Roteiro de exposição feita em atividade da Fisenge, dia 15 de março de 2019.
O presidente Bolsonaro tomou posse no dia 1 de janeiro de
2019. Esta análise está sendo feita, portanto, antes de se
completarem os primeiros 100 dias de governo.
Neste curto espaço de tempo, o
presidente se envolveu em inúmeras e desgastantes polêmicas, a mais recente das
quais é sua intimidade com os assassinos da vereadora Marielle Franco (PSOL,
RJ).
São tantas as polêmicas e tamanho o desgaste, que há analistas que falam
que o presidente não chega ao final do mandato e que seu governo estaria
desmoronando.
Para evitar uma análise impressionista, marcada pelos
acontecimentos conjunturais, é útil enquadrar o governo Bolsonaro em
uma perspectiva histórica.
Quando olhamos a trajetória através da qual se
construiu a sociedade brasileira, percebemos quatro traços destacados: a
dependência externa, a desigualdade social, o déficit democrático e o
desenvolvimento conservador.
Estas quatro traços não se impuseram naturalmente,
espontaneamente, sem luta. Sempre houve resistência, sempre houve luta por
outros caminhos para o Brasil. Essa luta, do ponto de vista
político-ideológico, foi travada a partir de quatro diferentes tradições: o
desenvolvimentismo progressista, o nacionalismo popular, o democratismo radical
e o socialismo. Cada uma destas tradições corresponde, por sua vez, a
diferentes frações, classes e blocos sociais.
As tradições descritas e as correspondentes forças sociais
nunca conseguiram impor uma derrota global às classes dominantes brasileiras.
Ou seja, o poder de Estado no Brasil Republicano nunca passou às mãos da maioria do povo brasileiro.
O máximo que aquelas tradições e forças descritas conseguiram, ao longo de toda a nossa
história republicana, foi conquistar pelo voto e controlar por breve período de
tempo, o governo federal.
Isto ocorreu por três vezes: no governo Getúlio Vargas
(1950-1954), no governo João Goulart (1961-1964) e nos governos Lula e Dilma
(2003-2016). Nos três casos, foram governos marcados por contradições internas,
insuficiências, concessões e alianças com setores das classes dominantes. Nos
três casos, a experiência de governo de setores populares foi encerrada com um
golpe de Estado. Demonstrando que não existe, ou é muito pequena, a margem de
manobra para uma experiência reformista no Brasil.
Por golpe de Estado, nos referimos a uma ação do núcleo duro
do aparato de Estado (constituído pelos militares e por outros setores da
burocracia permanente de Estado) contra aqueles que ocupam através do voto o
governo. No golpe de Estado, o núcleo duro do Estado age em nome dos interesses
da classe dominante, que detém o poder efetivo, contra aqueles que detém
temporariamente o governo.
Cada golpe tem sua história. No caso do golpe mais recente,
ele foi realizado em três fases: o impeachment sem crime de responsabilidade,
que afastou a presidenta Dilma em 2016; a condenação, prisão e interdição de
Lula, ocorrida ao longo de 2018; e a eleição de Jair Bolsonaro, em outubro de
2018. A eleição de Bolsonaro não era inevitável: contra Lula, ele perderia; contra
Haddad, ganhou graças a um tsunami de fake news; e mesmo assim, porque antes
houve um derretimento das demais candidaturas conservadoras.
O golpe de 2016-2018, como os outros, foi possível graças a
uma ampla frente anti-democrática, composta pelos políticos conservadores,
pelos setores médios tradicionais, pela mídia oligopolista, pelo partido
judiciário, pela cúpula militar, pelas empresas disfarçadas de igrejas, pelos
governos dos EUA e de Israel, pelo grande capital. O clã familiar dos Bolsonaro
foi um instrumento de uma operação mais ampla, não foi seu demiurgo, nem é seu
arcabouço.
Visto desta perspectiva histórica, o golpe que desembocou na eleição de Bolsonaro e na constituição de seu
governo não são, portanto, um ponto fora da curva. Mas há pelo menos duas
novidades importantes, em relação aos golpes de 1954 e de 1964: a) pela primeira
vez, assistimos a uma vitória eleitoral da extrema-direita; b)nunca antes em
nossa história o crime organizado chegou tão perto da presidência da República.
Qual o programa do governo Bolsonaro (e da frente ampla
golpista que o elegeu)? Este programa pode ser resumido em três ideias:
aumentar a taxa de dependência, aumentar a taxa de exploração e aumentar a taxa
de opressão política.
Este programa vem sendo executado pelo governo, desde o
primeiro dia. Submissão aos EUA, ao ponto de colocar o Brasil em pé de guerra
contra a Venezuela. Adoção de medidas que aumentam o desemprego, reduzem o
salário direto e indireto, destroem o sistema público de aposentadoria em
benefício dos interesses do capital financeiro. Estímulo à violência e a
militarização da vida cotidiana, ataque contra as liberdades civis e os
direitos humanos, agressão contra os sindicatos e os partidos de esquerda,
ataques contra o pensamento democrático e socialista.
