Em 1989, o Partido dos
Trabalhadores quase venceu a eleição para presidente do Brasil. O slogan de
nossa campanha era “sem medo de ser feliz”. Mas o medo de ganhar assombrava
parte do petismo.
Este medo tinha várias razões de
ser. Entre elas, a estrutura do PT, insuficiente tanto em número quanto em
capacitação, como evidenciavam nossas dificuldades nas administrações
municipais, na construção partidária, nos movimentos sociais e no debate
ideológico.
Sem quadros e militantes
capacitados, a pretensão de disputar a hegemonia vira ficção. E sem igualdade de acesso à formação e à
informação, a democracia interna vira fábula. Razões como estas faziam (e
fazem) o trabalho de formação política ganhar dimensão estratégica para o PT.
Data de 1985 a constituição de um
Grupo de Trabalho responsável pela realização de diversos tipos de cursos,
seminários, palestras e reuniões, visando levantar as necessidades reais do PT
em termos de formação. Um marco inicial desse processo foi a realização, em
março de 1986, da 1º Plenária Nacional de Formação Política, com a presença de
dezesseis estados (o Brasil hoje tem 27 estados).
Outro marco foi a criação, em
julho de 1986, do Instituto Cajamar (Inca). O Instituto realizou sua primeira
atividade - um seminário sobre participação popular na Constituinte - em
dezembro de 1986. A partir de janeiro de 1987, iniciaram-se os cursos de
capacitação de quadros intermediários, voltados para dirigentes sindicais, lideranças
populares, militantes partidários e monitores de formação política, que
atingiram cerca de 2.700 militantes, entre os quais aproximadamente 1.100
enviados diretamente pelo PT. A partir de 1989, passamos também a realizar
cursos de formação de formadores. Além de uma infinidade de seminários e
debates realizados ao longo de todos estes anos.
Em 1990, o 7º Encontro do PT
decidiu “preparar a criação de uma Escola Nacional de Formação”. E, em 1996,
foi criada a Fundação Perseu Abramo.
A consolidação de um sistema
nacional de formação, que além de formar nossos quadros visava também
impulsionar uma atividade permanente de reflexão e elaboração teórica.
implicava em enfrentar duas posições simetricamente incorretas: por um lado a
rejeição da teoria, que aparecia sob diferentes etiquetas: o empirismo,
o basismo, o obreirismo, o economicismo, o praticismo, o culto à ação; por
outro lado, a transformação da teoria em doutrina escolástica, em
teologia.
Um sistema de formação implicava,
também, num debate pedagógico, onde se confrontavam as concepções ditas
“bancárias” (em que o conhecimento era “depositado” na cabeça dos educandos)
com aquelas oriundas da educação popular e da pedagogia de influência marxista.
E o debate pedagógico remetia para a discussão do método, ou seja, do processo
de conhecimento, tema desenvolvido pelo documento A política de formação
do PT, elaborado em 1988.
Outro aspecto é a multiplicidade
de referências teóricas, presentes não apenas na militância, mas também entre
os formadores. Dentro e fora do guarda-chuva marxista, há um sem-número de
referências políticas, teóricas, metodológicas e pessoais, percebendo-se a
influência da escola clássica de formação, desenvolvida pelos comunistas; das
experiências de formação sindical e da educação popular e, ainda, uma forte
presença da educação tradicional.
Nosso sistema tinha que levar em
conta a enorme demanda por formação, que exigia não apenas a capacitação de
quadros, mas também o desenvolvimento de uma massiva campanha de formação de base,
utilizando intensivamente novos recursos pedagógicos, dando conta de variado
público e amplo leque de temas. A
diversidade começava pelas características culturais e regionais do Brasil,
passa pelos diferentes níveis de militância (filiados, ativistas. quadros
intermediários, dirigentes) e áreas de inserção (movimentos sociais, estrutura
partidária. frente institucional); incluindo ainda os diferentes graus de
compreensão da proposta petista, influenciados pela época e pelas razões que
motivaram cada um a se filiar ao PT.
A escola de um partido que se
propõe a dirigir o processo de construção da nova sociedade deve abordar
questões ideológicas, culturais, morais, éticas, grupais, interpessoais,
sexuais e individuais. E debater fenômenos como o individualismo, a corrupção
moral, o acomodamento e o mandonismo.
A formação política não é o único
meio de combater esses desvios, que exigem vigilância constante e uma profunda
democracia - mesmo porque é nos círculos dirigentes que eles se manifestam
primeiro e mais fortemente.
Não existe uma vacina definitiva
contra esses perigos. É preciso lembrar que eles brotam das condições de vida
da nossa sociedade, exigindo de nossa parte um combate permanente, na sociedade
e no partido. Estão aí as experiências de certas igrejas para mostrar que a
doutrinação ideológica não é um antídoto contra a hipocrisia, a cupidez e o
moralismo.
O que você acaba de ler foi, no
fundamental, escrito no ano de 1990 e reflete o que fizemos e o que debatemos
na década dos 1980. Já na década de 1990, a situação da formação política
petista mudou significativamente.
A ofensiva neoliberal, a crise do
socialismo, o refluxo dos movimentos sociais e a progressiva concentração da
atividade partidária nos processos eleitorais gerou um impacto fortemente
negativo sobre o trabalho de formação política.
A lógica e as necessidades de um
partido militante são muito distintas daquelas predominantes num partido
integrado por filiados-eleitores. O trabalho de formação política foi sendo
abandonado ou, quando preservado, assumiu ares de “capacitação”: como governar,
como legislar, como explicar quais as nossas políticas públicas.
