quarta-feira, 3 de agosto de 2016

O vocabulário da luta

Um militante socialista alemão -- que nasceu e morreu no século 19 -- dizia que a classe trabalhadora tem três tarefas permanentes: estudar, organizar e lutar.

Outro militante socialista -- um russo que nasceu no século 19 e morreu no século 20 -- dizia que o segredo da vitória da classe trabalhadora estava na ação coletiva.

Estudo coletivo, organização coletiva, luta coletiva: estes são três aspectos permanentes de nossa ação.

O sucesso de cada um destes aspectos está em parte vinculado ao convencimento individual, ao engajamento individual, à responsabilidade individual.

Mas da mesma forma que uma andorinha só não faz verão, a ação da classe trabalhadora só tem êxito quando dezenas, centenas, milhares, milhões de trabalhadores e trabalhadoras se engajam.

Por quais motivos um indivíduo se engaja na luta? São os mais variados.

Por quais motivos milhões de trabalhadores e trabalhadoras se engajam na luta? Em geral, trata-se de uma reação às agressões feitas pelos empresários e pelos governos (e outras instituições) que expressam os interesses dos capitalistas (ou seja, da classe que explora quem vive de salário).

Todo dia há indivíduos que despertam para a luta.

Mas não é todo dia que milhões de pessoas despertam para a luta. Aqueles que já são lutadores precisam lidar com este descompasso. As alternativas básicas para lidar com isto são:

a) aguardar passivamente que as “massas” despertem;

b) tentar substituir a ação das massas pela ação de uma minoria;

c) fazer alianças com os empresários e seus representantes (não podendo vencer, unir-se ao inimigo);

d) estudar, organizar e lutar, sendo que esta luta deve ocorrer na medida (forma e conteúdo) necessária para contribuir na alteração do nível de consciência e organização dos milhões. 

Para saber como fazer isto, para organizar melhor e lutar do jeito certo, é fundamental estudar (compreendendo por isto não apenas tomar contato com conhecimento já produzido, mas também produzir conhecimento novo).

Estudar quem somos, pelo que lutamos, contra o quê e contra quem lutamos; aprender com quem lutou antes de nós e com os que lutam em outras regiões do Brasil, da América Latina e do mundo. Responder velhas questões e também novas questões.

Estudar é trabalhar; e trabalhar exige disposição, esforço e técnica. Um dos aspectos técnicos envolvidos no estudo é o domínio da linguagem.

Cada profissão tem seu vocabulário, um conjunto de termos que os trabalhadores daquela profissão utilizam para se comunicar.

Qual o vocabulário da luta? Quais os termos, as palavras, os vocábulos utilizados pela classe trabalhadora na luta por seus interesses?

Como sempre acontece, o verbo surge da ação, da vida cotidiana da classe, das lutas que ela desenvolve, muitas vezes tomando as palavras de empréstimo das demais classes (como tomamos palavras de empréstimo de outros povos e de outras línguas).

Um bom exemplo disto é a palavra greve.

Segundo alguns estudiosos, a palavra tem origem latina, designando areia ou cascalho. Estes estudiosos nos informam que a Place de Grève (Praça da Greve) ficava em Paris, à beira do rio Sena, num ponto em que se acumulava areia e cascalho. Nesta praça reuniam-se trabalhadores que estavam sem trabalho, à busca de um emprego. Mais adiante, o termo será empregado não para designar trabalhadores em situação passiva (parados por falta de um empregador), mas sim trabalhadores em situação ativa (parado contra seus empregadores).

O vocabulário da luta é atualizado de forma permanente. Certas palavras vão mudando de significado. Outras palavras possuem diferentes significados, a depender do país, do momento da história, do setor da classe que as utiliza.

Por exemplo: governo e poder. É muito comum ouvirmos algumas pessoas falarem que “o PT chegou ao poder em 2002”. Ao que outras respondem: “o PT nunca chegou ao poder, apenas conquistamos o governo”. E outras lembram que a questão não está em que um partido chegue ao poder, mas sim que a classe trabalhadora chegue ao poder.

Por trás destas três frases, há visões distintas acerca do que seja a política, o poder, o Estado, o governo e os processos eleitorais, a relação entre os partidos e as classes etc.

Portanto, um dos desafios que enfrentamos, quando se trata de estudar, é dominar o vocabulário “técnico” com o qual descrevemos a luta e planejamos nossa intervenção nela. 

Há várias maneiras de fazer isto. A que consideramos mais adequada é a que toma como referência -- como “critério da verdade” -- a realidade.

Ou seja: cada um pode significar como quiser termos como classes sociais, luta de classes, Estado, política, partido, sindicato, movimentos, estratégia, tática e conjuntura.

Mas para que haja diálogo e ação comum, é preciso que muitas pessoas signifiquem da mesma forma.

E para que isto seja possível, é preciso que aqueles termos expressem algo em comum para muitas pessoas. E este “algo em comum” é... a realidade, a prática social, a ação e o produto da ação de dezenas e centenas de milhões de pessoas.

Com um detalhe importante: a realidade social se transforma o tempo todo. E esta transformação ocorre antes de ser traduzida em palavras, conceitos, categorias, termos.

Como dizia um poeta alemão, a coruja do conhecimento alça voo ao anoitecer. As palavras que utilizamos para falar do presente e do futuro tiveram origem no passado e designavam originalmente realidades passadas.

Um exemplo disto: a palavra utopia. O termo é de origem grega: u-topos, não lugar, um lugar que não existe. Foi utilizado como título para um livro publicado por volta de 1516 (há 500 anos, portanto). Naquele livro, Thomas Morus criava um personagem que descrevia uma sociedade existente em uma ilha a qual chegara através de um naufrágio. Portanto, uma sociedade que era contemporânea aos personagens do livro e também aos leitores do livro.

Pois bem: desde o século 19 até hoje o termo utopia é muito utilizado para designar uma sociedade... futura!!!

Aqui se faz necessário falar de um “detalhe” importante: a ação humana faz parte da realidade, tanto como observadora quanto como construtora da realidade. Se muitos seres humanos acreditam em algo e organizam-se em função desta crença, isto gera uma realidade, mesmo que aquela crença seja fantástica, ficcional, artificial, ilusória, um mito. As ideias quando são incorporadas por muita gente convertem-se em força material.