Os impactos disto na sociedade brasileira são e serão
tremendos, caso este programa não seja detido e o governo Bolsonaro não seja
derrubado. Não apenas serão acentuados os quatro traços citados no início deste
texto (dependência, desigualdade, déficit democrático e desenvolvimento
conservador). Na prática, seremos levados de volta aos anos 1920, fazendo do
Brasil um país periférico, uma fazenda e uma empresa de mineração. E a volta
dos militares ao centro da político, mais as medidas que visam impedir que a
esquerda volte ao governo federal empurram o Brasil para uma situação política
de profunda instabilidade e crise, econômica, social e política.
O governo Bolsonaro não é, portanto, um governo “normal”.
Ele encerra um ciclo inédito na história do Brasil Republicano. Em 130 anos de
República (1889-2019), o Brasil viveu três situações: 81 anos em que apenas os
partidos da classe dominante podiam disputar e vencer eleições; 36 anos de
ditaduras assumidas, em que nem mesmo os partidos da classe dominante podiam disputar e
vencer eleições para controlar o governo federal; e 13 anos em que partidos ligados à classe trabalhadora não apenas puderam disputar, mas também conseguiram vencer e governar o país. É este ciclo
inédito de 13 anos que o governo Bolsonaro encerrou.
Isto não quer dizer que Bolsonaro chegará até o final de seu mandato. Nem quer dizer que o governo Bolsonaro vai conseguir executar seu programa. Quando falamos que o governo Bolsonaro encerra um ciclo, queremos dizer que sua chegada (em decorrência do golpe 2016-2018) e sua existência significam que houve uma alteração profunda nas condições que nos permitiram vencer 4 eleições presidenciais seguidas e governar o país por 13 anos.
Dito de outra maneira: mudou a estratégia da classe dominante, mudaram as condições da luta de classes no Brasil, tem que mudar a estratégia das classes trabalhadoras, da esquerda e particularmente do PT.
O governo Bolsonaro chega até o final? Vai conseguir implementar seu programa? A que custo? Através de que meios?
A resposta a estas perguntas não está dada. Dependerá de
três variáveis: a evolução da situação internacional, a manutenção (ou não) da
unidade entre as forças que deram o golpe militar e a força (e sentido) da
oposição ao governo Bolsonaro.
As forças de oposição ainda estão profundamente divididas,
acerca de como avaliam o passado recente (os 13 anos de governos Lula e Dilma),
as causas da derrota (especialmente o peso relativo dos erros do PT nessa
derrota), o significado da derrota (foi uma derrota eleitoral, ou foi uma
derrota estratégica?) e, derivando disto tudo, qual deve ser a tática e qual
deve ser a estratégia de enfrentamento ao governo Bolsonaro.
Bolsonaro pode não chegar ao fim de seu mandato, como
Fernando Collor e Jânio Quadros não chegaram. Mas isso não quer dizer que a
frente ampla golpista e o governo resultante não consigam aplicar seu programa.
Bolsonaro é descartável. O exoesqueleto do governo é composto por mais de 60 militares ocupando postos estratégicos no
governo federal, inclusive a vice-presidência da República.
Por outro lado, o objetivo da esquerda não é apenas resistir. O objetivo da esquerda é triplo: resistir, derrotar o governo Bolsonaro e a coalizão que o sustenta, voltar a governar o Brasil.
Tendo tudo isso em conta, a oposição deve se preparar para uma maratona, não
para uma corrida de 100 metros.
A maratona vai durar quanto tempo? O tempo
necessário para que a esquerda recupere a influência perdida na classe
trabalhadora.
Nas eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro teve 57 milhões de
votos, o candidato da esquerda teve 47 milhões e 31 milhões se abstiveram. Nos
melhores momentos, em 2006, Lula chegou a ter mais de 57 milhões de votos. Em
números, é disso que se trata. Mas politicamente falando, é muito mais do que
isto. Trata-se de recuperar presença organizada e influência ideológica em
amplos setores do povo.
Nos próximos dias, semanas e meses, haverá grandes batalhas
no Brasil: contra a reforma da previdência, contra as medidas de (in)segurança
propostas pelo governo, em defesa dos direitos sociais e humanos, em defesa das
liberdades democráticas, em defesa da paz e da Venezuela, em defesa de Lula
Livre e pela anulação de suas penas.
Em todas e cada uma destas batalhas, poderemos derrotar o
governo Bolsonaro. Se isto ocorrer, as forças que apoiam o governo Bolsonaro terão que
decidir se recuam ou se dobram a aposta. Neste caso, pode haver um endurecimento ditatorial explícito. Também por isso é necessário investir na politização e na organização das classes trabalhadoras.
É neste contexto que deve ocorrer o Congresso do PT e a renovação das direções partidárias. Precisamos lutar para mudar as concepções que dominaram o Partido nos últimos anos. Precisamos de um partido militante e de combate, de direções capazes de contribuir para organizar a luta, de um programa de reformas estruturais articuladas com o socialismo, de uma oposição radical ao governo de extrema-direita, de disposição para lutar pelo poder.
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