sábado, 14 de janeiro de 2012

Carta aberta ao "Campo majoritário"

Esta Carta aberta ao “Campo majoritário” foi divulgada em maio de 2005. Sugiro atenção para os trechos destacados em vermelho.

O chamado “campo majoritário” do PT realizou, nos dias 9 e 10 de abril, uma reunião no Rio de Janeiro, para discutir sua participação no processo de eleição das direções partidárias.

Como subsídio para esta reunião, foi distribuído um texto de 44 páginas, de título “Bases de um projeto para o Brasil” e subtítulo “Roteiro para o debate programático do PT”. Este texto, datado de 20 de março, é “preliminar, reservado à polêmica e ao debate no Campo Majoritário”.

Não sabemos quais as alterações introduzidas, neste texto preliminar, pelo debate realizado na reunião de 9 e 10 de abril. Ainda assim, consideramos útil encaminhar aos companheiros do “campo majoritário” nossas opiniões sobre o que é dito no documento “Bases de um projeto para o Brasil”.

Naturalmente, tanto quanto o texto, nossas observações têm, também, caráter preliminar e visam estimular o debate. Pois estamos convencidos que o processo de eleição das direções partidárias não pode ser transformado numa grande prévia, onde a maioria dos filiados só aparece para votar, sem ter tido antes a possibilidade de confrontar as idéias defendidas por cada setor do Partido.

Primeira observação

Achamos que o texto debatido pelo “campo majoritário”, nos dias 9 e 10 de abril, pode ser apresentado como um roteiro para o debate programático do governo, mas certamente não é um roteiro para o debate programático do PT.

Evidente que o destino do PT está ligado ao destino do governo Lula. Evidente, também, que o próximo encontro nacional do PT deve realizar um balanço exaustivo dos três primeiros anos do governo Lula. Mas os objetivos programáticos e a estratégia do Partido não podem ser resumidos aos caminhos e descaminhos do nosso governo federal. E o balanço só faz sentido, se tivermos claro em direção a que objetivo estratégico pretendemos caminhar.

É claro que somos totalmente favoráveis a uma “reflexão crítica [e rigorosa] na avaliação da própria ação do Governo e do PT”, até porque estamos convencidos de que se não aprendermos com a “experiência inédita da sustentação e participação no governo federal”, nosso partido pode não sobreviver a esta experiência.
Entretanto, tanto para o bom desfecho desta avaliação, quanto para o sucesso do governo Lula, é fundamental que o conjunto do Partido, inclusive no próximo encontro nacional, debata “exaustivamente” pelo menos três outras questões:

a)o que deve ser feito para reanimar os movimentos sociais;

b)o que deve ser feito para manter a combatividade e a democracia interna do Partido dos Trabalhadores;

c)que medidas devem ser adotadas para garantir que nossa ação governamental seja parte do acúmulo de forças em favor de nosso objetivo estratégico, que é o socialismo.

Estes três temas comparecem de maneira totalmente insuficiente no “roteiro” debatido pelo campo majoritário.

Certamente os companheiros têm consciência deles, até porque dizem que “para cumprirmos a tarefa de avançar [na] formulação de um projeto de desenvolvimento temos que vencer os seguintes desafios: (i)aprofundar a compreensão da realidade brasileira, das potencialidades e limites que o país possui para se desenvolver; (ii)melhorar o preparo de seus quadros partidários e a qualidade das suas propostas de políticas públicas, unificando a militância e a base partidária em torno de nosso projeto; (iii) resgatar os princípios e valores petistas construídos ao longo destes 25 anos levando em conta nossos novos desafios de ser governo”.

Entretanto, a “embocadura” utilizada pelos companheiros, a nosso ver, conduzirá a conclusões incorretas, ao menos do ponto de vista de uma esquerda que se pretende, além de “democrática” e de “esquerda”, também socialista.

Explicamos: embora reafirmem, em algumas passagens do texto, o socialismo como objetivo estratégico do Partido, os companheiros de fato transformam em objetivo estratégico “impulsionar um processo de desenvolvimento econômico e social de longa duração, com crescimento orientado para a diminuição da pobreza secular e das desigualdades de renda e regionais”.

