Texto escrito para a Agenda Latinoamericana.
Um ponto de partida: vivemos um momento de crise.
Crise econômica, social, política, militar, ideológica, ambiental, energética.
Alguns falam em crise civilizacional.
Naturalmente, a crise não é igual para todos.
Pessoas pobres e ricas, países mais ou menos desenvolvidos, experimentam a
crise de maneiras diferentes. E reagem de maneira distinta, também.
Como serão as coisas depois da crise? Não sabemos.
O que sabemos é que podem ser iguais, piores ou melhores, a depender das
soluções que prevaleçam aqui e agora, hoje e amanhã, para enfrentar a crise.
Não temos motivos para comemorar as crises. Nelas,
quem mais sofre são os mais fracos, os mais pobres, os mais desprotegidos. Mas
tampouco temos motivos para temer as crises. Da reação que tenhamos frente à
crise, pode surgir um mundo melhor.
Um exemplo disto está em nossa América Latina e
Caribenha. Depois da chegada dos europeus ao que hoje é nosso território, fomos
convertidos em fonte de riquezas que serviram ao desenvolvimento do capitalismo
na Velha Europa.
Pois bem: quando a Velha Europa entrou em crise, na
época que alguns historiadores chamam de Era das Revoluções (1750-1850), o Novo
Mundo experimentou a oportunidade para seguir um caminho próprio. Foi a época
das Independências em nosso continente.
Passada esta época, o Velho Mundo e sua extensão
(os Estados Unidos, que surgiram exatamente na época das Independências)
converteram mais uma vez nosso território em fonte de riquezas, mercado
consumidor e local para exportação de capitais. Antes colonialismo, agora
imperialismo, mas as veias seguiam abertas e sugadas.
Mas, quando o Velho Mundo e os EUA entraram em
crise (entre 1914 e 1945), com direito a duas guerras mundiais e uma grande
depressão econômica, foi o momento em que parcelas importantes do Novo Mundo
conseguiram industrializar-se, somando independência política com independência
econômica.
Depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos
assumiram sem contestação a direção do mundo capitalista. Era uma época de
muitas novidades, tais como: o surgimento de um “campo socialista”, composto
por União Soviética, vários países do Leste Europeu e China; a consolidação do
chamado “Estado de Bem Estar Social” na Europa, combinando altas doses de
democracia política, políticas públicas em benefício dos trabalhadores e
intenso desenvolvimento econômico capitalista; o fim das colônias européias na
África e Ásia, com a fundação ou independência de dezenas de países, entre os
quais a Índia, o Vietnã, Angola e Moçambique; e, na América Latina, a adoção de
políticas desenvolvimentistas, para tirar nossa região do atraso. Além disso e
por tudo isto, foi também uma época de grandes mudanças científicas e
culturais. Sintetizando tudo, alguns historiadores gostam de chamar este período
de 25 anos de ouro do capitalismo (1945-1970), ou seja, quando pareceu que o
capitalismo podia ser compatível com bem-estar, democracia e integração entre
os povos.
Hoje sabemos que isto não era verdade, nem naquela
época, nem depois. Para a maior parte dos povos do mundo, o período de
1945-1970 foi de luta contra a opressão e a exploração. O capitalismo coexistiu
com certo bem-estar, apenas naquelas regiões onde as grandes empresas podiam
fazer concessões aos trabalhadores locais, porque compensavam isto com a
exploração de trabalhadores em outras regiões do mundo.
O pior, contudo, ainda estava por vir. Mais ou
menos em 1970, o capitalismo entrou em uma nova crise internacional. E para
enfrentar esta crise, os capitalistas deflagaram uma campanha ideológica,
política e econômica cujo objetivo era desmontar todos os avanços e todas as
conquistas que os trabalhadores e os povos haviam conseguido, depois de 1945.
Hoje, 43 anos depois, olhamos para trás e podemos
dizer: a ofensiva neoliberal começou em 1970. A lista de vítimas é extensa: os
países africanos, que ganharam independência política mas foram recolonizados
economicamente; os países latinoamericanos, envolvidos na crise da dívida
externa, tiveram suas economias destruídas, privatizadas, saqueadas; as
políticas de bem-estar nos EUA e na Europa. E, entre as vítimas indiretas, o
socialismo existente na URSS, que caiu sob o efeito combinado de seus próprios
problemas e dos ataques do capitalismo neoliberal.
Portanto, tivemos duas crises que tiveram desdobramentos
relativamente benéficas e uma crise que nos foi extremamente prejudicial. Hoje,
vivemos uma quarta grande crise, a crise do capitalismo neoliberal. Saberemos
aproveitar a oportunidade?