Aliás, um filósofo alemão do século 19 dizia que não foi Deus que criou o homem, foi o homem que criou Deus. Ou, poderíamos dizer, os seres humanos criaram vários deuses, igrejas e doutrinas que serviram como linguagem para expressar determinados interesses sociais durante muitos séculos. Os deuses podem não existir, mas as igrejas e os movimentos religiosos existem.

Antes de existir o vocabulário da luta da classe trabalhadora, existiu o vocabulário da luta dos burgueses. E antes deste vocabulário burguês, o vocabulário utilizado para expressar os interesses dos senhores feudais (e de quem se opunha a eles) era um vocabulário religioso.

Foram as revoluções burguesas (séculos 17 a 19) criaram um vocabulário político laico.

Entre 1789 e 1917, a classe trabalhadora de todo o mundo utilizou um vocabulário político surgido principalmente da revolução francesa.

O exemplo clássico disto: as palavras esquerda e direita, bem como falar de partidos políticos.

A revolução francesa, por sua vez, foi buscar estes e outros termos políticos na antiguidade grego-romana. Por exemplo: democracia, república e proletariado. Mas também resgatou e adaptou termos utilizados por movimentos religiosos, econômicos e políticos dos séculos anteriores!!!

Partindo do vocabulário surgido da grande revolução francesa de 1789, o movimento da classe trabalhadora ao longo do século 19 foi “criando” (o que geralmente significa resignificar ou customizar) seus próprios termos: greve, proletariado, social-democracia, trabalhismo, anarquismo, populismo, cooperativismo, socialismo e comunismo.

Com a revolução russa de 1917 surgiu um novo paradigma: até então, o vocabulário político tinha como referência a revolução francesa de 1789. Agora, havia outra referência. Processo semelhante ocorreria com outras revoluções, que pelo seu impacto na realidade converteram-se em fonte de transformação, de inspiração, foram tomadas como modelo ou exemplo.

A partir de 1917 e até hoje, o vocabulário da luta continuou mudando.

Mudanças no capitalismo, mudanças na luta da classe trabalhadora, surgimento (ou reconhecimento da existência) de outros setores sociais e de outras questões, diferentes tentativas de transição socialista, além de muitas derrotas, todas estas novidades se expressaram em palavras velhas ou novas, assim como em inventos como é o caso do termo neoliberalismo.

Portanto, estudar o vocabulário da luta não é como estudar matemática básica. Podemos dizer que é mais parecido com o estudo da literatura ou da pintura, em que uma mesma obra pode gerar diferentes percepções e avaliações, sendo sempre necessário distinguir entre os aspectos “objetivos” e os aspectos “subjetivos” da obra. E poucas vezes é possível chegar a um acordo.

Com todos estes cuidados, quais são os termos fundamentais que precisam ser conhecidos por quem deseja organizar melhor e lutar melhor? Que vocabulário básico precisa ser dominado pelos militantes, lutadores, revolucionários?

Alguns dos termos essenciais são: classes sociais, luta de classes, formação social, modo de produção, Estado, politica, partido político, reforma, revolução, estratégia, tática, conjuntura.

Não há definições universais para cada um destes termos. O que veremos a seguir é -- mais que um dicionário -- um guia para estudo.

Classes sociais

O que diferencia os seres humanos de outros animais? Fundamentalmente a capacidade de transformar a natureza, ou seja, o trabalho.

Temos aqui uma interessante história, que envolve o uso da mão; a extensão da mão em ferramenta; a ferramenta combinada com a ação coletiva, convertendo um animal fisicamente frágil em um caçador poderoso; a coleta e a caça convertendo-se pouco a pouco em criação e reserva; o desenvolvimento de novos conhecimentos e novas ferramentas, como o fogo; a constituição de agrupamentos cada vez mais numerosos e uma crescente divisão de trabalho entre os integrantes deste agrupamento.

Em algum ponto desta história originária, a divisão de funções técnicas serviu de base para uma divisão social mais permanente, que nos acompanha até hoje: a divisão entre produtores e proprietários.

Resumindo de outro jeito a mesma trajetória: os dois elementos básicos de qualquer sociedade são as relações que os seres humanos estabelecem entre si, e as relações da humanidade com a natureza, para produzir e reproduzir suas condições de existência.

As relações que os seres humanos estabelecem entre si no processo de produção podem ser de dois tipos básicos: a cooperação e a subordinação. Que por sua vez desdobra-se em conflitos e lutas.

Ao longo da história, ambos tipos estiveram presentes, em proporções que foram variando.

Numa fábrica moderna, por exemplo, existe alto nível de cooperação entre os trabalhadores (e em alguma medida também entre estes e os capitalistas). Ao mesmo tempo há alto nível de subordinação dos trabalhadores aos capitalistas. E, portanto, graus variados de conflito entre os trabalhadores e os capitalistas, indo das reclamações às sabotagens e/ou às greves ou outros atos de insubordinação.

Na sociedade como um todo não sobreviveríamos sem água e energia elétrica. Mas mesmo em sociedades capazes de produção e fornecimento, o acesso à água e a luz não é universal: depende de diferentes níveis de cooperação e subordinação, conflito e luta, tanto na produção quanto na distribuição.

As relações humanas não se limitam ao processo de produção e reprodução das condições materiais de existência.

Mas como não existe sociedade sem produção, as relações de produção constituem as relações fundamentais, que influenciam todas as demais.

Ao longo da história, podemos identificar vários tipos de relações de produção.

As mais comuns foram a escravidão, a servidão e o assalariamento.

Embora seja óbvio, vale lembrar: uma relação de produção é uma... relação, uma unidade de contrários: se há escravidão, há escravos e senhores de escravos; se há servidão, há servos e senhores; se há assalariamento, há trabalhadores assalariados e capitalistas.

Qual o nome que damos para estes partes, estes grupos de pessoas que ocupam um mesmo lugar numa relação social de produção? Classes sociais.

E qual o nome damos para a relação de conflito  que estes grupos sociais estabelecem entre si? Luta de classes.

Ao longo da história não existiram sempre as mesmas classes sociais, portanto a luta de classes nem sempre foi a mesma.

Claro que há semelhanças: os escravos, os servos e os assalariados têm em comum o fato de serem produtores subordinados à exploração dos proprietários. Da mesma forma, senhores de escravos, senhores de terra e senhores de capital têm em comum o fato de serem proprietários não-produtores que exploram os produtores.