Assim, da mesma forma como ao
longo dos anos 1980 o Partido foi progressivamente dando importância ao
trabalho de formação política, nos anos 1990 ocorreu de fato (mas nem sempre de
direito) o movimento inverso.
Esse processo deve ser visto no
contexto da disputa que a burguesia desenvolve contra nosso Partido, num
movimento que inclui não apenas tentativas de destruição, mas também tentativas
de cooptação. A cooptação visa que nosso Partido vá se aproximando das
concepções ideológicas e das práticas
tradicionais da política brasileira, como o caciquismo, a promiscuidade entre
os partidos e o poder econômico, a demagogia eleitoral, a corrupção, a
violência e o abuso de poder econômico nas relações internas etc...
Nessas condições, a formação
política é decisiva, para capacitar a militância de base a defender o Partido e
decidir sobre seus rumos. Claro que a formação também é um espaço em disputa,
sendo necessário estabelecer procedimentos que garantam a pluralidade, o espaço
para o debate, a convivência entre as diversas forças políticas.
O que se acabou de ler é uma
adaptação de um discurso feito em 1996, durante uma reunião para debater os
rumos da formação política no PT. Foram necessários muitos anos mais para que,
em 2007, o III Congresso do PT criasse a Escola Nacional do Partido, uma
estrutura vinculada a Fundação Perseu Abramo, retomando as decisões do 7o
Encontro de 1990.
Hoje, qual a situação?
O PT, como a esquerda
latinoamericana e caribenha, segue chamado a enfrentar três grandes déficits
teóricos: nossa reduzida compreensão do capitalismo do século XXI; nossa
incompleta análise das tentativas de construção do socialismo no século XX (e,
poderíamos acrescentar, também das experiências desenvolvimentistas,
nacionalistas revolucionárias e social-democratas); e a necessidade de uma
estratégia que articule as dimensões regional e nacional.
Vale dizer que estes déficits
teóricos terão que ser enfrentados a quente, nos marcos de uma crise
internacional marcada por profunda crise do capitalismo, pelo declínio da
hegemonia dos Estados Unidos, pela emergência de novos centros de poder, pela
instabilidade sistêmica, por profundos conflitos sociais, agudas crises
políticas e conflitos militares cada vez mais perigosos.
América Latina e Caribe fazem
parte deste mundo em crise e sofrem os efeitos desta situação. Mas também somos
uma região em que, desde o fim do século XX, início do século XXI, está em
curso un processo de mudanças que oferece esperanças e alternativas para este
mundo em crise.
A situação internacional, em
especial a contraofensiva dos Estados Unidos e de seus aliados, exige reação
rápida, eficaz e conjunta dos partidos, movimentos sociais e governos
progressistas e de esquerda, no sentido de acelerar a integração regional e
aprofundar as mudanças que estão em curso na região.
O complicador é que entramos, em
nossa região, numa etapa em que os ventos da luta política e social não sopram
mais necessariamente a nosso favor. Motivo pelo qual o empirismo e o
doutrinarismo precisam ceder lugar para a análise concreta da situação
concreta, não como operação monástica de
uma elite intelectual, mas sim enquanto movimento cultural de massas, em que
milhões de pessoas se envolvam na construção de um pensamento socialista de
massas, que articule o mundial, o regional e o nacional; o classista, o
democrático e o popular; a luta social, a ação institucional e o debate ideológico;
o passado, o presente e o futuro.
Noutras palavras: indústria
cultural de novo tipo, educação pública de novo tipo, mídia de massas de novo
tipo, Estado de novo tipo para uma politica e uma sociedade de novo tipo. É
nesses marcos que se deve pensar o trabalho de educação política da militância
dos movimentos sociais e dos partidos políticos na região.
No caso específico do Partido dos
Trabalhadores, temos um conjunto de experiências acumuladas no terreno do que
chamamos de “formação política”, inclusive a experiência de fazer quase nada a
respeito, o que nos causou imenso prejuízo e que provocou como reação, hoje,
uma retomada do trabalho nacional de formação.
Como o PT é um partido plural,
socialmente, politicamente e ideológicamente, nada é simples neste terreno. E
como nossa ação é fortemente marcada pela lógica pragmática da dinâmica
eleitoral, governamental e parlamentar, nada é exatamente como gostaríamos que
fosse. Mas mesmo os mais pragmáticos reconhecem que se o Partido não retomar seu
processo de formação de quadros, em larga escala e profundidade, enfrentaremos
uma regressão sem tamanho.
Neste processo de formação de
quadros, entram em conflito as grandes correntes ideológicas presentes no PT e
também em toda a esquerda brasileira hoje: o social-liberalismo, o
nacional-desenvolvimentismo, o reformismo social-democrata, o socialismo
revolucionário.
Entram em choque, também, os
interesses de curto prazo (ganhar eleições e outras lutas imediatas, exercer
bons mandatos parlamentares, fazer governos de qualidade e capazes de
reeleição, manter em funcionamento a “máquina partidária”) e as orientações de
médio e longo prazo (sobre nosso projeto de sociedade, sobre nosso caráter de
classe, sobre nossa visão de mundo).
Fica patente, finalmente, as
limitações de nossa intelectualidade. Décadas de neoliberalismo não influiram
apenas no ideário hegemônico, mas também rebaixaram o patamar cultural geral da
sociedade, da esquerda inclusive.
Seja como for, o Partido dos
Trabalhadores do Brasil está buscando implementar projetos de educação política
de nossos quadros. Com que sucesso e em que medida isto vai nos ajudar na luta
política e na resolução dos déficits teóricos apontados antes, isto só o tempo
dirá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário