Texto escrito em 2007.
Acompanhei com atenção a animada polêmica entre Glauber Piva, Gilberto Neves e Marcel Frison, acerca do 3º Congresso do PT. De fundamental, entendi que pessoas que minimizam a aritmética passaram a noite fazendo contas, para conferir se a “Construindo um novo Brasil” teria ou não maioria de delegados ao congresso partidário.
Supondo que as tais contas estão certas, isto significaria que há no Congresso uma tese que possui maioria absoluta, sustentada por nove delegados, num total que parece ser de 934. Ou seja: se cinco delegados se ausentarem ou votarem noutra posição, a maioria absoluta pode virar relativa.
Isto significaria, ainda, que a correlação de forças do atual Diretório Nacional não corresponde à maioria do Congresso. Mais um motivo para a antecipação das eleições diretas de uma nova direção partidária.
O curioso é que o processo eleitoral direto é muito diferente do processo de eleição de delegados. No Congresso, para eleger um delegado num determinado município, é preciso ter alguém que organize uma chapa. Se isso não ocorrer, os apoios existentes neste município não vão se traduzir na eleição de delegados. Já na eleição direta, todos os filiados votam num mesmo modelo de cédula nacional.
Noutras palavras, a tendência é que as demais teses (os 49%, segundo as tais contas) tenham mais votos no PED do que tiveram no Congresso. Se isto for verdade, a resultante nacional do PED pode ser bastante parecida com o atual Diretório Nacional.
Seja como for, sempre acreditando nas tais contas, as resoluções propostas pela tese “Construindo um Novo Brasil” têm grandes chances de ser aprovadas pelo 3º Congresso. Aliás, já tinham grandes chances antes, já que as outras teses nunca manifestaram interesse em se fundir. Sendo assim, por qual motivo tanto alarde com os supostos 51%, se 49% já seriam suficientes?
Há duas explicações, pelo menos, para o alarde. Primeiro, há quem goste do sabor da maioria absoluta. Segundo, a preocupação não está no Congresso, mas no PED. Esperamos que sejam estas as explicações e não a vontade de transformar o 3º Congresso num embate cujos resultados são conhecidos de antemão, como ocorria, aliás, nas reuniões do Diretório Nacional do PT antes de 2005.
Seja como for, é importante analisar os projetos de resolução que foram inscritos no dia 13 de agosto, pelos signatários da tese “Construindo um novo Brasil”. Esperávamos que o esforço feito para eleger delegados fosse diretamente proporcional à qualidade dos projetos de resolução.
Numa primeira leitura, não foi isso o que ocorreu. Comecemos pelo “socialismo petista”.
Saudades do 7º Encontro
Dizem que o antigo “Campo majoritário”, agora “Construindo um Novo Brasil” (CNB), está discutindo seu “nome-fantasia”, sendo considerada a hipótese de utilizar o nome “Articulação”. Sobre o nome não vou opinar, por motivos óbvios, mas queria lembrar da qualidade dos textos que a velha Articulação (1983-1993) apresentava ao Partido.
O projeto de resolução da CNB sobre “o socialismo petista” é inferior, em forma e conteúdo, ao documento aprovado pelo 7º Encontro Nacional do PT, em 1990. É inferior, também, à tese inscrita pelo CNB no início do processo de Congresso.
No 7º Encontro, o Partido apresentou sua posição sobre o socialismo, em diálogo com a história do PT e do Brasil, com a social-democracia e com o chamado “socialismo real”. Podemos discordar ou concordar, parcial ou totalmente, com aquele texto. Mas ele tem a densidade e a forma adequadas a um partido com a importância do PT.
Claro que a qualidade das resoluções partidárias vem decaindo muito, especialmente nos últimos dez anos. Mas o projeto de resolução proposto por “Construindo um novo Brasil” estabeleceu um novo patamar, ao cometer frases e raciocínios como o que transcrevemos a seguir: “a ascensão das camadas de baixo da sociedade, propiciada pelas políticas sociais e de desenvolvimento, amplia o poder social dos grupos mais baixos”.
