http://www.ihu.unisinos.br/578145-o-capitalismo-humano-de-ontem-e-a-fonte-do-capitalismo-selvagem-de-ontem-nas-periferias-do-mundo-e-de-hoje-no-mundo-inteiro-entrevista-especial-com-valter-pomar
Sim, quero. Sou petista desde os anos 1980. Vi muita gente entrar e sair do PT. Vi muita gente profetizar o fim do PT. E hoje vejo muita gente trabalhando para conquistar o eleitorado do PT. O que isso demonstra, entre outras coisas, é que estavam errados aqueles que, nos últimos 20 anos, imaginavam que o PT ia ser ultrapassado pela esquerda. Não foi e sigo afirmando que não será. Claro, o PT pode ser atropelado pela direita. E saqueado em seguida.
- O que o
fim a União Soviética representou e quais foram suas implicações para as
esquerdas latino-americanas? Aquele momento histórico ainda tem um peso
significativo para as esquerdas?
O fim da União Soviética teve como
contraparte a vitória dos Estados Unidos, o fortalecimento das políticas
neoliberais e uma expansão das relações capitalistas para novas regiões. Ou
seja, consequências econômicas, sociais, políticas e militares. Além disso, o
fim da União Soviética foi visto por amplos setores da população, não apenas
por quem se considerava de esquerda, como “prova” de que uma sociedade sem
exploração nem opressão era uma utopia, um sonho, uma quimera, algo
irrealizável. Isso facilitou a conversão ideológica de amplos setores da
esquerda, enfraqueceu a credibilidade das interpretações inspiradas no marxismo
e fortaleceu um revisionismo histórico favorável ao capitalismo. Tudo isto,
junto e misturado, afetou a esquerda latino-americana. Afetou, é importante
dizer, em menor grau do que afetou a esquerda europeia. Afetou em menor grau
“graças” à brutalidade dos Estados Unidos e das oligarquias de cada país de
nosso continente, graças à dependência e à desigualdade imposta pelo
capitalismo realmente existente na região, assim como graças à resistência de
Cuba. Visto de uma perspectiva histórica, o fim da URSS abriu um período de
defensiva estratégica para a luta pelo socialismo em todo o mundo. Nesse
período ainda estamos, inclusive na região. Entre 1998 e 2008, muita gente de
esquerda não podia ou não queria enxergar isso. Hoje, a maioria parece
perceber.
- O senhor
disse em artigo recente que quando as esquerdas começaram chegar a postos de
governo a partir dos anos 1998, elas “não conseguiram superar a confusão ideológica e também não conseguiram
resolver o déficit teórico que se expressa em três terrenos fundamentais: o da
avaliação das tentativas de construção do socialismo do século XX, o da análise
do capitalismo do século XXI e o da elaboração de uma estratégia adequada ao
novo período histórico”. Que tipo de confusões ideológicas e teóricas havia em relação a
esses três pontos fundamentais e qual é a origem dessas confusões?
As tentativas de construir o socialismo
no século XX foram todas feitas em países em que as forças produtivas
capitalistas haviam se desenvolvido pouco. Isso teve uma série de
consequências, entre as quais a principal foi um alto nível de centralização
política e estatal, na tentativa de superar o atraso econômico. Frente a este
fato, parte da esquerda reagiu negando que aquele socialismo predominantemente estatal
fosse socialismo. Outra parte reagiu tratando aquele socialismo estatal como
“modelo” a ser seguido. As mesmas atitudes se fizeram presentes quando a URSS
acabou, uns superestimando (“o fim de todo o socialismo”), outros subestimando (“o
fim de algo que nunca teria sido socialismo”). Ambas atitudes decorrem da
incompreensão de que o socialismo é um período de transição, no qual
coexistirão mais ou menos conflituosamente relações capitalistas e relações comunistas.
Esta incompreensão segue existindo hoje, como se percebe nas diferentes
análises que se fazem acerca da China. O mais importante, entretanto, é que o
foco nos êxitos e fracassos do socialismo do século XX fez com que parte da
esquerda fraquejasse na análise crítica daquilo que é o fundamental: o
capitalismo, as contradições fundamentais entre capitalistas e trabalhadores,
assim como o papel do Estado e do imperialismo. As debilidades na análise do
socialismo e do capitalismo tiveram consequências estratégicas. Não é por acaso
que tivemos mais êxitos das esquerdas antes do que depois da crise de 2008. O
capitalismo do século XXI passou da expansão dos anos 1990 para uma crise
brutal, que teve em 2008 seu (até o presente momento) pico mais agudo. E parte
da esquerda está mais defensiva hoje do que estava antes...
