sexta-feira, 20 de abril de 2018

Quem dera fosse bravata...

http://www.ihu.unisinos.br/578145-o-capitalismo-humano-de-ontem-e-a-fonte-do-capitalismo-selvagem-de-ontem-nas-periferias-do-mundo-e-de-hoje-no-mundo-inteiro-entrevista-especial-com-valter-pomar



- O que o fim a União Soviética representou e quais foram suas implicações para as esquerdas latino-americanas? Aquele momento histórico ainda tem um peso significativo para as esquerdas?

O fim da União Soviética teve como contraparte a vitória dos Estados Unidos, o fortalecimento das políticas neoliberais e uma expansão das relações capitalistas para novas regiões. Ou seja, consequências econômicas, sociais, políticas e militares. Além disso, o fim da União Soviética foi visto por amplos setores da população, não apenas por quem se considerava de esquerda, como “prova” de que uma sociedade sem exploração nem opressão era uma utopia, um sonho, uma quimera, algo irrealizável. Isso facilitou a conversão ideológica de amplos setores da esquerda, enfraqueceu a credibilidade das interpretações inspiradas no marxismo e fortaleceu um revisionismo histórico favorável ao capitalismo. Tudo isto, junto e misturado, afetou a esquerda latino-americana. Afetou, é importante dizer, em menor grau do que afetou a esquerda europeia. Afetou em menor grau “graças” à brutalidade dos Estados Unidos e das oligarquias de cada país de nosso continente, graças à dependência e à desigualdade imposta pelo capitalismo realmente existente na região, assim como graças à resistência de Cuba. Visto de uma perspectiva histórica, o fim da URSS abriu um período de defensiva estratégica para a luta pelo socialismo em todo o mundo. Nesse período ainda estamos, inclusive na região. Entre 1998 e 2008, muita gente de esquerda não podia ou não queria enxergar isso. Hoje, a maioria parece perceber.

- O senhor disse em artigo recente que quando as esquerdas começaram chegar a postos de governo a partir dos anos 1998, elas “não conseguiram superar a confusão ideológica e também não conseguiram resolver o déficit teórico que se expressa em três terrenos fundamentais: o da avaliação das tentativas de construção do socialismo do século XX, o da análise do capitalismo do século XXI e o da elaboração de uma estratégia adequada ao novo período histórico”. Que tipo de confusões ideológicas e teóricas havia em relação a esses três pontos fundamentais e qual é a origem dessas confusões?

As tentativas de construir o socialismo no século XX foram todas feitas em países em que as forças produtivas capitalistas haviam se desenvolvido pouco. Isso teve uma série de consequências, entre as quais a principal foi um alto nível de centralização política e estatal, na tentativa de superar o atraso econômico. Frente a este fato, parte da esquerda reagiu negando que aquele socialismo predominantemente estatal fosse socialismo. Outra parte reagiu tratando aquele socialismo estatal como “modelo” a ser seguido. As mesmas atitudes se fizeram presentes quando a URSS acabou, uns superestimando (“o fim de todo o socialismo”), outros subestimando (“o fim de algo que nunca teria sido socialismo”). Ambas atitudes decorrem da incompreensão de que o socialismo é um período de transição, no qual coexistirão mais ou menos conflituosamente relações capitalistas e relações comunistas. Esta incompreensão segue existindo hoje, como se percebe nas diferentes análises que se fazem acerca da China. O mais importante, entretanto, é que o foco nos êxitos e fracassos do socialismo do século XX fez com que parte da esquerda fraquejasse na análise crítica daquilo que é o fundamental: o capitalismo, as contradições fundamentais entre capitalistas e trabalhadores, assim como o papel do Estado e do imperialismo. As debilidades na análise do socialismo e do capitalismo tiveram consequências estratégicas. Não é por acaso que tivemos mais êxitos das esquerdas antes do que depois da crise de 2008. O capitalismo do século XXI passou da expansão dos anos 1990 para uma crise brutal, que teve em 2008 seu (até o presente momento) pico mais agudo. E parte da esquerda está mais defensiva hoje do que estava antes...

- Que tipo de limites o mundo de hoje impõe às esquerdas, mesmo quando elas mantêm seu propósito socialista? Como esse propósito pode ser traduzido para o mundo contemporâneo? O que significa falar em socialismo nos dias de hoje? Esse propósito ainda tem espaço nos nossos dias?