Claro que somos favoráveis a afirmar o Brasil no âmbito internacional, bem como as outras medidas indicadas nesta passagem do texto. Entretanto, como sabem muito bem os companheiros, lutar por “padrões de vida civilizados” para o nosso povo não é necessariamente lutar pelo socialismo. Faz parte, como diria um famoso filósofo campineiro, mas não se resume a isto.

De fato, nos parece que os companheiros incorporaram a “democracia republicana” e o “desenvolvimento” como os objetivos estratégicos do Partido, deixando ao socialismo um lugar mais ou menos ritual. Antes que nos acusem de estarmos fazendo um debate acadêmico e escolástico, tentaremos explicar os efeitos negativos da aceitação do republicanismo e do desenvolvimentismo como alfa e ômega de nossas formulações partidárias.

A reflexão que falta

O texto dos companheiros é composto por dez itens: “Apresentação”; “Desafios”; “PT: um partido democrático e de esquerda”; “O PT, as reformas democráticas e a política de alianças”; “O PT no governo federal: lições e perspectivas”; “O papel do Estado no desenvolvimento”; “O Brasil, o desenvolvimento tecnológico e a sociedade do conhecimento”; “Integrar, ampliar e aperfeiçoar as políticas sociais”; “O PT, o Brasil e a globalização”.

Lendo todos estes itens, o que mais chama a atenção é a falta de uma reflexão consistente sobre a natureza da crise internacional e da crise nacional. E discutir a natureza da crise, significa discutir a natureza do capitalismo contemporâneo e os caminhos para sua superação estrutural.

Isto, é bom que se diga, não é um defeito privativo do texto dos companheiros. Na verdade, a esquerda brasileira como um todo carece de um diagnóstico do atual período histórico, que vá além do impressionismo tão comum em nossas análises. E que perceba que estamos vivendo, em âmbito internacional, um momento semelhante ao do final do século XIX, quando o capitalismo entrou numa nova fase, para a qual Marx era fundamental, mas não suficiente. Naquele momento, dirigentes como Kautsky, Bernstein, Rosa Luxemburgo, Hilferding, Bukharin e Lênin dedicaram-se pessoalmente ao estudo da nova situação e propuseram sínteses explicativas (contraditórias entre si), que foram decisivas, para o bem e para o mal, nos acontecimentos posteriores. Hoje, podemos dizer que Lênin e a teoria do imperialismo são fundamentais, mas não suficientes.
Agregue-se a isto o fato de estarmos vivendo, no Brasil e na América Latina, situação semelhante a do início do século XX, em que o modelo então hegemônico - o liberalismo agro-exportador, associado ao imperialismo, especialmente britânico - entrou em crise, seguindo-se um longo período de convulsão e tentativas de gestar um novo modelo.

No Brasil, aquele novo modelo incorporou os trabalhadores urbanos, mas de forma subalterna e preservando os interesses das antigas classes dominantes (excluindo, por isto mesmo, os trabalhadores rurais dos novos direitos sociais e políticos). Naquele época, a esquerda dividiu-se entre os que ficaram à margem do processo e os que sucumbiram a ele, associando-se aberta ou veladamente às diferentes vertentes do projeto capitalista.

Um diagnóstico do atual período histórico precisa levar em conta, ainda, que vivemos sob uma hegemonia capitalista sem paralelo na história. Se é verdade que isso agrava as contradições do próprio capitalismo e demonstra a necessidade urgente de sua superação histórica, é verdade também que aumenta a barbárie e cria imensas dificuldades práticas à luta pelo socialismo.

Especialmente porque seguimos sofrendo as ondas de impacto da crise do socialismo. Fiquemos no anedótico, sem nomear os santos: as declarações e atitudes de muitos companheiros (no masculino) que estão à frente de importantes cargos federais demonstram como cresceu devastadoramente a influência ideológica do liberalismo; e as juras de amor pela "República", pelo "crescimento" e pelo "desenvolvimento" revelam como são limitadas as visões de alguns que, é bom dizer, estão do melhor lado do governo.

Inclua-se na crítica os que apresentam governos como o de Kirchner e de Chavez como "alternativas". Merecem todo o nosso apoio, por certo; e em vários aspectos estão à esquerda do governo que praticamos no Brasil. Mas não há que tomá-los como alternativa sistêmica. É preciso criá-la, e certamente sua criação passa pelo combate travado por governos, partidos e movimentos imperfeitos. Mas não podemos confundir os meios com os fins.