O texto abre, aliás, com um pensamento digno do conselheiro Acácio: “no período de forte hegemonia do pensamento único, no qual as classes dominantes conseguiram influenciar largos setores de outras camadas sociais”.
Claro que o projeto de resolução proposto por “Construindo um novo Brasil” defende algumas posições que são amplamente aceitas no Partido, entre as quais:
a) o legado do neoliberalismo é trágico e é contra este legado que o socialismo volta a ganhar atualidade;
b) o enfraquecimento político do neoliberalismo não implica num enfraquecimento equivalente da ideologia neoliberal;
c) o fortalecimento das idéias socialistas depende, entre outras coisas, da esquerda conseguir responder muitas questões contemporâneas;
d) o pensamento socialista surge, no limite, da incompatibilidade entre capitalismo, igualdade e liberdade;
e) o socialismo é uma nova ordem social, não apenas um conjunto de reformas no capitalismo.
Apesar de afirmar esta última idéia, o texto não detalha muito no que consistiria esta “nova ordem”, o que implicaria em abordar o espinhoso, mas inescapável tema da propriedade dos meios de produção no socialismo.
De pouco adianta defender a “crescente socialização da política e de todas as formas de exercício do poder” e não falar adequadamente sobre como será tratada uma das principais fontes do “poder”: a propriedade privada dos grandes meios de produção.
Sobre isto, o projeto de resolução proposto por “Construindo um novo Brasil” limita-se a defender a “multiplicação e o fortalecimento de todas as formas de economia solidária e de todas as experiências que apontem para novas possibilidades de configuração da sociedade e da propriedade”.
Aqui ou ali, o projeto de resolução proposto por “Construindo um novo Brasil” tenta reproduzir a linha de raciocínio e exposição da resolução do 7º Encontro Nacional. Mas não há comparação entre a emenda e o soneto.
Um exemplo do “decaimento” na produção teórica do Partido pode ser vista no tratamento dado para a relação entre socialismo e democracia. Comparemos como o assunto é tratado na resolução “O socialismo petista” e no projeto de resolução da “Construindo um novo Brasil”
Dizia o 7º Encontro: “Na raiz de nosso projeto partidário está, justamente, a ambição de fazer do Brasil uma democracia digna deste nome. Porque a democracia tem, para o PT, um valor estratégico. Para nós, ela é, a um só tempo, meio e fim, instrumento de transformação e meta a ser alcançada. Aprendemos na própria carne que a burguesia não tem verdadeiro compromisso histórico com a democracia. A relação das elites dominantes com a democracia é puramente tática, elas se socorrem da via democrática quando, pragmaticamente, lhes convém. Na verdade, a democracia interessa sobretudo aos trabalhadores e às massas populares. Ela é imprescindível, hoje, para aprofundar suas conquistas materiais e políticas. Será fundamental para a superação da sociedade injusta e opressiva em que vivemos. Assim como será decisiva, no futuro, a instituição de uma democracia qualitativamente superior, para assegurar que as maiorias sociais de fato governem a sociedade socialista pela qual lutamos”.
Diz o projeto de resolução: “A maciça incorporação de novas camadas sociais no exercício da política e acesso aos direitos de cidadania, explica em grande parte o crescimento de manifestações com características crescentemente intolerantes e sectárias contra o PT e seus governos, dado que a ascensão das camadas de baixo da sociedade, propiciada pelas políticas sociais e de desenvolvimento, amplia o poder social dos grupos mais baixos. O que torna mais intensa a competição pelas oportunidades e espaços na sociedade e nas suas instituições. É esse processo social real que faz o compromisso do PT com a democracia ser, num só tempo, o meio de fazer com que seja rompido o monopólio do exercício da política e do poder pela minoria; assim como uma estratégia na qual o seu permanente aperfeiçoamento é a única forma de proteção da sociedade - especialmente dos setores sociais mais explorados - contra o monopólio do exercício de poder nas mãos de poucos. É isso que dá sentido à afirmação de que o socialismo, ou será democrático, ou não será socialismo, que remonta os primórdios do PT”.