Limites, sempre existiram. Alguns derivados da correlação de forças entre as classes e entre os Estados. Outros derivados do desenvolvimento material e da cultura política existente em cada sociedade. A grande questão não está nos limites impostos pelo mundo de hoje. A grande questão é a ameaça que paira sobre o mundo de hoje, se não pusermos limites ao capitalismo. A vida de bilhões de pessoas está ameaçada cotidianamente, por razões ambientais, militares, econômicas, sociais, políticas e ideológicas vinculadas à hegemonia do capitalismo. Num resumo: o mundo enfrenta problemas criados pelo capitalismo e que só podem ser superados numa ordem social em que a maioria decida o que produzir, como produzir e como distribuir a riqueza. Neste sentido, o fato de nós vivermos num mundo que é mais capitalista do que nunca foi, torna o socialismo mais atual do que antes. E ser realmente socialista no mundo contemporâneo tem o mesmo sentido fundamental que tinha há 150 anos: acabar com a exploração e com a opressão, colocar os conhecimentos acumulados pela humanidade a serviço de toda a humanidade, fazer com que os produtores controlem a produção e a distribuição, tratar o planeta como casa comum de toda a humanidade. O socialismo é mais necessário do que nunca foi.

- Alguns intelectuais de esquerda têm afirmado que hoje não há mais espaço para revoluções, e que a função da esquerda na política precisa estar mais associada à realização de reformas. Concorda com esse tipo de visão?