Primeiro, é preciso entender esta crise. Em poucas
palavras, é uma crise composta por três grandes componentes: a crise do
neoliberalismo (ou seja, da economia controlada por grandes bancos e
transnacionais), a crise dos Estados Unidos (que como todo Império, chegou
naquela fase em que não consegue mais financiar os custos de sua própria
manutenção) e a crise do Velho Mundo (que desde 1500 hegemoniza o mundo, mas
agora está vendo o poder deslocar-se em direção à outras regiões do planeta
Terra).
Em segundo lugar, é preciso compreender quem somos
e como estamos. América Latina e Caribenha é uma das grandes potências do
mundo, não no sentido do que somos hoje, mas no sentido do que podemos vir a
ser, dado o nosso potencial natural, aqüífero, biogenético, energético, humano,
cultural, tecnológico e político.
Para que este potencial se transforme em realidade,
é preciso fazer entender que a soma multiplica a força das partes. Se nossa
região constituir um bloco regional, se instituições como a Unasur e a Celac
(Comunidade estados latinoamericanos e caribenhos) funcionarem. isto poderá
converter em realidade aquilo que hoje é apenas uma potência.
Mas para que a integração seja possível, é preciso
que ela seja abraçada pela maioria dos povos de cada um de nossos países. Ou
seja: precisamos de uma maioria política favorável a integração latinoamericana
e caribenha. Mas esta maioria só vai se formar sob duas condições.
A primeira é que a maioria de trabalhadores pobres
que constitui nossa população, o povo, veja na integração um caminho para
melhorar nossa vida. Isto só acontecerá se formos capazes de construir outra
economia, qualitativamente diferente da que se construiu ao longo dos últimos
séculos em nossa região.
Em poucas palavras, sair de uma economia à serviço
de gerar lucros para uma minoria, para uma economia organizada em torno do
objetivo de elevar continuamente a qualidade de vida de todos. Noutras
palavras, colocar a riqueza produzida por todos os latinoamericanos, à serviço
de todos os latinoamericanos.
Como se faz isto?
Fácil de falar: através de políticas econômicas que
garantam crescimento, emprego, salário adequado, renda para os que ainda não
trabalham e para os que já trabalharam o suficiente, investimentos públicos em
educação, em saúde, em habitação, em cultura. Financiadas por políticas
tributárias progressivas (quem taxem mais os mais ricos) e por uma gestão
econômica que elimine o controle que as transnacionais, o agronegócio e os
grandes bancos mantém sobre a economia.
Difícil de fazer: pois os ricos, os poderosos, têm
mil e um mecanismos para manter a economia, a sociedade e a política
funcionando a seu serviço. E também difícil porque há muitas diferenças entre
os países de nossa região, o que significa que os países mais ricos precisam
ajudar os países mais pobres, sob pena da desigualdade prosseguir para sempre.
Difícil de fazer, mas não impossível. O que nos
remete para a segunda condição a que nos referimos acima: a formação de uma
consciência latinoamericana, democrática e popular, comprometida com um novo
mundo.
Hoje, a maioria dos que vivem em nosso continente
formam sua visão de mundo com base nas idéias difundidas pela indústria
cultural, pelos grandes meios de comunicação, pelas escolas tradicionais e por
visões religiosas conservadoras. Além disso, passam parte do seu dia submetidos
a uma disciplina laboral concebida exatamente pelos que controlam a sociedade
que queremos mudar.
Sem mudar isto, sem formar uma nova consciência
popular, latinoamericana, democrática e popular, comprometida com um novo
mundo, consciente de que é preciso organizar de outra forma a economia, não
conseguiremos formar uma maioria política favorável a integração. E sem
integração não teremos nova economia. E sem nova economia, quando a crise atual
passar, nos veremos em situação igual ou pior do que a atual.
Motivos de otimismo? Sim, claro. Nunca os setores
populares latinoamericanos tiveram tanta força. Basta olhar quem ocupa a
presidência da maioria dos países da América do Sul, para ver a diferença.
Saberemos, nós todos, incusive nossos presidentes e presidentas, aproveitar
esta força para realizar as mudanças necessárias? Ou nos consolaremos em tirar
o bode da sala, reconstruindo aquilo que foi destruído pelo neoliberalismo,
para ao final da operação estarmos de volta ao ponto de partida, ou seja, a
como éramos e vivíamos antes do neoliberalismo, época em que nossos pais e avós
lutavam por um mundo melhor, porque aquele também lhes parecia insuportável?
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