Outro exemplo de “decaimento” está nas passagens que tratam da relação entre socialismo e PT. Enquanto o 7º encontro falava que “somos uma síntese de culturas libertárias, unidade na diversidade”, o projeto de resolução fala “que somos o encontro virtuoso de diferentes caudais e tradições libertárias”.
Em 1990, tínhamos a dialética que reconhece as contradições. Agora, temos o mecanicismo que substitui a “unidade na diversidade” pelo “encontro virtuoso”!!!
Poderíamos citar outras passagens, mas acreditamos que já ficou claro o essencial: caso seja aprovado no 3º Congresso, o projeto de resolução sobre “o socialismo petista” não corresponderá ao sincero esforço que todo o Partido está fazendo, para recolocar o socialismo em debate. Vejamos agora os outros projetos de resolução.
O Brasil que queremos
O projeto de resolução proposto por CNB para o tema “O Brasil que queremos” começa exaltando o governo Lula, numa linguagem certamente apropriada para uma campanha eleitoral, mas não para um partido político que tem a obrigação de combinar a defesa do governo, sem perder a indispensável capacidade crítica.
Chega a ser tocante a ênfase com que se afirma que “o Governo Lula caminha no rumo do país que queremos”, “o Governo Lula está mudando o Brasil”, “o Governo Lula tem um projeto para o país” etc.
O problema deste tipo de exaltação é que, para não perder o equilíbrio analítico, seria necessário algum contraponto forte, seja para corresponder à dura realidade, seja para corresponder às duras críticas que os dirigentes ligados à “Construindo um novo Brasil” fazem, ao governo Lula, nas reuniões partidárias.
Infelizmente, o projeto de resolução proposto por “Construindo um Novo Brasil” não contém estes contrapontos.
Fala-se da “política econômica que privilegia o crescimento” e não se trata do superávit primário, nem das dificuldades de execução orçamentária que podem levar o PAC a ser menos do que precisa ser. Fala-se do apoio à economia popular e à agricultura familiar, mas não se fala do espaço concedido ao agronegócio, nem dos lucros obtidos pelos bancos privados.
A péssima impressão que fica é que os autores do projeto de resolução são partidários de um modelo de discurso muito comum no mal-denominado socialismo real. Nas conversas privadas, admitiam-se os problemas, nos discursos públicos exaltava-se a fortaleza dos regimes.
“Construindo um novo Brasil” leva tão longe esta postura que chega a afirmar que “o Governo Lula é um governo de esquerda que constrói os fundamentos de uma verdadeira revolução democrática, essencial para caminharmos na direção de uma sociedade socialista”.
Nessas horas bate saudade até do José Dirceu, que em geral dizia as coisas como elas são, não como gostaríamos que fossem.
O governo Lula não é um governo de esquerda, é um governo de centro-esquerda com aliados de direita. Num governo de esquerda, não haveria espaço para o Meirelles na presidência do Banco Central, para um Hélio Costa nas Comunicações, para uma Roseana Sarney como líder de governo. Nem tampouco para diversas ações de governo que, como o próprio Lula disse, criam um ambiente que permite à burguesia lucrar como nunca antes.
Se não é possível fazer um governo de esquerda, pelo menos não desmoralizemos a palavra.
A segunda parte do projeto de resolução sobre “o Brasil que queremos” trata da herança maldita recebida por nós, quando assumimos o governo federal em 2002. Esta parte é bem melhor do que a primeira, mostrando que os excessos retóricos na exaltação do governo Lula não são causados pelo desconhecimento da realidade estrutural do Brasil.
Citemos algumas passagens: “indicadores sociais comparáveis aos dos países mais pobres do mundo”; “um dos raros países do mundo a não ter realizado plenamente sua reforma agrária”; “uma concentração de renda que está entre as mais elevadas do mundo”; “a taxa de juros mais alta do planeta”; “um inadmissível déficit habitacional”; “o convívio diário e brutal com violência urbana”.
Infelizmente, logo após este reconhecimento dos fatos, o projeto de resolução passa a elogiar o desempenho do governo Lula na economia. Novamente, o equilíbrio analítico é substituído pelo tom panfletário.