Isto não é uma visão, é uma ilusão. Sou totalmente a favor de lutar por reformas, mas até para ter êxito pleno na luta por reformas, é preciso compreender que as revoluções seguem sendo indispensáveis e inclusive inevitáveis.
Mas vamos por partes: será mesmo que não há mais espaço para revoluções? A revolução seria um fenômeno raro, um fenômeno do passado, algo impossível de ocorrer nos dias atuais? Olhemos para a história: entre 1642 e 1979, houve vários períodos em que as reformas e contrarreformas predominaram sobre as guerras e as revoluções. Mas estes períodos “reformistas” acumulavam material explosivo para uma próxima rodada de instabilidade que, em alguns casos, resultava em guerras e revoluções.
Este mesmo material explosivo vem sendo acumulado nas últimas décadas. Claro que nem todo capitalismo em crise desemboca numa revolução, assim como nem toda revolução resulta em vitória revolucionária. Mas em tempos turbulentos como os que estamos vivendo, profetizar que não há mais espaço para revoluções é mais ou menos como ouvir Noé dizendo que “antes de mim, o Dilúvio”, para não falar da famosa frase sobre pães e brioches.
Nos últimos quarenta anos o capitalismo – como modo de produção, exploração, circulação – tornou-se mais hegemônico do que nunca. Exatamente porque ele é mais hegemônico do que nunca, suas contradições também são mais potentes do que nunca foram, sua “instabilidade” se tornou mais aguda. Mas como, apesar de profundamente contraditório, o capitalismo segue forte e assim esteve por décadas, os elementos subjetivos (a classe trabalhadora, as organizações populares, a intelectualidade de esquerda) seguem em parte submetidos à hegemonia capitalista. Talvez seja por isso – a debilidade dos elementos subjetivos – que tanta gente na esquerda conclua que hoje a revolução não seria mais possível. Ou ainda: antes havia um sujeito revolucionário, hoje não há mais. Aliás, tem gente que chega a esta conclusão se olhando no espelho.
Mas quem se dê ao trabalho de estudar os processos revolucionários realmente existentes, vai perceber que existe uma dinâmica muito mais complexa entre os fatores ditos objetivos e subjetivos. O determinante nesta dinâmica são os fatores objetivos, vinculados à maneira de ser do capitalismo, não os fatores subjetivos, vinculados à maneira como as pessoas enxergam o capitalismo. Os fatores objetivos (por exemplo, o desenvolvimento acumulado das forças produtivas, a velocidade e a natureza da acumulação de capital etc.) determinam a capacidade que o capitalismo tem de compensar, neutralizar, reduzir os danos causados pelos fatores destrutivos que ele próprio gera. Dito de outra forma, há momentos em que o capitalismo perde grande parte de sua capacidade de auto-reforma. Vivemos num destes momentos.
Nestes momentos, em que o capitalismo se torna mais refratário do que o normal às reformas, nestes momentos a revolução se torna possível e necessária, o que não a converte em provável, nem converte sua vitória em inevitável. Nestes momentos, se muita gente acreditar que uma revolução não é possível, isto não impedirá que uma revolução ocorra, apenas tornará muito mais difícil que ela triunfe.
Agora vejamos o assunto de outro ponto de vista: qual a função da esquerda? Lutar por reformas? Em parte sim, com certeza. Mas a luta por reformas enfrenta uma resistência brutal das classes dominantes. Grande parte da repressão cotidiana que a classe dominante exerce, ela o faz contra as reformas, não contra as revoluções. Até porque revoluções são fenômenos raros e os revolucionários são minoria, pelo menos na maior parte do tempo.
Mas suponhamos que a luta por reformas tenha êxito. Qual o máximo de mudanças que ela é capaz de atingir? Já temos 200 anos ou mais de experiências para saber que este máximo é... o capitalismo. E o capitalismo “humano” de ontem é o fonte do capitalismo “selvagem” de ontem (nas periferias do mundo) e de hoje (no mundo inteiro).
Portanto, falemos claro: quem coloca como seu horizonte máximo lutar por reformas, precisa saber e dizer que deixou de lado a luta por uma sociedade sem capitalistas e sem capitalismo.
Além disso, esta mesma experiência histórica, de dois séculos, comprova fartamente que as maiores “reformas” foram arrancadas quando uma parte importante da classe trabalhadora e da esquerda lutava pela revolução e, graças a isso, alargou o limite do possível.
Portanto, o que devemos fazer é lutar por reformas e pela revolução, tanto no sentido estrito quanto no sentido amplo da palavra. A revolução no sentido estrito da palavra é a derrubada da classe dos capitalistas, derrubada promovida pela classe que é, ao mesmo tempo, oprimida e explorada pelos capitalistas: a classe trabalhadora. A revolução no sentido amplo da palavra é a destruição do capitalismo e a criação de outro modo de produção: uma sociedade que planeja suas necessidades e suas atividades, uma sociedade organizada para produzir valores de uso e não mercadorias, uma sociedade que supere toda forma de exploração e opressão – portanto, que supere não apenas o capitalismo, mas também a divisão da sociedade em classes.
Em vários aspectos, esta sociedade já começa a ser antecipada. A arquitetura do Sistema Único de Saúde é um exemplo disso. Mas nenhuma dessas “antecipações”, tomada isoladamente, será capaz de superar o capitalismo. Pelo contrário: todas as reformas de tipo “socialista” serão inevitavelmente sufocadas pelo capitalismo, se este não for superado de conjunto.
Algo parecido ocorreu na longa transição do feudalismo para o capitalismo. E também por isto a revolução burguesa capitalista foi, naquela época, possível e necessária.

- Neste mesmo artigo que citei anteriormente, o senhor menciona o livro de Luiz Dulci, Um salto para o futuro, como um registro das dificuldades de debater os problemas, as dificuldades e as ameaças que rondavam a esquerda em 2013. Ao longo desses anos, inclusive, muitos analistas, criticam a esquerda justamente por isso. Hoje, passados cinco anos, quais diria que foram as dificuldades da esquerda naquele momento? Por que não foi possível fazer esse debate interno?

O debate interno foi feito, o externo também. Foi feito um debate dentro e fora do PT, dentro e fora da esquerda. O problema não está, portanto, em que não tenha havido debate. O problema é que tenha prevalecido uma posição errada. Aliás, parte dos que criticam a ausência de debate, participaram deste debate fortalecendo duas posições incorretas. A primeira, majoritária no meu Partido, acreditava que era possível fazer mudanças sem profundas rupturas com as estruturas econômicas e políticas através das quais os capitalistas exercem seu domínio. Logo, criam possível e necessária uma aliança com setores da classe dominante. A segunda posição, majoritária naquela esquerda que fazia críticas ao petismo, acreditava que o PT estaria fazendo um governo tão moderado, que beneficiaria tanto os capitalistas e o imperialismo, que estes não teriam motivo para tentar derrubar e destruir o PT. Ambas posições estavam profundamente erradas. O erro fundamental residia numa análise incorreta sobre a luta de classes no Brasil, especificamente sobre a atitude real da classe dominante e do imperialismo. No fundo, tanto os moderados quanto certos esquerdistas acreditavam que o lado de lá estaria disposto a fazer alianças estratégicas com alguém ou algum setor do lado de cá.


