Mas não variou sua natureza: tanto a expansão quanto as crises são expressão do caráter contraditório do capitalismo, em última análise da contradição entre capital e trabalho, entre capitalistas e assalariados.
33.A expansão do capitalismo (e vivemos num momento histórico de máxima expansão do capitalismo, sob qualquer ângulo que se queira observar) amplia suas contradições, reduz os períodos de expansão “pacífica” e amplia a profundidade, a extensão e a duração dos períodos de crise.
34.Isto posto, torna-se possível explicitar os dois sentidos básicos da categoria “revolução”. Num sentido amplo, "revolução" remete aquele período histórico em que um modo de produção esbarra nos seus próprios limites, em que suas contradições atingiram tal profundidade que sua superação é posta na ordem do dia.
35.Já num sentido estrito, “revolução” remete aqueles momentos históricos em que, numa dada sociedade ou conjunto de sociedades, a antiga classe dominante é derrubada e abrem-se as portas para uma nova ordem político-social. As realizações de uma revolução neste sentido estrito são determinadas em última instância pelo período histórico naquele sentido mais amplo. A derrota das guerras camponesas, na Alemanha de 1524-1525; ou da Comuna de Paris, em 1871, não derivaram apenas dos erros dos revolucionários.
36.No primeiro sentido, revolução é um longo processo histórico. No segundo sentido, revolução é um episódio de curta duração.
37.Para quem se pretende socialista ou comunista, não há como prescindir de nenhum desses sentidos. A superação do capitalismo exigirá um longo processo. Mas seu início exigirá a tomada do poder pelos trabalhadores.
38.Há quem se pretenda socialista e queira prescindir, em maior ou menor medida, da revolução em sentido estrito. Ou seja, existe quem acredite que é possível chegar ao socialismo através de um looooooooooooooooooongo processo histórico, que pode até incluir, mas sem nenhuma importância diferencial, uma ou outra revolução estrito senso.
39.A transição do feudalismo para o capitalismo foi uma revolução no sentido amplo da palavra, mas esta revolução seria irrealizável e incompreensível sem as guerras camponesas na Alemanha, sem a revolução inglesa e principalmente sem a revolução francesa.
40.Claro que o capitalismo instalou-se em várias regiões através de processos não-revolucionários. Teoricamente falando, as relações capitalistas de produção se desenvolvem simultaneamente à existência do feudalismo; noutras palavras, a burguesia pode se desenvolver e ganhar enorme importância econômica e política, mesmo sem dispor desde o início do poder político.
41.Com o comunismo, ocorre algo diferente. Sob o capitalismo, há um processo de "socialização da produção", apenas no sentido de que o capitalismo torna o processo produtivo cada vez mais integrado, mais planejado, mais coletivo. Mas continuam vigorando as relações básicas de produção, aquelas que envolvem a propriedade dos meios de produção, a compra da força de trabalho e a extração da mais valia. A única maneira de quebrar a hegemonia das relações capitalistas de produção é socializando o conjunto ou pelo menos a parcela principal dos meios de produção.
42.A propriedade coletiva dos meios de produção não elimina, de per si, as relações capitalistas de produção. Mas sem a propriedade coletiva dos meios de produção, não há como eliminar a relação social que chamamos de capital.
43.Nesse sentido, é absolutamente utópico defender o socialismo e não defender a revolução.
44.Mas se a revolução é um processo objetivo, histórico, produto da luta de classes, das contradições existentes no capitalismo, qual então o papel dos revolucionários?
45.Em primeiro lugar, é importante lembrar o óbvio: o que chamamos de "processos objetivos" são produto de homens e mulheres. Assim, não é correto distinguir em absoluto a ação das massas, da ação das vanguardas. Mas é claro que essa distinção, mesmo relativa, existe.
46.As revoluções são processos objetivos, em grande medida porque elas são a síntese, função, desdobramento, de ações que em nenhum momento visavam desencadear uma revolução. A convocatória dos Estados Gerais, a tentativa de tomar os canhões da Guarda Nacional, as decisões militares do Estado Russo, nenhuma dessas medidas visavam, por óbvio, desencadear processos revolucionários. Tampouco a maioria dos protagonistas de uma revolução tem consciência dos processos sociais mais profundos.
47.Se a eclosão de uma revolução depende de fatores objetivos, seu curso, seus desdobramentos, seu desfecho, depende da interação daqueles fatores objetivos com fatores subjetivos. Noutras palavras: a existência de condições objetivas (incapacidade dos de cima e mobilização dos de baixo) não resolve, por si, o problema do poder. Se não houver uma força política disposta e capaz, nesses momentos, de lutar pelo poder, a antiga classe dominante pode recuperar o controle da situação.
48.Claro que essa força política não se constrói artificialmente, fora do processo histórico objetivo que resulta na revolução. Por isso, aliás, o cemitério de "partidos que se proclamam revolucionários" é maior do que o cemitério de revoluções iniciadas e abortadas.
49.Assim, é chave discutirmos --no caso do Brasil, na atual conjuntura mundial-- quais as possibilidades de nossa crise evoluir num sentido revolucionário. Mas, acima de tudo, é preciso disposição para trabalhar nesse sentido. E, caso isso aconteça, disposição para transformar esta crise numa revolução vitoriosa.
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