“Nosso governo soube controlar e reduzir a dívida para 161 bilhões de dólares”, o "Risco Brasil" caiu “para a casa dos 200 pontos”, além de “zerar a dívida com o FMI”. A “dívida líquida” desde 2004 “está recuando”. A “relação da dívida externa líquida com o PIB” baixou para “9,4%”. Nossas reservas “crescerem para US$ 158 bilhões, garantindo a estabilidade necessária”. Alcançamos um superávit comercial “de mais de US$ 120 bilhões e um crescimento de mais de 100% em nossas exportações”. Até mesmo os juros, “embora ainda elevados”, entram na relação dos feitos, pois estariam “em rota francamente descendente, pela primeira vez abaixo dos 12% anuais”.
Como se vê, a tradição economicista atinge a gregos e troianos na esquerda (e na direita) brasileira. O governo Lula não deve ser julgado somente ou principalmente pelo que ele faz na economia. Claro que isolar indicadores e apresentá-los como sintoma de êxito (ou de fracasso) é algo bastante comum. O esquerdismo fez isto, em 2003-2006 e ficou sem entender o apoio popular ao governo.
Erram, de maneira equivalente, os que falam exageros sobre a solidez econômica do país e a responsabilidade do governo nela. No passado, atitudes equivalentes foram atropeladas por crises internacionais, de crescimento e sociais. Na época, as autoridades da hora gaguejaram explicações patéticas e tiveram que sair à cata de culpados (o chuchu, o petróleo, a crise da Ásia ou o que seja).
Neste exato momento, em que a situação internacional vive mais um de seus freqüentes problemas, é preocupante que o Congresso do Partido possa aprovar uma leitura tão superficial e autoconfiante da situação econômica do país, que não consegue considerar adequadamente os imensos desafios a superar, na infra-estrutura de transportes, na geração de energia e no controle do fluxo de capitais estrangeiros, por exemplo.
A auto-satisfação parece tão grande que, no meio do projeto de resolução proposto por CNB, encontramos a seguinte pérola: “a partir do Governo Lula vivemos uma revolução democrática que pretende mudar a sociedade pela conscientização da população, não por uma vanguarda política, mas pela ampliação da participação e pela construção de hegemonia. Ao mesmo tempo, o governo propõe mecanismos de defesa contra o retrocesso político, econômico e social. Em nosso país ‘não vivemos uma época de mudança, mas uma mudança de época’, como disse o presidente do Equador, Rafael Correa, sobre a América Latina”.
Como expressão de vontade e meta a alcançar, está bem. Como análise do movimento geral que está em curso na América Latina, também está bem. Mas como expressão da realidade conjuntural, está mal, pois é uma descrição totalmente unilateral dos fatos.
Para que vivêssemos uma “mudança de época”, seria necessário pelo menos que tivéssemos superado ou em vias de superar ou a caminho de superar a hegemonia do capital financeiro sobre a economia nacional e/ou que tivéssemos superado algum dos traços fundamentais herdados do período anterior (a ausência de reforma agrária, por exemplo). Infelizmente, não é este o caso, por mais exitosas que possam ser as nossas políticas de governo.
A terceira parte do projeto de resolução é dedicada, novamente, a exaltar as “conquistas do primeiro mandato”. Infelizmente, o que poderia ser uma descrição sóbria de avanços reais, é colocado a serviço de provar que “o Governo Lula é de esquerda e a negação disso revela a falta de compreensão dos avanços propostos e alcançados nesses anos de mandato”.
Entre as “conquistas” obtidas no primeiro mandato, a resolução lista:
a) a “auto-suficiência em petróleo”, que teria superado “a vulnerabilidade decorrente das oscilações do mercado internacional do óleo combustível”;
b) um novo modelo de gestão para o setor elétrico, que parece uma estrada para o Nirvana, pois garantiria “as condições para evitar déficits no fornecimento de energia elétrica aos consumidores, com tarifas mais baratas no futuro e atento aos danos provocados ao meio ambiente por projetos mal-elaborados”;
c) os avanços no gás e no biodiesel, que conteriam “uma política de inclusão social que beneficia a agricultura familiar e contribui para a desconcentração da renda no país”;
d) o programa Brasil Alfabetizado, a aprovação do FUNDEB, a distribuição de livros didáticos e merenda escolar no ensino médio, a criação do PROUNI, as novas universidades públicas, o PROJOVEM, o crescimento do emprego formal, o aumento real do salário mínimo, o programa Luz para Todos em 2004, o Fome Zero e o Bolsa Família, 143 mil cisternas, investimentos em ferrovias, ampliação e modernização de aeroportos, melhoria da infra-estrutura em 20 portos e início do processo de recuperação da malha viária, significativos os avanços na saúde, aumento significativo dos recursos para habitação popular e saneamento e o fortalecimento da Federação.