- Diante dos últimos acontecimentos políticos, inclusive com a prisão do ex-presidente Lula, como a ala da esquerda a qual o senhor pertence tem discutido a necessidade de adotar outra linha política? O que tem sido proposto nesse sentido? O que caracterizaria essa nova linha política?

A estratégia adotada pela maior parte da esquerda brasileira sempre foi criticada por um setor até agora minoritário da esquerda. Essa crítica se concentra, desde 1995, em três questões. Uma é programática: consideramos que não é possível ampliar, de maneira profunda e permanente, o bem estar do povo, a democracia, a soberania nacional e a integração regional, sem ao mesmo tempo combater o capitalismo e o imperialismo. Outra é estratégica: para viabilizar um programa democrático, popular, nacional e regional, precisamos reduzir o poder político da classe dos capitalistas e ampliar o poder político das classes trabalhadoras. Outra crítica é de natureza organizativa: uma estratégia de mudanças radicais pressupõe que as classes trabalhadoras estejam organizadas, mobilizadas e conscientes.
É por isso que nos debates programáticos, assim como nos balanços de governos, sempre questionamos: acabamos com a ditadura do capital especulativo e criamos um setor financeiro 100% público? Reduzimos o peso do setor primário-exportador e ampliamos o peso da indústria? Reduzimos o controle do setor oligopolista transnacional e aumentamos o peso dos setores médios nacionais? Ampliamos a oferta de bens e serviços públicos, ou só de bens e serviços de mercado? Quebramos os oligopólios e monopólios privados nos setores de comunicação, cultura e educação? Reestruturamos os aparatos de justiça, segurança e defesa? Acabamos com a influência do dinheiro nos processos eleitorais? Estimulamos que os eleitores da esquerda se organizassem nos sindicatos, movimentos e partidos? Ou convidamos nossas bases eleitorais e sociais a agir como “setores médios”, que buscam sua felicidade individualmente no mercado, comparecendo de dois em dois anos para votar? Difundimos uma cultura popular socialista de massas ou deixamos o terreno livre para a teologia da prosperidade?

- Em que consistem, de outro lado, as propostas de mudar os métodos de funcionamento da esquerda, e a proposta de recuperar os espaços perdidos junto à classe trabalhadora? Por que é importante recuperar esse espaço e que dificuldades vislumbra nesse sentido?

Não se muda o Brasil, nem o mundo, sem o apoio das classes trabalhadoras. Não se trata de maioria numérica, mas de maioria política e cultural organizada. A esquerda brasileira, especialmente o PT, conquistou esta maioria entre 2006 e 2010. Mas perdeu esta maioria, em parte por erros nossos, em parte por “acertos” de nossos inimigos. Entre os nossos erros, destacaria três: a) o de não ter percebido as mutações que as políticas neoliberais causaram nas classes trabalhadoras; b) o de não ter percebido que uma esquerda essencialmente eleitoral estaria deixando o terreno livre para que a direita, o crime e as igrejas conservadoras ocupassem espaço nos setores populares; c) o de não ter percebido que era preciso atrair os setores médios (que no fundamental são os setores melhor remunerados das classes trabalhadoras) através de políticas públicas de saúde, educação, cultura e transporte, que teriam que ser pagas através de forte tributação sobre os ricos.
Recuperar os espaços perdidos junto à classe trabalhadora, incluindo aí conquistar os setores que nunca chegamos a conquistar, exige não apenas um discurso, mas uma prática cotidiana militante. Algo bem diferente das campanhas eleitorais de dois em dois anos. E diferente também da dinâmica de mandatos parlamentares. E mesmo da ação de governos. Os partidos, sindicatos e movimentos populares terão que recuperar qualidades que já tiveram no passado. E terão que estudar e adotar medidas novas, para realidades novas. Mas, acima de tudo, precisarão recolocar a disputa cultural, de visão de mundo, ideológica, em primeiro plano. Uma esquerda pragmática e sem sal não será páreo para a direita profundamente ideológica que estamos enfrentando.