No pano de fundo das dificuldades vividas no atual momento histórico, estão as mudanças sofridas pelas classes trabalhadoras, seja por impacto da evolução "normal" do capitalismo, seja por impacto das políticas neoliberais, de anos de crise econômica e da redução de fatores coesionadores como o próprio socialismo.

O refluxo dos movimentos sociais é um dado objetivo, de cuja reversão depende grande parte do sucesso de uma estratégia alternativa. É bom que se diga que a reversão exige combinar medidas econômicas práticas --como reforma agrária e urbana, geração de empregos, aumento dos salários diretos, ampliação das políticas sociais-- com políticas culturais e de comunicação de massa, muito mais fáceis de realizar, agora que estamos no governo.

Evidente que não cobramos dos companheiros a ausência desta reflexão de conjunto, num texto que sabemos apenas preliminar. Mas, em nossa opinião, os documentos, as declarações e principalmente a prática dos principais dirigentes do chamado campo majoritário indicam que os companheiros pretendem dar conta destas carências, não formulando-as do ponto de vista de quem pretende construir uma sociedade socialista, mas sim do ponto de vista de quem pretende construir uma sociedade “republicana”, “democrática”, “civilizada”, “desenvolvida”... e capitalista.

Vejamos, por exemplo, o capítulo intitulado “Desafios”. Lá se diz, acertadamente, que “os próximos anos serão marcados por turbulências e incertezas ainda maiores que as de hoje”, existindo dois “movimentos principais” que “estimulam as “turbulências e incertezas”: as “ameaças à paz mundial, ao sistema de segurança coletiva e aos princípios do multilateralismo e do direito internacional, derivadas da nova configuração do poder mundial, com o domínio unipolar e sem contrapeso da potência hegemônica e o agravamento dos conflitos regionais, o conservadorismo da direita, a violência e o crime organizado em várias partes do mundo, a escalada das ações terroristas em nível mundial e as dificuldades de alternativas de esquerda; de outro, a ampliação e o aprofundamento do processo de financeirização da economia mundial, com a desregulamentação crescente dos processos e relações econômicas e a crise latente do dólar, a instabilidade dos mercados de petróleo, a elevação dos preços das commodities, a forte oscilação do dólar, do euro e das demais moedas (...) assim como a insegurança quando à duração do desempenho da economia mundial, por causa de todos os desequilíbrios financeiros existentes e pelas alterações profundas no comércio internacional”.

Noutras palavras, numa linguagem que talvez os companheiros não queiram mais usar, o imperialismo norte-americano e o grande capital financeiro internacional geral “turbulência” e “incertezas”. E...?

O texto dos companheiros não vai muito além desta constatação. Aponta a seguir a tendência da China se transformar “numa espécie de núcleo fabril mundial, conectando os produtores de commodities e o mercado consumidor norte-americano”, o que apontaria “para um rearranjo na economia mundial, com fortes conseqüências para o Brasil”.

Ademais, diz que “do ponto de vista do progresso humano, a ordem mundial enfrentará enorme impacto dos avanços da ciência e da tecnologia, que deverão alterar padrões de comércio, sociais, institucionais, culturais e de consumo, exigindo agilidade nas decisões dos países e das empresas que não quiserem ficar para trás”.

Convenhamos, atribuir à “ciência” e à “tecnologia” a alteração de padrões de comércio, sociais, institucionais, culturais e de consumo, é uma simplificação aparentada com aquela versão segundo a qual o desemprego é produzido pelo progresso tecnológico.

Mas o mais estranho é a afirmação segundo a qual quem não quiser “ficar para trás”, tem que ter “agilidade”.

Está implícito, nesta pequena frase, que não temos como objetivo derrotar a ordem mundial capitalista e colocar, no lugar, outra ordem mundial? Ou o que se quer dizer é que, na atual etapa histórica, o máximo que podemos fazer é “não ficar para trás”, embora continuemos trabalhando para, num futuro mais distante, derrotar o capitalismo?