- Que tipo de limites o mundo de hoje impõe às esquerdas, mesmo quando
elas mantêm seu propósito socialista? Como esse propósito pode ser traduzido
para o mundo contemporâneo? O que significa falar em socialismo nos dias de
hoje? Esse propósito ainda tem espaço nos nossos dias?
Limites, sempre existiram. Alguns derivados da correlação de forças
entre as classes e entre os Estados. Outros derivados do desenvolvimento
material e da cultura política existente em cada sociedade. A grande questão
não está nos limites impostos pelo mundo de hoje. A grande questão é a ameaça
que paira sobre o mundo de hoje, se não pusermos limites ao capitalismo. A vida
de bilhões de pessoas está ameaçada cotidianamente, por razões ambientais, militares,
econômicas, sociais, políticas e ideológicas vinculadas à hegemonia do
capitalismo. Num resumo: o mundo enfrenta problemas criados pelo capitalismo e
que só podem ser superados numa ordem social em que a maioria decida o que
produzir, como produzir e como distribuir a riqueza. Neste sentido, o fato de
nós vivermos num mundo que é mais capitalista do que nunca foi, torna o
socialismo mais atual do que antes. E ser realmente socialista no mundo
contemporâneo tem o mesmo sentido fundamental que tinha há 150 anos: acabar com
a exploração e com a opressão, colocar os conhecimentos acumulados pela
humanidade a serviço de toda a humanidade, fazer com que os produtores
controlem a produção e a distribuição, tratar o planeta como casa comum de toda
a humanidade. O socialismo é mais necessário do que nunca foi.
- Alguns intelectuais de esquerda têm afirmado que hoje não há mais
espaço para revoluções, e que a função da esquerda na política precisa estar
mais associada à realização de reformas. Concorda com esse tipo de visão?
Isto não é uma visão, é uma ilusão. Sou totalmente a favor de lutar por
reformas, mas até para ter êxito pleno na luta por reformas, é preciso
compreender que as revoluções seguem sendo indispensáveis e inclusive
inevitáveis.
Mas vamos por partes: será mesmo que não há mais espaço para revoluções?
A revolução seria um fenômeno raro, um fenômeno do passado, algo impossível de
ocorrer nos dias atuais? Olhemos para a história: entre 1642 e 1979, houve
vários períodos em que as reformas e contrarreformas predominaram sobre as
guerras e as revoluções. Mas estes períodos “reformistas” acumulavam material
explosivo para uma próxima rodada de instabilidade que, em alguns casos, resultava
em guerras e revoluções.
Este mesmo material explosivo vem sendo acumulado nas últimas décadas.
Claro que nem todo capitalismo em crise desemboca numa revolução, assim como
nem toda revolução resulta em vitória revolucionária. Mas em tempos turbulentos
como os que estamos vivendo, profetizar que não há mais espaço para revoluções
é mais ou menos como ouvir Noé dizendo que “antes de mim, o Dilúvio”, para não
falar da famosa frase sobre pães e brioches.
Nos últimos quarenta anos o capitalismo – como modo de produção,
exploração, circulação – tornou-se mais hegemônico do que nunca. Exatamente
porque ele é mais hegemônico do que nunca, suas contradições também são mais
potentes do que nunca foram, sua “instabilidade” se tornou mais aguda. Mas
como, apesar de profundamente contraditório, o capitalismo segue forte e assim
esteve por décadas, os elementos subjetivos (a classe trabalhadora, as
organizações populares, a intelectualidade de esquerda) seguem em parte
submetidos à hegemonia capitalista. Talvez seja por isso – a debilidade dos
elementos subjetivos – que tanta gente na esquerda conclua que hoje a revolução
não seria mais possível. Ou ainda: antes havia um sujeito revolucionário, hoje
não há mais. Aliás, tem gente que chega a esta conclusão se olhando no espelho.
Mas quem se dê ao trabalho de estudar os processos revolucionários
realmente existentes, vai perceber que existe uma dinâmica muito mais complexa
entre os fatores ditos objetivos e subjetivos. O determinante nesta dinâmica
são os fatores objetivos, vinculados à maneira de ser do capitalismo, não os
fatores subjetivos, vinculados à maneira como as pessoas enxergam o
capitalismo. Os fatores objetivos (por exemplo, o desenvolvimento acumulado das
forças produtivas, a velocidade e a natureza da acumulação de capital etc.)
determinam a capacidade que o capitalismo tem de compensar, neutralizar,
reduzir os danos causados pelos fatores destrutivos que ele próprio gera. Dito
de outra forma, há momentos em que o capitalismo perde grande parte de sua
capacidade de auto-reforma. Vivemos num destes momentos.