A resolução cita, também, a total prioridade para a América Latina, a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, o fortalecimento do Mercosul e a “colaboração com vizinhos como Venezuela, Bolívia, Equador, Colômbia e Haiti”.
A terceira parte conclui dizendo que “essas conquistas são importantes, mas, sem dúvida, representam apenas o início da mudança pela qual o Brasil precisa passar”.
Os avanços obtidos em nosso primeiro mandato são reais. Os problemas, infelizmente não citados, também são reais. O problema é que este tipo de inventário não resolve nosso problema, que não é –como parecem pensar os autores do projeto de resolução— a dúvida sobre se vale ou não a pena apoiar o governo.
Esta dúvida não existe. O que existe é a necessidade de ganhar a disputa que se trava, no interior do governo e de sua base, entre o “crescimentismo” e o “desenvolvimentismo”. Bem como a disputa entre o “desenvolvimentismo” tradicional e o “desenvolvimentismo democrático-popular”.
Quando o texto reconhece que “o Brasil está crescendo, criando empregos, mas a qualidade do emprego está caindo” e alerta que “temos de pensar nesse tema com maior profundidade”, seria bom começar perguntando se esta constatação não deveria nos levar a relativizar, um pouquinho pelo menos, os “avanços econômicos” exaltados no projeto de resolução.
Nosso problema principal, ademais, é político: como criar a correlação de forças necessária para transformar o país.
Não deixa de ser curioso, neste sentido, que o inventário não inclua temas centrais como a reforma política, a Comunicação e a Defesa.
É sintomático, também, que o capítulo “movimentos sociais” mereça dois ralos parágrafos, onde podemos ler o seguinte: “mesmo quando houve conflito entre as partes, o que é natural numa democracia, a postura do Governo Lula representou um enorme avanço, reconhecido por todos os movimentos sociais do país, quando é feita a comparação com governos passados”.
O capítulo que o projeto de resolução dedica ao “segundo mandato” diz que “além da reforma política e de mudanças na política econômica – com predominância do desenvolvimento sobre a estabilidade – temos de lutar por uma ampla reforma do Estado brasileiro”.
Os leitores ficam sem entender por qual motivo devemos mudar a política econômica, que até então vinha sendo descrita de maneira tão elogiosa. Afinal, se o segundo mandato deve garantir a predominância “do desenvolvimento sobre a estabilidade”, é porque isto não ocorria antes, certo?
Os leitores também ficam sem entender por qual motivo a “batalha ideológica em torno do PAC” está limitada a saber se “o Estado pode ou não financiar e planejar o desenvolvimento”.
Afinal, é incorreto sugerir que a “direita tucano liberal” quer que “o Estado apenas financie, mas não planeje”, enquanto o PT entenderia que o Estado deve “financiar e planejar”. A batalha em torno do Estado é mais ampla do que isto e envolve, com destaque, um tema que foi central nas eleições de 2006: as privatizações.
Curiosamente, o projeto de resolução que estamos analisando não informa qual o seu ponto de vista sobre isto.
Um “partido de pernas firmes” (imagem meio esquisita, mas isso é outro problema) precisa pelo menos ter idéias firmes, inclusive sobre a necessidade de recuperar o controle estatal sobre áreas inteiras da economia, que foram privatizadas durante o período neoliberal.
Meio perdido neste capítulo, encontramos o seguinte parágrafo: “é preciso criar o mercado interno que, com a integração da América do Sul, dê dinamismo ao capitalismo brasileiro e promova outro tipo de reforma. A partir daí poderão surgir outros temas em discussão, aparentemente proibidos hoje, como a propriedade social e o caráter da empresa privada. Cria-se, então, uma perspectiva socialista e não apenas de reformas no capitalismo”.