Mas há diferenças muito importantes, motivo pelo qual falamos que há não apenas diferentes classes, mas sociedades diferentes, modos de produção diferentes.

Um exemplo destas diferenças: o escravo era propriedade, o assalariado é livre.

Outro exemplo destas diferenças: em geral, o senhor de escravos compra e vende tanto os trabalhadores quanto os bens materiais produzidos por eles; o senhor feudal não é dono dos servos da gleba, mas se apropria da maior parte do que eles produzem; o capitalista se apropria da maior parte do valor produzido pelo assalariado para acumular e reproduzir, de forma ampliada, o... capital.

Numa mesma sociedade, podem coexistir diferentes tipos de cooperação e subordinação e, portanto, diferentes tipos de conflitos. É o predomínio de um determinado tipo que define a sociedade como um todo.

Exemplo: no Brasil, por volta de 1850, era a exploração do trabalho escravo, a dificuldade em continuar importando “peças escravas”, as fugas e revoltas, a organização de quilombos e o abolicionismo que determinavam o curso geral da sociedade.

Já no Brasil, por volta de 1950, era a exploração do trabalho assalariado, as reivindicações, lutas e greves dos trabalhadores, e a repercussão disto junto aos demais setores, que determinavam o curso geral da sociedade.

Ou seja, tanto num caso como noutro, embora possa haver diferentes tipos de relações de produção, há uma que é dominante. Noutras palavras, há um modo de produção que é dominante.

Falamos em modo de produção comunista primitivo, modo de produção escravista, modo de produção feudal e modo de produção capitalista exatamente para designar qual a relação de produção que predomina (e, por decorrência, que tipo de cooperação, que tipo de subordinação, que tipo de conflito fundamental).

Mas atenção: nas sociedades realmente existentes, é comum encontrarmos vários modos de produção coexistindo. E não apenas isto: em sociedades onde predomina um determinado modo de produção, é comum encontrarmos este modo de produção sob diferentes formas (por exemplo, um capitalismo predominantemente agrário, ou predominantemente industrial, ou predominantemente financeiro etc.).

Tanto em 1950 quanto em 2016, o capitalismo é o modo de produção predominante nos EUA, Inglaterra, Brasil e Índia (em todos predomina a exploração do trabalho assalariado), mas são quatro sociedades muito diferentes.

É comum encontrarmos outras classes sociais, além dos casos extremos de proprietários não-produtores e produtores não-proprietários. Por exemplo, os artesãos de ontem e os pequenos-proprietários de hoje. Sem falar nas diferenças que existem no interior de cada grande classe social.

Para dar conta destas diferentes combinações é que utilizamos o termo formação social (alguns preferem formação socioeconômica).

Por exemplo: a formação social brasileira dos anos 1889 até 1930 foi diferente da formação social brasileira dos anos 1930 até 1980.

Importante perceber que os conceitos de modo de produção e de formação social “derivam” dos conceitos de classe e luta de classes.

Dizendo de outra maneira: são as relações de produção que os seres humanos estabelecem entre si, para produzir e reproduzir as suas condições materiais de existência, portanto são as classes sociais e a luta de classes que existem em cada época e lugar, que definem qual “formação social” existe e qual “modo de produção” predomina.

Por isto, a questão básica que deve ser respondida sempre é: quais são as classes e como lutam entre si? Pois uma classe social nunca existe sozinha. Se todos fizessem parte de uma única classe, não haveria classes nem luta de classes...

Estado

Onde há classes, há luta de classes. Notem que isto é diferente de falar que “onde há tribos, há luta pelo controle do território”.

Nas épocas originárias, havia luta entre os seres humanos, por exemplo entre diferentes tribos.

Mas esta luta era diferente da luta de classes, que surgiu quando as sociedades se dividiram internamente entre produtores não-proprietários e proprietários não-produtores.

Quando uma sociedade está dividida em classes, isto significa dizer que uns exploram outros. E para que a exploração se converta em parte normal da vida cotidiana, é preciso que haja “argumentos” fortes: o controle das armas e o controle das mentes, sendo que este último inclui a inexistência (ou desconhecimento) de alternativa melhor.

Ao longo de séculos, as diferentes classes dominantes desenvolveram mecanismos, instrumentos, discursos, hábitos voltados a converter a exploração e a dominação em parte do cotidiano. O “estado normal” seria existir ricos e pobres, senhores e escravos...

Daquele processo que durou milênios surgiu o que hoje chamamos de Estado, uma instituição construída pela sociedade, respondendo a um duplo propósito:

a) impedir que os conflitos inerentes a uma sociedade dividida por interesses antagônicos paralisem esta sociedade;

b) ao fazer funcionar uma sociedade dividida em classes, perpetuar esta divisão em benefício dos interesses essenciais da respectiva classe dominante.

Há tantos Estados quanto há sociedades. Podemos, para fins didáticos, falar em Estado escravista, Estado feudal e Estado capitalista. Mas é preciso ter claro que estas palavras expressam algo tão óbvio quando saber qual a cor do cavalo branco de Napoleão: qual ordem social é protegida pelo respectivo Estado.

Mais importante do que isto é saber como a classe dominante faz, em cada sociedade concreta, para impedir que os conflitos inerentes a uma sociedade dividida por interesses antagônicos paralisem esta sociedade; como ela faz, portanto, para perpetuar a divisão em benefício dos interesses essenciais da respectiva classe dominante.

A resposta é intuitiva: através da cooperação ou da subordinação. Utilizando outras palavras: através do convencimento ou da dominação. Ou ainda: através das palavras ou das armas.

Como os dominantes são em menor número que os dominados, a forma normal de fazer uma sociedade funcionar precisa estar baseada no convencimento. Ou, para usar outros termos, no consentimento, na hegemonia, no convencer as maiorias a seguir as opiniões das minorias.

O uso da subordinação explícita, da dominação, da repressão militar, não pode ser a forma permanente. Se fosse isto, a sociedade viveria eternamente em guerra civil. O que perturbaria os interesses fundamentais da classe dominante.

Porém, nos momentos de crise, nos momentos em que podem ocorrer mudanças profundas, o que decide o conflito é a força bruta. Por isto, aliás, falamos de classe dominante: aquela que dispõe dos meios para dominar as outras.

Mas se queremos entender como uma classe dominante prevalece por tanto tempo sobre um número incrivelmente maior de dominados, é necessário entender os mecanismos pelos quais ela consegue que uma maioria de explorados coopere, aceite, tolere sua própria exploração.