Nestes momentos, em que o capitalismo se torna mais refratário do que o
normal às reformas, nestes momentos a revolução se torna possível e necessária,
o que não a converte em provável, nem converte sua vitória em inevitável. Nestes
momentos, se muita gente acreditar que uma revolução não é possível, isto não
impedirá que uma revolução ocorra, apenas tornará muito mais difícil que ela
triunfe.
Agora vejamos o assunto de outro ponto de vista: qual a função da
esquerda? Lutar por reformas? Em parte sim, com certeza. Mas a luta por
reformas enfrenta uma resistência brutal das classes dominantes. Grande parte
da repressão cotidiana que a classe dominante exerce, ela o faz contra as
reformas, não contra as revoluções. Até porque revoluções são fenômenos raros e
os revolucionários são minoria, pelo menos na maior parte do tempo.
Mas suponhamos que a luta por reformas tenha êxito. Qual o máximo de
mudanças que ela é capaz de atingir? Já temos 200 anos ou mais de experiências
para saber que este máximo é... o capitalismo. E o capitalismo “humano” de
ontem é o fonte do capitalismo “selvagem” de ontem (nas periferias do mundo) e
de hoje (no mundo inteiro).
Portanto, falemos claro: quem coloca como seu horizonte máximo lutar por
reformas, precisa saber e dizer que deixou de lado a luta por uma sociedade sem
capitalistas e sem capitalismo.
Além disso, esta mesma experiência histórica, de dois séculos, comprova
fartamente que as maiores “reformas” foram arrancadas quando uma parte
importante da classe trabalhadora e da esquerda lutava pela revolução e, graças
a isso, alargou o limite do possível.
Portanto, o que devemos fazer é lutar por reformas e pela revolução,
tanto no sentido estrito quanto no sentido amplo da palavra. A revolução no
sentido estrito da palavra é a derrubada da classe dos capitalistas, derrubada
promovida pela classe que é, ao mesmo tempo, oprimida e explorada pelos
capitalistas: a classe trabalhadora. A revolução no sentido amplo da palavra é a
destruição do capitalismo e a criação de outro modo de produção: uma sociedade
que planeja suas necessidades e suas atividades, uma sociedade organizada para
produzir valores de uso e não mercadorias, uma sociedade que supere toda forma
de exploração e opressão – portanto, que supere não apenas o capitalismo, mas
também a divisão da sociedade em classes.
Em vários aspectos, esta sociedade já começa a ser antecipada. A
arquitetura do Sistema Único de Saúde é um exemplo disso. Mas nenhuma dessas
“antecipações”, tomada isoladamente, será capaz de superar o capitalismo. Pelo contrário:
todas as reformas de tipo “socialista” serão inevitavelmente sufocadas pelo
capitalismo, se este não for superado de conjunto.
Algo parecido ocorreu na longa transição do feudalismo para o
capitalismo. E também por isto a revolução burguesa capitalista foi, naquela
época, possível e necessária.
- Neste mesmo artigo que citei anteriormente, o senhor menciona o livro
de Luiz Dulci, Um salto para o futuro, como um registro das dificuldades de
debater os problemas, as dificuldades e as ameaças que rondavam a esquerda em
2013. Ao longo desses anos, inclusive, muitos analistas, criticam a esquerda
justamente por isso. Hoje, passados cinco anos, quais diria que foram as
dificuldades da esquerda naquele momento? Por que não foi possível fazer esse
debate interno?
O debate interno foi feito, o externo também. Foi feito um debate dentro
e fora do PT, dentro e fora da esquerda. O problema não está, portanto, em que
não tenha havido debate. O problema é que tenha prevalecido uma posição errada.
Aliás, parte dos que criticam a ausência de debate, participaram deste debate
fortalecendo duas posições incorretas. A primeira, majoritária no meu Partido,
acreditava que era possível fazer mudanças sem profundas rupturas com as
estruturas econômicas e políticas através das quais os capitalistas exercem seu
domínio. Logo, criam possível e necessária uma aliança com setores da classe
dominante. A segunda posição, majoritária naquela esquerda que fazia críticas
ao petismo, acreditava que o PT estaria fazendo um governo tão moderado, que beneficiaria
tanto os capitalistas e o imperialismo, que estes não teriam motivo para tentar
derrubar e destruir o PT. Ambas posições estavam profundamente erradas. O erro
fundamental residia numa análise incorreta sobre a luta de classes no Brasil,
especificamente sobre a atitude real da classe dominante e do imperialismo. No
fundo, tanto os moderados quanto certos esquerdistas acreditavam que o lado de
lá estaria disposto a fazer alianças estratégicas com alguém ou algum setor do
lado de cá.