Como na questão das mudanças na política econômica, o parágrafo acima é quase uma confissão de culpa. Afinal, se estamos diante de um “governo de esquerda”, por qual motivo haveria “temas aparentemente proibidos hoje”, que só poderão surgir na discussão depois que criarmos uma nova dinâmica no desenvolvimento do capitalismo brasileiro?
Ademais, como tratar de maneira tão superficial e rápida, algo que constitui na verdade o núcleo central do problema, ou seja: como governar um país capitalista e criar uma dinâmica que permita colocar em pauta o socialismo, e não apenas reformas no capitalismo?
Infelizmente, a questão fica sem resposta, pois o projeto de resolução, ao apresentar as tarefas para o período, se limita a reproduzir a reflexão produzida pelo conjunto do Partido para o processo eleitoral de 2006.
Neste ponto do projeto de resolução, repetem-se os eixos que “sintetizaram nossos compromissos com o povo brasileiro” na campanha de 2006, eixos que “continuam válidos e devem ser ratificados pelo III Congresso do PT”: o “combate à exclusão social, à pobreza e à desigualdade”, o “aprofundamento do novo modelo de desenvolvimento: crescimento com distribuição de renda e sustentabilidade ambiental”, o “Brasil para todos. Educação massiva e de qualidade. Cultura, comunicação, ciência e tecnologia como instrumentos de desenvolvimento e de democracia”; a “ampliação da democracia”, a “garantia da segurança para os brasileiros e as brasileiras” e a “inserção soberana no mundo”.
Segue-se uma relação de pontos que constavam do programa de governo de 2006. Nada contra esta memória que, cá entre nós, serve para perceber a distância existente entre o programa eleitoral e o que fazem algumas áreas do governo.
Mas é preciso perguntar se não constitui um brutal erro colocar, como “limite” da elaboração do Partido, aquilo que apresentamos na campanha eleitoral.
O único ponto onde isto não ocorre é, exatamente, o penúltimo capítulo do projeto de resolução, que trata da reforma política. Nele se afirma “que o PT envidará todos os esforços possíveis na convocação de uma Constituinte exclusiva e soberana para fazer as mudanças necessárias”.
Sem uma reforma política, a estratégia de acúmulo de forças pela via institucional encontrará cada vez mais dificuldades. Neste sentido, a defesa da Constituinte significa uma continuidade na elaboração estratégica do Partido.
Entretanto, a defesa de uma Constituinte significa um passo além da “estratégia de centro-esquerda” adotada entre 1995 e 2005. Esta estratégia não convive bem, como sabemos, com rupturas, nem mesmo institucionais. A defesa de uma Constituinte é o reconhecimento prático de que esta estratégia esgotou-se.
Infelizmente, o projeto de resolução apresentado pelos signatários de “Construindo um novo Brasil” não percebe isto. Retoma o socialismo, mas reflete superficialmente sobre o assunto. Defende a Constituinte, mas não vincula isto à necessidade de mudar de estratégia. E, no tema da construção partidária, apresenta algumas propostas que reduzem a democracia, indo na contra-mão das reflexões que a imensa maioria do Partido fez, a partir da crise de 2005.
PT: concepção e funcionamento
O projeto de resolução da “Construindo um novo Brasil” sobre “PT: concepção e funcionamento” começa afirmando que o 3º Congresso Nacional do PT tem “a tarefa de preparar o PT para a próxima década de enfrentamentos políticos e transformações no país. O programa do PT é de longo prazo e as resoluções aprovadas aqui visam ultrapassar o horizonte eleitoral”.
Ao contrário disso, o projeto de resolução sobre Brasil apresentado por “Construindo um novo Brasil” se limita a reproduzir o programa de governo apresentado em 2006. Portanto, limita-se ao horizonte eleitoral, exceto pelo importante tema da Constituinte exclusiva.
