domingo, 8 de julho de 2012

A Pátria Grande e a outra economia


Texto escrito para a Agenda Latinoamericana.


Um ponto de partida: vivemos um momento de crise. Crise econômica, social, política, militar, ideológica, ambiental, energética. Alguns falam em crise civilizacional.

Naturalmente, a crise não é igual para todos. Pessoas pobres e ricas, países mais ou menos desenvolvidos, experimentam a crise de maneiras diferentes. E reagem de maneira distinta, também.

Como serão as coisas depois da crise? Não sabemos. O que sabemos é que podem ser iguais, piores ou melhores, a depender das soluções que prevaleçam aqui e agora, hoje e amanhã, para enfrentar a crise.

Não temos motivos para comemorar as crises. Nelas, quem mais sofre são os mais fracos, os mais pobres, os mais desprotegidos. Mas tampouco temos motivos para temer as crises. Da reação que tenhamos frente à crise, pode surgir um mundo melhor.

Um exemplo disto está em nossa América Latina e Caribenha. Depois da chegada dos europeus ao que hoje é nosso território, fomos convertidos em fonte de riquezas que serviram ao desenvolvimento do capitalismo na Velha Europa.

Pois bem: quando a Velha Europa entrou em crise, na época que alguns historiadores chamam de Era das Revoluções (1750-1850), o Novo Mundo experimentou a oportunidade para seguir um caminho próprio. Foi a época das Independências em nosso continente.

Passada esta época, o Velho Mundo e sua extensão (os Estados Unidos, que surgiram exatamente na época das Independências) converteram mais uma vez nosso território em fonte de riquezas, mercado consumidor e local para exportação de capitais. Antes colonialismo, agora imperialismo, mas as veias seguiam abertas e sugadas.

Mas, quando o Velho Mundo e os EUA entraram em crise (entre 1914 e 1945), com direito a duas guerras mundiais e uma grande depressão econômica, foi o momento em que parcelas importantes do Novo Mundo conseguiram industrializar-se, somando independência política com independência econômica.

Depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos assumiram sem contestação a direção do mundo capitalista. Era uma época de muitas novidades, tais como: o surgimento de um “campo socialista”, composto por União Soviética, vários países do Leste Europeu e China; a consolidação do chamado “Estado de Bem Estar Social” na Europa, combinando altas doses de democracia política, políticas públicas em benefício dos trabalhadores e intenso desenvolvimento econômico capitalista; o fim das colônias européias na África e Ásia, com a fundação ou independência de dezenas de países, entre os quais a Índia, o Vietnã, Angola e Moçambique; e, na América Latina, a adoção de políticas desenvolvimentistas, para tirar nossa região do atraso. Além disso e por tudo isto, foi também uma época de grandes mudanças científicas e culturais. Sintetizando tudo, alguns historiadores gostam de chamar este período de 25 anos de ouro do capitalismo (1945-1970), ou seja, quando pareceu que o capitalismo podia ser compatível com bem-estar, democracia e integração entre os povos.
Hoje sabemos que isto não era verdade, nem naquela época, nem depois. Para a maior parte dos povos do mundo, o período de 1945-1970 foi de luta contra a opressão e a exploração. O capitalismo coexistiu com certo bem-estar, apenas naquelas regiões onde as grandes empresas podiam fazer concessões aos trabalhadores locais, porque compensavam isto com a exploração de trabalhadores em outras regiões do mundo.

O pior, contudo, ainda estava por vir. Mais ou menos em 1970, o capitalismo entrou em uma nova crise internacional. E para enfrentar esta crise, os capitalistas deflagaram uma campanha ideológica, política e econômica cujo objetivo era desmontar todos os avanços e todas as conquistas que os trabalhadores e os povos haviam conseguido, depois de 1945.

Hoje, 43 anos depois, olhamos para trás e podemos dizer: a ofensiva neoliberal começou em 1970. A lista de vítimas é extensa: os países africanos, que ganharam independência política mas foram recolonizados economicamente; os países latinoamericanos, envolvidos na crise da dívida externa, tiveram suas economias destruídas, privatizadas, saqueadas; as políticas de bem-estar nos EUA e na Europa. E, entre as vítimas indiretas, o socialismo existente na URSS, que caiu sob o efeito combinado de seus próprios problemas e dos ataques do capitalismo neoliberal.

Portanto, tivemos duas crises que tiveram desdobramentos relativamente benéficas e uma crise que nos foi extremamente prejudicial. Hoje, vivemos uma quarta grande crise, a crise do capitalismo neoliberal. Saberemos aproveitar a oportunidade?