- Diante dos últimos acontecimentos políticos, inclusive com a prisão do
ex-presidente Lula, como a ala da esquerda a qual o senhor pertence tem
discutido a necessidade de adotar outra linha política? O que tem sido proposto
nesse sentido? O que caracterizaria essa nova linha política?
A estratégia adotada pela maior parte da esquerda brasileira sempre foi
criticada por um setor até agora minoritário da esquerda. Essa crítica se
concentra, desde 1995, em três questões. Uma é programática: consideramos que
não é possível ampliar, de maneira profunda e permanente, o bem estar do povo,
a democracia, a soberania nacional e a integração regional, sem ao mesmo tempo combater
o capitalismo e o imperialismo. Outra é estratégica: para viabilizar um
programa democrático, popular, nacional e regional, precisamos reduzir o poder
político da classe dos capitalistas e ampliar o poder político das classes
trabalhadoras. Outra crítica é de natureza organizativa: uma estratégia de
mudanças radicais pressupõe que as classes trabalhadoras estejam organizadas,
mobilizadas e conscientes.
É por isso que nos debates programáticos, assim como nos balanços de
governos, sempre questionamos: acabamos com a ditadura do capital especulativo
e criamos um setor financeiro 100% público? Reduzimos o peso do setor
primário-exportador e ampliamos o peso da indústria? Reduzimos o controle do
setor oligopolista transnacional e aumentamos o peso dos setores médios
nacionais? Ampliamos a oferta de bens e serviços públicos, ou só de bens e
serviços de mercado? Quebramos os oligopólios e monopólios privados nos setores
de comunicação, cultura e educação? Reestruturamos os aparatos de justiça,
segurança e defesa? Acabamos com a influência do dinheiro nos processos
eleitorais? Estimulamos que os eleitores da esquerda se organizassem nos
sindicatos, movimentos e partidos? Ou convidamos nossas bases eleitorais e
sociais a agir como “setores médios”, que buscam sua felicidade individualmente
no mercado, comparecendo de dois em dois anos para votar? Difundimos uma
cultura popular socialista de massas ou deixamos o terreno livre para a
teologia da prosperidade?
- Em que consistem, de outro lado, as propostas de mudar os métodos de
funcionamento da esquerda, e a proposta de recuperar os espaços perdidos junto
à classe trabalhadora? Por que é importante recuperar esse espaço e que
dificuldades vislumbra nesse sentido?
Não se muda o Brasil, nem o mundo, sem o apoio das classes trabalhadoras.
Não se trata de maioria numérica, mas de maioria política e cultural
organizada. A esquerda brasileira, especialmente o PT, conquistou esta maioria
entre 2006 e 2010. Mas perdeu esta maioria, em parte por erros nossos, em parte
por “acertos” de nossos inimigos. Entre os nossos erros, destacaria três: a) o
de não ter percebido as mutações que as políticas neoliberais causaram nas
classes trabalhadoras; b) o de não ter percebido que uma esquerda
essencialmente eleitoral estaria deixando o terreno livre para que a direita, o
crime e as igrejas conservadoras ocupassem espaço nos setores populares; c) o
de não ter percebido que era preciso atrair os setores médios (que no
fundamental são os setores melhor remunerados das classes trabalhadoras)
através de políticas públicas de saúde, educação, cultura e transporte, que
teriam que ser pagas através de forte tributação sobre os ricos.
Recuperar os espaços perdidos junto à classe trabalhadora, incluindo aí
conquistar os setores que nunca chegamos a conquistar, exige não apenas um
discurso, mas uma prática cotidiana militante. Algo bem diferente das campanhas
eleitorais de dois em dois anos. E diferente também da dinâmica de mandatos
parlamentares. E mesmo da ação de governos. Os partidos, sindicatos e
movimentos populares terão que recuperar qualidades que já tiveram no passado.
E terão que estudar e adotar medidas novas, para realidades novas. Mas, acima
de tudo, precisarão recolocar a disputa cultural, de visão de mundo,
ideológica, em primeiro plano. Uma esquerda pragmática e sem sal não será páreo
para a direita profundamente ideológica que estamos enfrentando.
- Naquele mesmo artigo o senhor afirma que está aparecendo uma nova
configuração social de luta de classes. Em que essa nova configuração se
diferencia da antes? Qual é a proposta da esquerda diante dessa nova
configuração e da formação de uma nova classe trabalhadora?
A nova configuração consiste em algo bem simples: de um lado, a
burguesia de cada país e seus respectivos Estados estão se tornando mais
belicosos. Por outro lado, as classes trabalhadoras de cada país estão tendo
que reagir a isto. Em alguns casos, se limitando a preservar direitos e ganhos
de alguns setores da classe, muitas vezes em detrimento de outros setores
(migrantes, mulheres, trabalhadores desqualificados etc.). Noutros casos, defendendo
direitos já existentes, mas também lutando por mudanças amplas na ordem
política, econômica e social, mudanças que para serem conquistadas e mantidas
exigem a formação de blocos nacional-populares, que podem ou não estar hegemonizados
pela classe trabalhadora.
Frente a esta situação, as esquerdas não apresentam uma resposta única.
Grosso modo, há setores que defendem rebaixar o programa e moderar a política;
e há os que defendem a necessidade de aprofundar o programa e radicalizar a
política. O bom senso pareceria indicar que é hora de rebaixar e moderar. Mas
fazer isto seria errado: quando o lado de lá não tem limite, o único jeito de
deter o incêndio reacionário é criando uma barreira de fogo.
- O que seria um posicionamento adequado da esquerda em relação às
reformas propostas pelo governo Temer, como a reforma trabalhista e a
reforma da previdência?
Adequado? Adequado é revogar tudo aquilo que foi aprovado no período
golpista. Precisamos de mais direitos trabalhistas e de mais direitos
previdenciários. O país é rico o suficiente para comportar isto. Em resumo:
queremos ganhar a presidência da República em 2018, executar um programa de
emergência financiado por parte das reservas internacionais, fazer um
plebiscito para revogar as medidas golpistas e convocar uma Assembleia Nacional
Constituinte.
- Qual diria que são as implicações políticas da prisão do ex-presidente
para a esquerda em geral e para o PT?
Parte da esquerda brasileira, inclusive do PT, não acreditava que o lado
de lá chegasse a este ponto. Da minha parte, sempre tive claro que eles
prenderiam Lula. E não vão parar aí: a ofensiva inclui destruir o PT. De
maneira mais geral, impedir que exista uma esquerda que seja alternativa de
governo e que possa ser alternativa de poder.
No curto prazo, a prisão pode ter três desdobramentos. Se Lula puder ser
candidato a presidente; se Lula não puder ser candidato mas puder fazer
campanha; se Lula não puder ser candidato nem fazer campanha. Cada um destes
desdobramentos exige uma tática específica. Da minha parte, defendo a posição
aprovada no Diretório Nacional do PT: eleição sem Lula é fraude. Não devemos
legitimar uma eleição presidencial que será vencida, por antecipação, pela
direita. Ou até pela extrema-direita.
Aliás, acho bizarra a postura de alguns setores da esquerda que até
ontem faziam críticas ao PT e ao mal-denominado lulismo, acusados de excessiva
submissão aos processos eleitorais; mas que hoje tem medo de dizer que eleição
sem Lula é fraude.
- Que leitura foi feita dentro do PT acerca da reação da sociedade
brasileira em geral em relação à prisão do ex-presidente Lula?
Não há uma leitura, há várias. E a sociedade “são muitas”, como se diz
de Minas Gerais. No que diz respeito a classe trabalhadora e aos setores
populares, há quem ache a reação pequena, há quem ache enorme. Eu acho que está
sendo uma reação compatível com aquilo que plantamos. Acostumamos parte de
nossa base social a se manifestar votando. Pois bem: contra sol e chuva, Lula
continua liderando as pesquisas eleitorais. Por outro lado, não acostumamos nem
preparamos a nossa base social para fazer mobilizações politicas de massa,
muito menos campanhas permanentes. Pois bem: nossas mobilizações de rua são
menores do que o necessário, embora sejam expressivas, especialmente se
levarmos em conta o boicote dos meios de comunicação.