- Naquele mesmo artigo o senhor afirma que está aparecendo uma nova configuração social de luta de classes. Em que essa nova configuração se diferencia da antes? Qual é a proposta da esquerda diante dessa nova configuração e da formação de uma nova classe trabalhadora?

A nova configuração consiste em algo bem simples: de um lado, a burguesia de cada país e seus respectivos Estados estão se tornando mais belicosos. Por outro lado, as classes trabalhadoras de cada país estão tendo que reagir a isto. Em alguns casos, se limitando a preservar direitos e ganhos de alguns setores da classe, muitas vezes em detrimento de outros setores (migrantes, mulheres, trabalhadores desqualificados etc.). Noutros casos, defendendo direitos já existentes, mas também lutando por mudanças amplas na ordem política, econômica e social, mudanças que para serem conquistadas e mantidas exigem a formação de blocos nacional-populares, que podem ou não estar hegemonizados pela classe trabalhadora.
Frente a esta situação, as esquerdas não apresentam uma resposta única. Grosso modo, há setores que defendem rebaixar o programa e moderar a política; e há os que defendem a necessidade de aprofundar o programa e radicalizar a política. O bom senso pareceria indicar que é hora de rebaixar e moderar. Mas fazer isto seria errado: quando o lado de lá não tem limite, o único jeito de deter o incêndio reacionário é criando uma barreira de fogo.

- O que seria um posicionamento adequado da esquerda em relação às reformas propostas pelo governo Temer, como a reforma trabalhista e a reforma da previdência?

Adequado? Adequado é revogar tudo aquilo que foi aprovado no período golpista. Precisamos de mais direitos trabalhistas e de mais direitos previdenciários. O país é rico o suficiente para comportar isto. Em resumo: queremos ganhar a presidência da República em 2018, executar um programa de emergência financiado por parte das reservas internacionais, fazer um plebiscito para revogar as medidas golpistas e convocar uma Assembleia Nacional Constituinte.

- Qual diria que são as implicações políticas da prisão do ex-presidente para a esquerda em geral e para o PT?

Parte da esquerda brasileira, inclusive do PT, não acreditava que o lado de lá chegasse a este ponto. Da minha parte, sempre tive claro que eles prenderiam Lula. E não vão parar aí: a ofensiva inclui destruir o PT. De maneira mais geral, impedir que exista uma esquerda que seja alternativa de governo e que possa ser alternativa de poder.
No curto prazo, a prisão pode ter três desdobramentos. Se Lula puder ser candidato a presidente; se Lula não puder ser candidato mas puder fazer campanha; se Lula não puder ser candidato nem fazer campanha. Cada um destes desdobramentos exige uma tática específica. Da minha parte, defendo a posição aprovada no Diretório Nacional do PT: eleição sem Lula é fraude. Não devemos legitimar uma eleição presidencial que será vencida, por antecipação, pela direita. Ou até pela extrema-direita.
Aliás, acho bizarra a postura de alguns setores da esquerda que até ontem faziam críticas ao PT e ao mal-denominado lulismo, acusados de excessiva submissão aos processos eleitorais; mas que hoje tem medo de dizer que eleição sem Lula é fraude.

- Que leitura foi feita dentro do PT acerca da reação da sociedade brasileira em geral em relação à prisão do ex-presidente Lula?

Não há uma leitura, há várias. E a sociedade “são muitas”, como se diz de Minas Gerais. No que diz respeito a classe trabalhadora e aos setores populares, há quem ache a reação pequena, há quem ache enorme. Eu acho que está sendo uma reação compatível com aquilo que plantamos. Acostumamos parte de nossa base social a se manifestar votando. Pois bem: contra sol e chuva, Lula continua liderando as pesquisas eleitorais. Por outro lado, não acostumamos nem preparamos a nossa base social para fazer mobilizações politicas de massa, muito menos campanhas permanentes. Pois bem: nossas mobilizações de rua são menores do que o necessário, embora sejam expressivas, especialmente se levarmos em conta o boicote dos meios de comunicação.
Agora, quanto aos capitalistas e aos setores médios conservadores, estes estão divididos. Uma minoria de ultra-direita está eufórica com a prisão de Lula, quer sangue e manifesta isto publicamente. Outro setor compactua com a extrema direita, mas mantém um perfil mais baixo. Num certo sentido, são piores do que a extrema direita, porque são responsáveis pelo seu ascenso. Veja o que ocorreu no STF, na votação do habeas corpus, votado sob ameaça da mídia e de “pronunciamentos” militares.

- Diante das eleições presidenciais nos próximos meses, o que se pode esperar da esquerda? A tendência é que haja uma fragmentação ou a esquerda irá se unir em torno de uma candidatura?

O quadro geral das eleições é de fragmentação. Uma fragmentação maior entre os que apoiaram o golpe: a preços de hoje, são 16 em 21 pré-candidatos. Mas também uma fragmentação entre os que se opuseram ao golpe. Neste aspecto, 2018 lembra 1989. Se Lula não puder participar das eleições, esta fragmentação tende a prosseguir, em todo o espectro político. Agora, se a eleição for mesmo uma fraude antecipada, a questão central para a esquerda não é a definição da candidatura; mas sim a definição de uma tática nas eleições 2018 que nos prepare melhor para fazer oposição ao golpismo 2.0 que vai emergir das eleições fraudadas.


- Como avalia o possível cenário eleitoral deste ano?

Depende de Lula ser ou não candidato. Se Lula for candidato, ele estará no segundo turno e terá grandes chances de vencer a eleição. Claro que os golpistas farão de tudo para mantê-lo preso, impugnar sua candidatura, impedir sua campanha, vitória, posse e governo.
Agora, se Lula não for candidato, há grandes chances da extrema-direita estar no segundo turno. E veremos candidatos de direita, centro-direita e trânsfugas apelando para a responsabilidade do eleitorado petista em defender a democracia, o Estado de direito e a república...
Entretanto, o quadro geral é muito confuso, até porque há fatores internacionais que, sem trocadilho, podem colocar o mundo de ponta cabeça. De tédio não morreremos.

- Deseja acrescentar algo?

Sim, quero. Sou petista desde os anos 1980. Vi muita gente entrar e sair do PT. Vi muita gente profetizar o fim do PT. E hoje vejo muita gente trabalhando para conquistar o eleitorado do PT. O que isso demonstra, entre outras coisas, é que estavam errados aqueles que, nos últimos 20 anos, imaginavam que o PT ia ser ultrapassado pela esquerda. Não foi e sigo afirmando que não será. Claro, o PT pode ser atropelado pela direita. E saqueado em seguida.
O importante é ter claro que a classe trabalhadora brasileira precisa de um partido de massas como é o PT. E é a classe trabalhadora que vai decidir como o PT vai sobreviver a esta crise. A questão principal é saber com qual linha política o PT vai sobreviver. Afinal, tem muita gente dentro do PT que não aprendeu nada com o ocorrido e que segue defendendo uma linha moderada e domesticada. Esta gente é o que chamamos de “tendência suicida”. Assim como tem muita gente que contribuiu para esta situação que estamos vivendo e que até hoje não conseguiu entender como “aquilo” deu “nisso”.
Seja como for, da mesma forma como é fundamental lutar pela liberdade de Lula, pelo direito dele ser candidato e pela eleição de Lula presidente, também é fundamental defender o PT. O golpismo sabe que sem destruir o Partido, sua vitória não será completa. Nosso problema, portanto, é convencer o PT de que se faz necessário sufocar, esmagar e destruir completamente o golpismo, em todas as suas dimensões. Sem ilusões, sem dó nem piedade. Infelizmente, há quem considere que isto são bravatas. Quem dera pudessem ser. Quem dera!


Um comentário:

  1. Pode-se gostar mais ou menos das ideias e das posições de Valter Pomar mas é impossível negar sua capacidade de apresentar de forma clara e didática os principais problemas, dilemas e alternativas para a esquerda brasileira e de justificar suas próprias ideias e posições neste debate. No PT talvez apenas André Singer, do outro lado do espectro político petista, tenha essa mesma capacidade e clareza de idéias. Na minha opinião de eleitor e simpatizante de muitos anos do partido, entendo que um debate entre esses dois PTs, entre essas duas correntes de pensamento, seria ideal para propor novas estratégias para o PT dos próximos anos. É preciso fazer esse acerto de contas entre o chamado Lulismo e a crítica interna a ele. E acredito também que a solução dos atuais impasses e dilemas colocados pelo Golpe de Estado en curso seja não do tipo "ou isso ou aquilo", mas muito mais do tipo "isso e aquilo".

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