Primeiro, é preciso entender esta crise. Em poucas palavras, é uma crise composta por três grandes componentes: a crise do neoliberalismo (ou seja, da economia controlada por grandes bancos e transnacionais), a crise dos Estados Unidos (que como todo Império, chegou naquela fase em que não consegue mais financiar os custos de sua própria manutenção) e a crise do Velho Mundo (que desde 1500 hegemoniza o mundo, mas agora está vendo o poder deslocar-se em direção à outras regiões do planeta Terra).

Em segundo lugar, é preciso compreender quem somos e como estamos. América Latina e Caribenha é uma das grandes potências do mundo, não no sentido do que somos hoje, mas no sentido do que podemos vir a ser, dado o nosso potencial natural, aqüífero, biogenético, energético, humano, cultural, tecnológico e político.

Para que este potencial se transforme em realidade, é preciso fazer entender que a soma multiplica a força das partes. Se nossa região constituir um bloco regional, se instituições como a Unasur e a Celac (Comunidade estados latinoamericanos e caribenhos) funcionarem. isto poderá converter em realidade aquilo que hoje é apenas uma potência.

Mas para que a integração seja possível, é preciso que ela seja abraçada pela maioria dos povos de cada um de nossos países. Ou seja: precisamos de uma maioria política favorável a integração latinoamericana e caribenha. Mas esta maioria só vai se formar sob duas condições.

A primeira é que a maioria de trabalhadores pobres que constitui nossa população, o povo, veja na integração um caminho para melhorar nossa vida. Isto só acontecerá se formos capazes de construir outra economia, qualitativamente diferente da que se construiu ao longo dos últimos séculos em nossa região.

Em poucas palavras, sair de uma economia à serviço de gerar lucros para uma minoria, para uma economia organizada em torno do objetivo de elevar continuamente a qualidade de vida de todos. Noutras palavras, colocar a riqueza produzida por todos os latinoamericanos, à serviço de todos os latinoamericanos.

Como se faz isto?

Fácil de falar: através de políticas econômicas que garantam crescimento, emprego, salário adequado, renda para os que ainda não trabalham e para os que já trabalharam o suficiente, investimentos públicos em educação, em saúde, em habitação, em cultura. Financiadas por políticas tributárias progressivas (quem taxem mais os mais ricos) e por uma gestão econômica que elimine o controle que as transnacionais, o agronegócio e os grandes bancos mantém sobre a economia.

Difícil de fazer: pois os ricos, os poderosos, têm mil e um mecanismos para manter a economia, a sociedade e a política funcionando a seu serviço. E também difícil porque há muitas diferenças entre os países de nossa região, o que significa que os países mais ricos precisam ajudar os países mais pobres, sob pena da desigualdade prosseguir para sempre.
Difícil de fazer, mas não impossível. O que nos remete para a segunda condição a que nos referimos acima: a formação de uma consciência latinoamericana, democrática e popular, comprometida com um novo mundo.

Hoje, a maioria dos que vivem em nosso continente formam sua visão de mundo com base nas idéias difundidas pela indústria cultural, pelos grandes meios de comunicação, pelas escolas tradicionais e por visões religiosas conservadoras. Além disso, passam parte do seu dia submetidos a uma disciplina laboral concebida exatamente pelos que controlam a sociedade que queremos mudar.

Sem mudar isto, sem formar uma nova consciência popular, latinoamericana, democrática e popular, comprometida com um novo mundo, consciente de que é preciso organizar de outra forma a economia, não conseguiremos formar uma maioria política favorável a integração. E sem integração não teremos nova economia. E sem nova economia, quando a crise atual passar, nos veremos em situação igual ou pior do que a atual.

Motivos de otimismo? Sim, claro. Nunca os setores populares latinoamericanos tiveram tanta força. Basta olhar quem ocupa a presidência da maioria dos países da América do Sul, para ver a diferença. Saberemos, nós todos, incusive nossos presidentes e presidentas, aproveitar esta força para realizar as mudanças necessárias? Ou nos consolaremos em tirar o bode da sala, reconstruindo aquilo que foi destruído pelo neoliberalismo, para ao final da operação estarmos de volta ao ponto de partida, ou seja, a como éramos e vivíamos antes do neoliberalismo, época em que nossos pais e avós lutavam por um mundo melhor, porque aquele também lhes parecia insuportável?

Estas são as questões que temos que enfrentar. Se tivermos êxito, teremos Pátria Grande.


















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