Agora, quanto aos capitalistas e aos setores médios conservadores, estes
estão divididos. Uma minoria de ultra-direita está eufórica com a prisão de
Lula, quer sangue e manifesta isto publicamente. Outro setor compactua com a
extrema direita, mas mantém um perfil mais baixo. Num certo sentido, são piores
do que a extrema direita, porque são responsáveis pelo seu ascenso. Veja o que
ocorreu no STF, na votação do habeas corpus, votado sob ameaça da mídia e de
“pronunciamentos” militares.
- Diante das eleições presidenciais nos próximos meses, o que se pode
esperar da esquerda? A tendência é que haja uma fragmentação ou a esquerda irá
se unir em torno de uma candidatura?
O quadro geral das eleições é de fragmentação. Uma fragmentação maior
entre os que apoiaram o golpe: a preços de hoje, são 16 em 21 pré-candidatos.
Mas também uma fragmentação entre os que se opuseram ao golpe. Neste aspecto,
2018 lembra 1989. Se Lula não puder participar das eleições, esta fragmentação
tende a prosseguir, em todo o espectro político. Agora, se a eleição for mesmo
uma fraude antecipada, a questão central para a esquerda não é a definição da
candidatura; mas sim a definição de uma tática nas eleições 2018 que nos
prepare melhor para fazer oposição ao golpismo 2.0 que vai emergir das eleições
fraudadas.
- Como avalia o possível cenário eleitoral deste ano?
Depende de Lula ser ou não candidato. Se Lula for candidato, ele estará
no segundo turno e terá grandes chances de vencer a eleição. Claro que os
golpistas farão de tudo para mantê-lo preso, impugnar sua candidatura, impedir
sua campanha, vitória, posse e governo.
Agora, se Lula não for candidato, há grandes chances da extrema-direita
estar no segundo turno. E veremos candidatos de direita, centro-direita e
trânsfugas apelando para a responsabilidade do eleitorado petista em defender a
democracia, o Estado de direito e a república...
Entretanto, o quadro geral é muito confuso, até porque há fatores
internacionais que, sem trocadilho, podem colocar o mundo de ponta cabeça. De
tédio não morreremos.
- Deseja acrescentar
algo?
Sim, quero. Sou petista desde os anos 1980. Vi muita gente entrar e sair do PT. Vi muita gente profetizar o fim do PT. E hoje vejo muita gente trabalhando para conquistar o eleitorado do PT. O que isso demonstra, entre outras coisas, é que estavam errados aqueles que, nos últimos 20 anos, imaginavam que o PT ia ser ultrapassado pela esquerda. Não foi e sigo afirmando que não será. Claro, o PT pode ser atropelado pela direita. E saqueado em seguida.
O importante é ter claro
que a classe trabalhadora brasileira precisa de um partido de massas como é o
PT. E é a classe trabalhadora que vai decidir como o PT vai sobreviver a esta
crise. A questão principal é saber com qual linha política o PT vai sobreviver.
Afinal, tem muita gente dentro do PT que não aprendeu nada com o ocorrido e que
segue defendendo uma linha moderada e domesticada. Esta gente é o que chamamos
de “tendência suicida”. Assim como tem muita gente que contribuiu para esta
situação que estamos vivendo e que até hoje não conseguiu entender como
“aquilo” deu “nisso”.
Seja como for, da mesma
forma como é fundamental lutar pela liberdade de Lula, pelo direito dele ser
candidato e pela eleição de Lula presidente, também é fundamental defender o
PT. O golpismo sabe que sem destruir o Partido, sua vitória não será completa.
Nosso problema, portanto, é convencer o PT de que se faz necessário sufocar,
esmagar e destruir completamente o golpismo, em todas as suas dimensões. Sem
ilusões, sem dó nem piedade. Infelizmente, há quem considere que isto são
bravatas. Quem dera pudessem ser. Quem dera!
Pode-se gostar mais ou menos das ideias e das posições de Valter Pomar mas é impossível negar sua capacidade de apresentar de forma clara e didática os principais problemas, dilemas e alternativas para a esquerda brasileira e de justificar suas próprias ideias e posições neste debate. No PT talvez apenas André Singer, do outro lado do espectro político petista, tenha essa mesma capacidade e clareza de idéias. Na minha opinião de eleitor e simpatizante de muitos anos do partido, entendo que um debate entre esses dois PTs, entre essas duas correntes de pensamento, seria ideal para propor novas estratégias para o PT dos próximos anos. É preciso fazer esse acerto de contas entre o chamado Lulismo e a crítica interna a ele. E acredito também que a solução dos atuais impasses e dilemas colocados pelo Golpe de Estado en curso seja não do tipo "ou isso ou aquilo", mas muito mais do tipo "isso e aquilo".
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