Aqui se faz necessário compreender a força do hábito (“sempre foi e sempre será assim”), o papel do racismo (“naturalizando” a inferioridade de um setor social frente a outro), o papel das religiões oficiais (definindo hierarquias e estimulando o conformismo), o papel da cooptação (confrontar africanos escravos contra indígenas, brancos pobres contra escravos negros, trabalhadores locais contra migrantes, trabalhadores homens contra mulheres etc.), o papel do medo (inclusive o medo da fome).

Estes e outros mecanismos vão se tornando mais sofisticados e poderosos, à medida que o tempo vai passando.

Basta pensar no que era o Estado escravista e compará-lo com o Estado capitalista, ou pensar no Estado existente no Brasil da colônia e o Estado existente hoje.

Por qual motivo o Estado foi se tornando mais sofisticado e poderoso, seja no que diz respeito aos mecanismos de convencimento, seja no que diz respeito aos mecanismos de dominação?

Entre outros motivos porque a sociedade se tornou mais complexa, tornando cada vez mais difícil impedir que os conflitos inerentes a uma sociedade dividida por interesses antagônicos paralisem esta sociedade.

Evitar que a sociedade capitalista seja paralisada pelas crises do próprio capitalismo exige cada vez mais Estado, mesmo que este Estado sirva essencialmente para cobrar tributos e transferir recursos para o capital financeiro.

Acontece que a ampliação do Estado, indispensável para cumprir o papel de estabilizar o funcionamento de uma sociedade cada vez mais conflitiva, é potencialmente conflitante com o objetivo de beneficiar os interesses essenciais da respectiva classe dominante.

De maneira geral, o Estado capitalista é mais “ampliado” que o Estado feudal e o Estado escravista. E, também de maneira geral, o Estado capitalista no século 21 é mais ampliado do que o Estado capitalista no século 19.

Parte desta ampliação implica em funcionários públicos, que não tem origem na classe dominante.

Outra parte desta ampliação implica em dar a outras classes sociais os meios de interferir nas decisões do Estado, por exemplo: elegendo presidentes, parlamentares e juízes. Óbvio que este tipo de ampliação introduz contradições no papel do próprio Estado.

A ampliação do Estado deixa cada vez mais claras as suas duas dimensões: aquela destinada a fazer funcionar a sociedade (o SUS, a educação pública, o controle de trânsito) e aquela destinada a preservar os interesses da classe dominante (as forças armadas, as polícias, o judiciário).

A ampliação do Estado não apenas deixa aquelas duas dimensões cada vez mais claras, como reforça potencialmente a contradição entre elas.

Esta contradição se manifesta de maneira mais clara nos períodos de crise, de baixo crescimento.

Nestes períodos os recursos são escassos e a guerra por eles maior (juros ou políticas sociais?).

Mais do que isto, entretanto, a contradição potencial se manifesta quando o eleitorado dá vitória a governos e parlamentos contrários, em maior ou menor medida, ao status quo.

Quando isto acontece, fica claro o limite da democracia.

Esta palavra tem um significado muito forte para a maioria das pessoas, sempre carregada de significados positivos. Seria o governo da maioria, o oposto de ditadura.

Mas quando observamos ao longo da história, veremos que nem sempre foi assim. Na origem, aliás, democracia era o governo dos homens proprietários de escravos. E durante muito tempo, um governo democrático não era democrático para todos, pois o “povo” não incluia todos os habitantes adultos.

A medida que a luta da classe trabalhadora foi conquistando o direito de votar e ser votado para todos os adultos, homens e mulheres, independente de raça, religião e propriedade, a classe dos capitalistas foi agindo para impedir que estes votos afetassem seus interesses fundamentais.

Esta ação consiste em desestimular a participação política, criar dificuldades para o registro eleitoral, corromper o processo através do dinheiro e da mídia, cooptar os partidos e os eleitos de esquerda, sabotar os governos de orientação popular e, no limite, praticar golpes e magnicídios.

Ou seja: a democracia existente no capitalismo é realmente democrática apenas para uma parte da sociedade. Para a classe dominante, existe muita democracia. Para a classe dominada, existe pouca democracia. O que, especialmente nos momentos de crise, pode ser dito assim: para alguns setores sociais, a democracia capitalista é uma ditadura dos capitalistas.

Esta constatação traz muitas implicações para a ação política dos partidos vinculados à classe trabalhadora.

A principal implicação é a seguinte: os partidos ligados aos capitalistas não lutam pelo poder, pois eles já o possuem. Os partidos capitalistas são instrumentos para ajudar na gestão dos negócios do Estado, um dos instrumentos para selecionar o pessoal que vai gerir a máquina estatal. E nem sempre são o instrumento principal. Na história do Brasil, por exemplo, as forças armadas e as grandes empresas de comunicação já demonstraram ter, em algumas situações, maior importância do que os partidos.

Já os partidos ligados à classe trabalhadora estão diante de uma disjuntiva. Podem ser um instrumento para ajudar a classe trabalhadora a participar da gestão da máquina do Estado; ou podem ser um instrumento para ajudar a classe trabalhadora a se converter em poder de Estado.

Claro que na luta cotidiana, não há contradição absoluta entre os dois objetivos. Quem luta contra o capitalismo pode e deve também lutar por melhorar a vida aqui e agora, inclusive os salários, as condições de trabalho, e por reformas democráticas, ou democrático-burguesas (agrária, urbana, política, sanitária, educacional, tributária); mas também pode e deve lutar pelo fim do capitalismo, o que conduz a lutar por reformas mais profundas, democrático-populares e socialistas (que incluem a supremacia popular sobre o Estado, a supremacia das empresas estatais nas áreas econômicas estratégicas, a orientação do Estado sobre o mercado e sobre o conjunto do desenvolvimento econômico e social, a hegemonia da orientação democrático-popular na educação, saúde e outros serviços e questões sociais).

Mas existe sempre uma contradição potencial entre os dois objetivos (governo e poder), pois no limite eles podem corresponder a metas diferentes: reforma ou revolução, capitalismo ou socialismo. E os caminhos que levam a uma e a outra meta não são exatamente os mesmos, fato que fica claro no dia-a-dia, mas principalmente nos momentos de crise aguda da sociedade.