Em seguida, o texto afirma que “para que o PT contribua para o aprimoramento da democracia brasileira e para as transformações sociais necessárias, é preciso que o projeto político por nós defendido tenha capilaridade na sociedade. Isto supõe a construção de hegemonia, não apenas de maiorias políticas. O mesmo se dá em relação ao partido”.
Este raciocínio é extremamente perigoso, porque estende ao interior do Partido a mesma lógica de disputa política que o PT adota na sociedade. Embora haja e tenha que haver vínculos, há também diferenças importantes. Na sociedade, nos defrontamos com inimigos políticos e classes antagônicas. A luta por hegemonia na sociedade se dá num ambiente e entre protagonistas muito diferentes, portanto, daqueles existentes no ambiente partidário.
Quem não percebe esta diferença, acaba tratando a militância petista como tratamos, na sociedade, o PSDB ou o PSOL.
O projeto de resolução da “Construindo um novo Brasil” sobre “PT: concepção e funcionamento” afirma que “a construção de maiorias partidárias, que são muito importantes para o funcionamento das instâncias, não podem se estabelecer em detrimento desse projeto de hegemonia, que pressupõe a conquista de espaços pela força do argumento e da elaboração política”.
Claro que maioria sem hegemonia é pura dominação. O problema é que, como vimos antes, “Construindo um novo Brasil” está com dificuldades para construir sua hegemonia, pois para isso teria que ter uma estratégia e um programa mais claros do que os apresentados nos textos sobre socialismo e sobre o Brasil.
Talvez por isto, por não ter as pré-condições necessárias para exercer sua hegemonia, a “Construindo um novo Brasil” acabe propondo algumas medidas organizativas que vão na contra-mão das necessidades do Partido.
Comecemos pelo diálogo com os movimentos sociais, fundamental e estratégico. Ele depende principalmente da política, não da organização de setoriais. Mas é claro que a organização dos setoriais é importante e pode fazer a diferença em algumas situações.
Curiosamente, o texto da “Construindo um novo Brasil” --ao invés de tomar como base o documento apresentado ao Congresso pelos setoriais-- prefere apresentar uma proposta completa e bastante complexa. Este mesmo equívoco de procedimento, típico de quem pretende dominar, não hegemonizar, se repete no caso de outras secretarias e setoriais.
Melhor seria se a “Construindo um novo Brasil” tivesse deixado a discussão sobre estes temas para o Congresso, tomando como base os textos apresentados pelos coletivos partidários.
O projeto de resolução da “Construindo um novo Brasil” sobre “PT: concepção e funcionamento” contém idéias interessantes e outras nem tanto, que lembram um pouco as reformulações estatutárias propostas por Augusto de Franco durante o primeiro congresso do PT. É o caso do Cadastro Nacional de Filiação Setorial e do Comitê Permanente Intersetorial, que correm o risco de burocratizar, ao invés de democratizar e agilizar.
As propostas mais incorretas estão no capítulo que trata das direções partidárias: a) renovar a direção de 4 em 4 anos; b) criar conselhões, como o Conselho Nacional Consultivo com eleitos do PT e os Comitês Permanentes Intersetoriais; c) a redução no tamanho das Comissões Executivas Estaduais e Nacionais; d) a eleição individual dos integrantes dos Conselhos Fiscais e dos Conselhos de Ética. Isto para não falar da ausência de menção ao PED em 2007 e à Corregedoria.
Destas propostas, a que causa mais espécie é a relativa aos conselhos Fiscal e de Ética. A eleição por chapas garante que haja proporcionalidade nestas instâncias. A eleição nominal pode conduzir a instâncias sem pluralidade e, por decorrência, com baixa transparência. Depois de tudo o que vivemos na crise de 2005, é uma proposta desastrosa.
Um projeto de resolução capaz de perceber a necessidade de “reestruturar as atuais Secretarias de Finanças e Planejamento por instâncias coletivas, obrigatoriamente compostas por, no mínimo, três membros, eleitos pelo respectivo diretório, respeitada a cota de gênero”, não pode adotar o procedimento oposto no caso das comissões de ética e fiscal.