No caso da política, por exemplo, aqueles que tem como objetivo final lutar por reformar o capitalismo tendem a se integrar aos mecanismos do Estado. As eleições se convertem no seu objetivo principal, seus partidos passam a ser financiados da mesma forma que os partidos burgueses, a vida interna de suas organizações vai ficando cada vez mais tradicional e – principal alteração, pois está na base das demais— seu programa de transformações é influenciado cada vez mais pelos capitalistas e seus interesses.

Claro, se dizer revolucionário não impede que aconteça o mesmo. Há muitas organizações e partidos que se proclamam revolucionárias, comunistas, socialistas, mas seu comportamento prático é igual ou as vezes pior que o de partidos que se assumem como reformistas.

Como sempre, não se deve nunca medir ninguém, partido ou pessoa, pelo que ela diz ou acha de si mesma. A prática é o critério da verdade. E o problema é que, em muitos casos, só no longo prazo se pode medir a correção ou erro de uma determinada linha política. Por isto o debate estratégico é tão importante.

As primeiras batalhas de uma nova guerra

Estratégia é o conjunto de decisões que tem por objetivo ganhar uma guerra; uma guerra é composta por uma sucessão de batalhas; tática é o conjunto das decisões que tem por objetivo ganhar a batalha.

Assim, se a guerra é contra o capitalismo, o objetivo estratégico é um; se a guerra é contra o neoliberalismo, o objetivo estratégico é outro; se a guerra é contra o analfabetismo ou contra o mosquito, os objetivos estratégicos são outros; e assim por diante.

No caso dos que lutam contra o capitalismo, a estratégia envolve os seguintes elementos: a caracterização da etapa  (internacional e nacional), a definição das tarefas, a politica de alianças, a via de acúmulo de forças e a via de tomada do poder.

Tomando como marco o ano de 1989, os traços principais do cenário internacional são: defensiva estratégica da classe trabalhadora; hegemonia do capitalismo; crise do capitalismo; declínio da potência hegemônica; ascensão de outros polos de poder; disputa entre vias de desenvolvimento capitalista; formação de blocos regionais. No âmbito internacional, a tendência predominante é de instabilidade, crises e conflitos.

Já os traços principais do cenário regional são: hegemonia econômica do neoliberalismo; disputa entre diferentes vias de desenvolvimento nacional e regional; vitórias eleitorais e forte protagonismo dos governos progressistas até 2006; desde então, crescente contraofensiva das forças reacionárias. Ou seja, também em âmbito regional estamos entrando num período de defensiva estratégica.

Hoje todos os governos progressistas estão enfrentando uma contraofensiva reacionária (muitas vezes contra a simples existência de um governo considerado progressista).

No caso brasileiro, a contraofensiva envolve ações simultâneas da direita partidária, da direita social, da alta burocracia de Estado, do grande capital e do oligopólio da mídia.

Apesar de diferenças táticas, há um amplo consenso estratégico entre as forças reacionárias, em torno dos seguintes objetivos:

a) realinhar o Brasil ao bloco internacional comandado pelos Estados Unidos (afastando-o tanto dos BRICS quanto da integração latino-americana);

b) reduzir os níveis de remuneração, direta e indireta, da classe trabalhadora brasileira (o que inclui desde alterações na legislação trabalhista até cobrança de serviços públicos, passando por revisão nas políticas de reajuste do salário mínimo e repressão aos movimentos sociais reivindicatórios);

c) reduzir o acesso dos setores populares às liberdades democráticas em particular e aos direitos humanos e sociais.

Caso a ofensiva reacionária tenha pleno êxito, não estaríamos apenas de volta aos governos 100% neoliberais de 1994-2002. Nem estaríamos apenas diante do desmanche dos direitos inscritos na (em geral conservadora) Constituição “Cidadã”. Mais do que isto, sob pelo menos dois aspectos importantes estaríamos “girando” em direção a características do Brasil pré-revolução de 1930: no que diz respeito aos direitos trabalhistas (vide as ameaças contra a CLT) e no que diz respeito ao lugar do Brasil na “divisão internacional do trabalho”.

Dadas as características da situação internacional, regional e nacional, é necessário falar da defensiva estratégica. Daremos como exemplo a situação brasileira.

Defensiva estratégica

Por defensiva, entendemos defender as conquistas de ontem. No caso, defender os direitos sociais e defender as liberdades democráticas.

Um período de defensiva não significa um período de passividade. Num período de defensiva travam-se grandes lutas, se obtém vitórias e até avanços.

O que caracteriza o período de defensiva é o objetivo dele.

Num período de defensiva, nosso objetivo principal é defender as conquistas antigas e recuperar o terreno perdido. Ou seja: os avanços parciais visam recuperar o status quo ante, o que já tínhamos e agora perdemos.

A defensiva não dura para sempre. Em algum momento a defensiva se converte em ofensiva. O que faz a defensiva se converter em ofensiva é a mudança no estado de ânimo da classe trabalhadora. E esta mudança ocorre em parte como reação à ação dos inimigos e em parte por ação da vanguarda. Há uma combinação de elementos. 

Nossa ação não decide tudo, mas nossa ação não é irrelevante. Mais do que isto: nos períodos de ofensiva, quando a vanguarda erra, as massas passam por cima. Mas num período de defensiva, quando a vanguarda erra, quem passa por cima de nós são os inimigos.

Por isto é tão importante, num período de defensiva, acertar. Acertar nas palavras de ordem, acertar nas politicas organizativas, acertar nos métodos de trabalho etc.

Se nosso propósito é criar as condições para sair da situação de defensiva, então nossa ação deve ajudar a classe trabalhadora a mudar seu estado de ânimo. Para isto é preciso elaborar e saber diferenciar as propostas de curto, médio e longo prazo. E para isto é preciso saber escolher muito bem as batalhas que devem ser travadas em cada momento. E por isto é importante, especialmente porque estamos na defensiva, ser o mais didático, paciente e correto no debate de ideias. Pois nos momentos de defensiva, de recuo, de confusão, as forças inimigas ampliam sua influência também no terreno das ideias.

Do ponto de vista organizativo, a principal batalha que devemos travar é defender nossas organizações. E afirmar o princípio da unidade da classe, da unidade das forças populares, da unidade do nosso campo político e social.

Nesta perspectiva, os sindicatos e a central sindical cumprem papel decisivo, porque são organizações que estão em contato direto e cotidiano com a maior parte da classe trabalhadora.

Também nesta perspectiva, a existência de uma frente de organizações (movimentos, sindicatos, partidos) como a Frente Brasil Popular é algo muito importante, porque permite ao mesmo tempo: a) unir esforços para resistir; b) criar um ambiente de debate integrado; c) construir um instrumento essencial para criar as condições para sair da defensiva.

Não é fácil criar uma frente. Há divergências ideológicas e políticas, há diferenças de método, há disputas por protagonismo. Assim, antes de mais nada é preciso entender que estamos diante de um processo, que não se encerra numa reunião e não se confunde com uma declaração de intenções.

O que organiza a frente é um programa mínimo e uma tática para o período. Já o programa máximo e a estratégia de cada organização, é cada organização que decide.

Qual o programa máximo de um sindicato e qual o programa máximo de um partido? Qual a estratégia de um sindicato e qual a estratégia de um partido?

É difícil responder em tese a esta pergunta. Ou melhor: a resposta em tese é fácil, mas ela não esclarece muita coisa.

Falando em tese:

a) um sindicato é uma organização de uma categoria, para organizar a luta pelos objetivos desta parte da classe;

b) uma central sindical pretende organizar toda a classe. Pode incluir nos seus objetivos a luta pelos interesses históricos da classe, mas na prática sua luta é pelos objetivos imediatos do conjunto da classe;

c) um partido político ligado a classe trabalhadora tem como objetivo organizar uma parte da classe, para lutar pelos objetivos históricos do conjunto da classe.

Portanto, falando em tese, o programa máximo do partido deveria ser mais amplo do que o da central e este deveria ser mais amplo do que o do sindicato.

Também falando em tese, o objetivo estratégico de cada organização é diferente.

Um partido que tenha o comunismo ou a transição socialista como objetivo programático máximo, deve ter a construção/conquista do poder como objetivo estratégico.

Já a central sindical e o sindicato não organizam sua ação tendo em vista alcançar estes objetivos programáticos e estratégicos. Claro, este pode ser o objetivo dos dirigentes sindicais, mas não constitui o objetivo imediato do conjunto da classe ou do conjunto da categoria, motivo pelo qual não podem ser o programa máximo nem o objetivo estratégico da central e do sindicato.

Neste sentido, quando usamos o termo estratégia, precisamos saber de qual guerra estamos falando.

Reprogramando a estratégica

No caso do Brasil, a atual ofensiva de direita é também, portanto, sinal do esgotamento da estratégia adotada pela maior parte da esquerda nos últimos 20 anos.

Precisará ser construída, tanto na teoria quanto na prática, outra estratégia: de luta pelo socialismo, não apenas por um capitalismo pós-neoliberal; de luta pelo poder, não apenas pelo governo; uma estratégia das classes trabalhadoras, não de conciliação com setores da classe dominante.

Para alguns setores da esquerda, mais importante que discutir qual o conteúdo e como construir esta nova estratégia, é debater se isto será feito com o PT, sem o PT ou contra o PT.

Há várias razões que explicam esta atitude, entre as quais a campanha de criminalização do PT, que estimula qualquer discussão a desembocar na crítica ao petismo.

É o PT quem terá que decidir se vai buscar construir outra estratégia ou se vai insistir na estratégia da conciliação. E da resposta a esta questão dependerá não exatamente a “sobrevivência futura” do PT, mas sim qual papel o PT jogará no presente e no futuro.

Para fazer uma analogia histórica, com toda imprecisão que as analogias possuem: no final dos anos 1910, a vanguarda da classe trabalhadora brasileira estava sob hegemonia anarquista. O anarquismo foi derrotado e parte dele contribuiu na criação do Partido Comunista. Mas só depois da Segunda Guerra Mundial a estratégia comunista tornou-se hegemônica na vanguarda da classe trabalhadora. O golpe de 1964 desmoralizou profundamente a estratégia do PC, mas a direção daquele partido insistiu na mesma orientação, o que estimulou defecções, cisões, rupturas e a proliferação de novas organizações de esquerdas.

Mas só nos anos 1980 as lutas de uma nova classe trabalhadora dariam origem a uma nova estratégia hegemônica, simbolizada numa nova organização, o Partido dos Trabalhadores, que reuniu a maior parte da vanguarda da classe. Até 1989 o PT seguiu uma estratégia; frente a ofensiva neoliberal e a crise do socialismo, optou após intensa luta interna por outra estratégia. Hoje, aquela estratégia seguida desde 1995 está sob questionamento (a partir de dentro e também de fora; a partir da esquerda, mas principalmente por parte da direita).

O que acontecerá se PT não for capaz de construir uma nova estratégia? Milhões de trabalhadores e de trabalhadoras que algum dia votaram, confiaram e inclusive militaram no petismo vão dividir-se. Uma minoria seguirá noutros partidos e movimentos de esquerda. Uma parte adotará posições conservadoras. A ampla maioria vai afastar-se da política ativa durante muito tempo.

Neste cenário, o enfraquecimento do petismo não seria acompanhado do fortalecimento de outra hegemonia de esquerda. No futuro, com pelo menos uma geração de intervalo, isto poderia/poderá acontecer. Mas de imediato, o enfraquecimento do petismo teria/terá como resultado o fortalecimento da direita. E eventuais setores de esquerda que conseguissem/conseguirem crescer absorvendo o ex-petismo, o fariam num contexto de enfraquecimento da esquerda como um todo.

É por isto que, não apenas para derrotar a direita agora, mas também para evitar que se “perca uma geração” (como ocorreu em 1964), é necessário que o PT mude de estratégia. Isto independe do que venha a ocorrer no futuro próximo com o governo Dilma, lembrando que do ponto de visto histórico e estratégico é bem mais fácil conquistar e reconquistar governos, do que construir e reconstruir partidos.

Do ponto de vista teórico, construir outra estratégia exigirá enfrentar a análise do capitalismo do século XXI, a retomada do balanço da luta pelo socialismo no século XX, assim como um balanço dos governos “progressistas e de esquerda” no Brasil e na América Latina. Do ponto de vista prático, exigirá no essencial um conjunto de ações que recuperem nosso apoio junto à classe trabalhadora, criando as condições sociais indispensáveis para derrotar o grande capital, a oposição de direita e o oligopólio da mídia, em favor de um desenvolvimentismo democrático-popular e articulado com o socialismo.