Aritmética e álgebra
Frente a tudo isto, concluo que o problema é que nossos amigos da “Construindo um novo Brasil” preocupam-se com aritmética, quando o Partido defronta-se com problemas algébricos.
O PT teve duas maiorias até hoje. Uma, de 1983 a 1990: a "Articulação". Outra, de 1995 a 2005: o "campo majoritário". Ambas tinham maioria absoluta na direção e tinham uma estratégia clara.
A estratégia da "Articulação" estava expressa nas resoluções do V e do VI encontros nacionais. A estratégia do "Campo Majoritário" está traduzida principalmente nos programas de governo de Lula, em 1998 e 2002, bem como na “Carta aos Brasileiros”.
Em 2005 o "Campo Majoritário" perdeu sua maioria absoluta. Isto é um problema deles. O problema do Partido é que a estratégia por eles defendida esteve por detrás da vitória
de 2002, mas também esteve por detrás das dificuldades do primeiro mandato Lula, da crise de 2005, da quase destruição do governo e do PT. E essa estratégia, embora esgotada, não foi substituída por outra.
Esse duplo esgotamento (da maioria e da política da maioria) abriu um período de transição na vida do PT. Vivemos, hoje, um período semelhante ao período entre 1990 e 1995, em que o PT não tinha nem maioria clara, nem estratégia clara.
Esta transição vai até 2010. Ali se encerrará um período na história do PT. Não se trata apenas do resultado das eleições presidenciais. Trata-se de saber se o PT continuará a ser ou não o pólo aglutinador do campo democrático-popular no Brasil, papel que ocupamos desde 1989, pelo menos. Trata-se de saber, ainda, se o campo democrático-popular continuará polarizando ou não a luta política no país, lembrando que durante os primeiros 100 anos da vida republicana do Brasil (1889-1989), a esquerda nunca ou quase nunca ocupou este papel. Trata-se, finalmente, de saber se o governo Lula foi um breve hiato ou se abriu mesmo um novo período na história do Brasil.
O desafio posto para todas as tendências do PT é ajudar a construir, na luta política e social, uma nova estratégia, que nos capacite a continuar polarizando a luta de classes no país. Fizemos isso, do final dos anos 80 até agora. Acontece que esta polarização se traduzia, na prática, na candidatura presidencial de Lula, ao redor da qual se reuniam todas as forças políticas do chamado campo democrático-popular.
Lula não será candidato a presidente em 2010. Logo, este "fator catalizador" intermediário não existe mais. Este problema pode ser superado, através das seguintes variantes, isoladas ou combinadas: a) se Lula chamar para si a tarefa de organizar a sucessão e se fizer isso em favor de uma candidatura petista; b) se algum pré-candidato petista tiver programa, força e audácia suficientes para "sair na frente", agregando ao seu redor os apoios necessários para ir ao segundo turno em 2010; c) se a direção partidária, no sentido amplo desta palavra, conseguir apresentar ao conjunto do Partido e ao conjunto de nossa base social e eleitoral, inclusive aos nossos aliados, uma perspectiva programática e estratégia que seja agregadora.
Esta terceira variante passa pelo 3º Congresso do PT, passa pela futura eleição da próxima direção, passa pela capacidade política de cada uma das tendências do Partido. Acontece que a maior dessas tendências --refiro-me aos signatários da tese "Construindo um novo Brasil"-- não estão conseguindo dar conta do recado. Alguns dentre eles parecem mais preocupados em tentar recuperar a maioria (a aritmética), do que em construir uma nova estratégia (a álgebra).
Eles certamente perceberam que é preciso uma nova estratégia. Por isto defendem com ênfase o socialismo, coisa que não faziam antes. Por isso falam em convocação de uma Constituinte, o que vai na contra-mão da antiga política de centro-esquerda. Falam em candidatura petista em 2010, o que em certa medida contradiz sua antiga política de alianças. Mas não conseguiram propor, até agora pelo menos, uma nova estratégia.
Novamente, este é um problema deles. Mas passa a ser um problema do Partido se eles utilizam sua maioria, relativa ou absoluta, para cristalizar posições e blocar debates. Esperamos, sinceramente, que esta atitude não prevaleça, para o bem do Partido.
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