Quando falamos em recuperar o apoio junto à classe, em reatar laços com nossa base social, não falamos apenas das dezenas de milhares que vão às marchas, manifestações e congressos. Falamos em primeiro lugar das dezenas de milhões que apoiaram as esquerdas nas eleições de 1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014, mas que agora estão decepcionados e em muitos casos sob a hegemonia da direita.

Estratégica, tática e análise de conjuntura

As definições estratégicas podem ser perfeitas no papel, mas se a tática for equivocada, de pouco adiantará.

Ou seja: não é provável que vença uma guerra alguém que perde todas as batalhas de que participa. Pois de derrota em derrota não se constrói a vitória final, embora seja impossível vencer sem antes ter sido derrotado; e seja imprescindível extrair lições da cada uma das derrotas.

A estratégia visa alterar a correlação de forças entre as classes sociais num plano fundamental: o do poder de Estado. E a partir daí, agir sobre o terreno das relações de produção.

A tática visa alterar a correlação de forças entre as classes sociais em níveis menos fundamentais: no governo, no parlamento, nas eleições, nas lutas sociais etc.

Ambas (estratégia e tática) dizem respeito à correlação de forças entre as classes sociais; ambas se articulam; e no limite ocorrem batalhas táticas com efeitos estratégicos (aquela batalha tática em que se decide a “tomada do poder” é também uma batalha estratégica, ou seja, mesmo tendo vencido todas as anteriores, perder esta batalha pode significar perder a guerra).

Noutras palavras: voltamos ao ponto de partida. Tudo depende da análise das classes sociais e da luta de classes.

A análise de conjuntura (ou seja, a análise de um conjunto de elementos) tem por objetivo medir a correlação de forças entre as classes sociais e definir quais passos táticos devemos dar para acumular forças em direção a nossos objetivos estratégicos.

Como medir se estamos acumulando? É preciso verificar qual o nível de consciência, organização e mobilização da classe trabalhadora, vis a vis as demais classes sociais.

Um “ortodoxo” russo dizia que a essência do marxismo é a análise concreta da situação concreta, que o marxismo é um guia para a ação.

“Situação concreta” e “ação” podem dizer respeito a períodos de tempo mais ou menos longos, em territórios mais ou menos extensos.

Podem dizer respeito à estratégia deduzida da análise das tendências de desenvolvimento de uma sociedade ao longo dos últimos 100 anos; ou dizer respeito à tática deduzida da análise de uma sociedade ao longo dos últimos 100 meses.

Podem dizer respeito à análise da situação de uma empresa, de uma cidade, de um estado, de um país, de um subcontinente, de um continente, do mundo.

Quando falamos de análise de conjuntura, estamos nos referindo a uma análise concreta de uma situação concreta mais curta no tempo e restrita no espaço.

Isto é assim não por conta da incapacidade de quem analisa, mas sim por conta da natureza do fenômeno analisado.

A análise de conjuntura é uma análise da correlação de forças em luta, correlação que em última análise remete para dois “sujeitos”: as classes sociais (no âmbito de cada país) e os Estados (expressão desta luta de classes no âmbito internacional).

A correlação de forças se altera com muita rapidez ao longo do tempo; e num mesmo momento, mas em territórios diferentes, também apresenta enormes diferenças.

Por isto, analisar a conjuntura de um século ou analisar a conjuntura do mundo inteiro é, na verdade, estudar várias conjunturas encadeadas ou simultâneas.

Isto é perfeitamente possível de fazer, mas neste caso estaríamos realizando não uma “análise de conjuntura” --ou seja, das tendências de curto/médio prazo-- mas sim uma análise das tendências de médio/longo prazo, portanto uma “análise de estrutura”.

A análise “estrutural” é fundamental, até porque sem ela a análise de conjuntura torna-se volúvel. Da análise de conjuntura deriva a tática, da análise de estrutura deriva a estratégia.

Um dos grandes problemas que temos hoje, na esquerda brasileira em geral e no PT em particular, diz respeito exatamente à análise de estrutura & a estratégia.

A esquerda brasileira --impactada pela crise do socialismo soviético e pela ofensiva neoliberal— não foi capaz de produzir uma análise consistente das tendências do capitalismo no século XXI, nem no mundo, nem no Brasil.

Dizendo de outra maneira: a maior parte da esquerda brasileira não possui uma análise acerca das classes e da luta de classes existente atualmente no Brasil. E sem isto, a análise de conjuntura torna-se míope, politicista, episódica.

Seja como for, “análise de conjuntura” é uma expressão que faz parte do jargão das pessoas que fazem política de forma militante.

Há análises de conjuntura para todos os gostos e sabores; assim como há diferentes maneiras de analisar a conjuntura; não havendo consenso sobre o que significa “analisar”, nem tampouco sobre o que significa “conjuntura”.

Na segunda metade dos anos 1980, o Instituto Cajamar incluía nos seus cursos de formação política uma disciplina intitulada “instrumental de análise de conjuntura”.

Na mesma época, outras instituições faziam o mesmo, com direito a cartilhas e livretos tratando especificamente de sugerir um método, um procedimento, um passo a passo para analisar a conjuntura.

Não cabe, aqui, fazer uma análise comparada das diferentes visões a respeito de como analisar a conjuntura, desde os anos 1980. Mas é fundamental retomar aquele debate sobre o “método”.

E a questão central do método, como já foi dito, diz respeito a análise das classes sociais em luta (no âmbito de cada país) e dos Estados (no terreno mundial).

Importante lembrar, ainda, que o intérprete de uma análise de conjuntura é alguém envolvido nela, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente.

Isto vale inclusive para os que se apresentam como “cientistas políticos” (não importando sua coloração política). Qualquer ponto de vista é a vista a partir de um ponto.

Não há nenhuma relação direta, mecânica, entre o ponto de vista de quem analisa e a qualidade (no sentido de maior ou menor correção) da análise.

Aliás, o fato de alguém se julgar porta-voz autorizado da ciência pura, da nação, da democracia, da classe, de Deus ou de Marx não torna nada disto verdade, nem muito menos garante uma adequada análise dos fenômenos conjunturais.

Isto, entretanto, não torna irrelevante a questão do sujeito da análise, ao menos no caso da classe trabalhadora. Isto por dois motivos fundamentais:

1) a classe trabalhadora está submetida à influência da ideologia da classe dominante (os capitalistas). Reconhecer isto e desenvolver de forma consciente seu próprio ponto de vista é parte integrante da luta por fazer da classe trabalhadora a futura classe dominante;

2) as análises da conjuntura fazem parte... da conjuntura. A difusão de determinadas interpretações, narrativas, conclusões, propostas faz parte da luta política permanente que se trava em nossa sociedade. Por isto é fundamental saber que não existe análise neutra, acima e a parte daquela luta.

A análise de conjuntura deve levar em conta os “marcos estratégicos” nos quais se desenvolve a atual conjuntura brasileira:

a) defensiva estratégica da classe trabalhadora;
b) hegemonia do capitalismo;
c) crise do capitalismo;
d) declínio da potência hegemônica;
e) ascensão de outros polos de poder (vide os BRICS);
f) disputa entre diferentes vias de desenvolvimento capitalista;
g) formação de blocos regionais;
g) hegemonia do neoliberalismo em âmbito regional;
h) disputa entre diferentes modelos de desenvolvimento nacional e regional;
i) vitórias eleitorais e forte protagonismo dos governos progressistas até 2006;
j) desde então, crescente contraofensiva das forças conservadoras.

E também deve levar em conta as alternativas programáticas que defendemos:

a) o desenvolvimento de uma indústria forte e tecnologicamente avançada, com forte participação estatal nos setores estratégicos, forte participação nacional nos demais setores, permitindo o desmanche dos monopólios e oligopólios estrangeiros e nacionais, com os desdobramentos que isto tem no âmbito da ciência e da engenharia nacionais (sem o que não se altera o “lugar” do Brasil na divisão internacional do trabalho);

b) a constituição de um setor financeiro poderoso e público (sem o que não haverá recursos para o desenvolvimento e continuaremos submetidos à ditadura do capital financeiro);

c) a reforma agrária e a universalização das políticas sociais (sem o que não há condições materiais para combinar crescimento econômico com elevação do bem-estar social);

d) a integração regional (possibilitando cadeias produtivas, economia de escala, recursos e retaguarda estratégica);

e) a ampliação da auto-organização da classe trabalhadora e ampliação das liberdades democráticas do conjunto do povo, com destaque para quebra do oligopólio da comunicação, reforma política e do Estado, outra política de segurança pública e de Defesa, outra política de educação e cultura (sem tais medidas, a classe dominante terá os meios para sabotar e reverter o processo de mudanças).

No curto prazo, caso voltemos ao governo, será imperativo derrubar a taxa de juros, alongar o pagamento da dívida pública, controlar o câmbio, cumprir integralmente o Orçamento, impulsionar um plano de obras públicas (habitação e construção civil), tendo como suporte os bancos públicos, a Petrobrás e o complexo de empresas vinculadas a ela.

Mas voltando ou não voltando, a luta de classes no Brasil entrará em uma nova fase. Neste sentido, a batalha do impeachment não é a última batalha de uma guerra antiga, mas sim a primeira batalha de uma guerra nova.

Em agosto deve encerrar uma etapa da história recente do Brasil. Em qualquer dos casos – legalidade ou golpe — terá início um novo período, em que a relação entre as forças políticas, as instituições e as classes sociais, bem como a relação do Brasil com o mundo serão substancialmente distintas daquilo que prevaleceu durante a maior parte dos governos Lula e Dilma.

Um momento em que será fundamental dominar o vocabulário da luta.

Texto elaborado para subsidiar um curso de formação de dirigentes organizado pelo Sintese (SE). Agradeço emendas e comentários de diferentes pessoas.



2 comentários:

  1. Professor Pomar, a etapa que se encerra neste mês foi traumática. O PT teve 13 anos para realizar um governo
    bom, mas sucumbiu ao poder do dinheiro e realizou um
    governo pior do que os anteriores. Uma lástima.

    ResponderExcluir
  2. Caro Valter,

    seria interessante que os elementos de discussão propostos considerassem que:
    1) no tema dos sindicatos e das centrais sindicais abordar a ausência prática de iniciativas destes em incorporar e auxiliar na organização das centenas de milhares de trabalhadores terceirizados, subempregados e desempregados; milhões de trabalhadores jovens e desorganizados são um elemento de divisão prática dos trabalhadores que apenas reforça as estruturas sindicais que zelam pelos interesses de seus filiados, uma fração da "classe".
    2) teus comentários sobre a "crise" da esquerda são bastante claros e seria positivo entender a incapacidade dessa mesma esquerda em lidar com a "realidade" e fazer uso da experiência histórica das lutas que remontam à revolução francesa de 1789, me explico: a luta pela redução da jornada de trabalho como ferramenta de discussão, educação e ação contra as iniciativas do capital; a ausência de um debate sobre a necessidade de uma auditoria da dívida pública (interna e externa)num momento em que os capitalistas e seus "ministros" se dedicam a produzir cortes no orçamento, preservando o montante reservado para as finanças e para os rentistas ( quase 50% do chamado orçamento nacional.Porque a esquerda não coloca em debate e atua frente a esses elementos da "realidade".Será que ainda se acredita que tudo se ajeitará com as eleições municipais e as de 2018? Não se trata de "ilusões democráticas" das "vanguardas" da esquerda, que padece desse "mal" e depois espertamente o imputa às massas.
    3)Falar sobre o futuro requer um ajuste de contas com o passado, e em especial com "experiência" soviética, tema que ainda que não seja o objeto central de teu texto está presente no debate. Outubro de 1917 foi uma maravilha, um alento, uma utopia em construção contra a barbárie capitalista.Contudo em nome de Outubro milhões tiveram suas vidas destroçadas, truncadas, a velha guarda bolchevique foi exterminada e a pátria socialista se converteu numa prisão, sob a tutela e controle da nomenklatura estalinista que de resto produziu o retorno ao capitalismo. Como estou de acordo com tua insistência em falar da "realidade" acredito ser importante considerar que socialismo e comunismo nos remetem às lutas pela abolição da sociedade de classes mas dialogam também com os campos de concentração,com os processos de Moscou, com as sucessivas derrotas e massacres do movimento operário na Alemanha, na Espanha, etc etc .Isso precisa ser considerado e debatido.
    4)A título de provocação: se tomos somos pela unidade onde, de fato, residem as dificuldades de unificar a ação das duas frentes que intervem na conjuntura?

    ResponderExcluir