Talvez contraditoriamente, no parágrafo seguinte os companheiros afirmam que o “pragmatismo permitirá que o país flutue nesses mares revoltos, mas, com certeza, não conseguirá apontar para o porto seguro que nosso povo merece”. Isto está ótimo, mas qual a natureza social deste “porto seguro” ao qual pretendemos nos dirigir: capitalista ou socialista?

Quem se dirigir ao final do texto dos companheiros, no item “O PT, o Brasil e a globalização” não encontrará raciocínios muito diferentes.

Lá se pode ler que “riscos e oportunidades são a marca registrada dos atuais processos de integração dos mercados e de redefinição das relações comerciais e institucionais entre os países no mundo global”. Fico imaginando como reagiria a esquerda socialista, nos anos 1930, frente a quem utilizasse este linguajar, adequado para palestras dadas em circuitos empresariais, para descrever a ascensão do nazismo e a escalada que levou a Segunda Guerra Mundial. “Riscos e oportunidades”...

O maior “risco” no mundo atual, segundo o texto dos companheiros, “é a abertura de um fosso crescente entre as sociedades avançadas, baseadas no domínio da tecnologia e do conhecimento, e a maioria de nações de renda média e renda baixa”.

Tirante a obsessão de reduzir a potência imperialista ao domínio tecnológico/conhecimento, o melhor seria apresentar o problema de outra forma, a saber: o “risco” para o mundo advém do agravamento da competição inter-capitalista, nos marcos de uma etapa em que o capitalismo se tornou muito mais destrutivo que antes, em todos os sentidos (inclusive ambiental).

Não é por outro motivo, aliás, que o texto defende “organizar o debate sobre as políticas de abertura aos investimentos diretos estrangeiros e às trocais globais de bens e serviços, no pressuposto de que os países mais avançados devem mudar substancialmente suas políticas protecionistas e subvencionistas”. O problema é de acirramento da competição inter-capitalista, não de “ampliação do fosso” entre nações pobres e ricas, fosse que na verdade é uma decorrência daquela competição.

Admitamos em tese que o “comércio internacional” possa “oferecer oportunidades para que essas distâncias econômicas e sociais entre os povos diminuam”. Seria, é claro, um “comércio” de outro tipo, mas em tese é possível. A questão que o texto não responde é: e se os países ricos não aceitarem firmar um “compromisso desse tipo”, o que fazer?

O texto não discute esse cenário, preferindo ater-se aos meandros da diplomacia comercial brasileira, com seguidas reafirmações da necessidade de uma grande capacitação técnica para defender nossos interesses nos fóruns internacionais. E se entusiasma tanto com a possibilidade de superar a assimetria internacional e garantir as bases de um “equilíbrio justo entre nações tão diferentes”, que chega a defender que “o Brasil também deve continuar a ser um protagonista ativo nas definições das condições para o estabelecimento da Alca e da área de livre comércio entre o Mercosul e a União Européia”.

Segundo o texto, “avanços importantes foram feitos nessas duas negociações”, em especial “nos entendimentos entre Mercosul e União Européia”. Resta saber quais. Afinal, o maior avanço no caso da Alca foi não termos avançado. E o maior avanço no caso da relação Mercosul/UE foi termos percebido que o imperialismo europeu é tão ou mais leonino que o norte-americano.

Nossa impressão é a de que, ao não organizar seu raciocínio e sua análise em torno do objetivo de derrotar a hegemonia imperialista em escala mundial, os companheiros tentam “dar nó em pingo dágua”, construindo um caminho de mão única, cujo pressuposto é que os “russos” (ou os americanos) estejam de acordo com o drible que pretendemos dar em campo.

A questão do socialismo

Os companheiros intitulam assim o capítulo I de seu texto: “O PT: um partido democrático de esquerda”. Para os que não lembram, “democratas de esquerda” é o nome assumido pela maioria do ex-Partido Comunista Italiano, depois desta maioria ter abjurado sua defesa de uma sociedade anticapitalista.

Neste capítulo I, é dito que “o principal compromisso do PT é democratizar a renda e a riqueza, o acesso à terra e o exercício do poder, o conhecimento, a informação e as oportunidades”; e que o Partido luta “por uma ampla reforma social e política, visando reduzir as desigualdades históricas que marcam a sociedade brasileira”.

A impressão que fica é que os companheiros abrem mão do objetivo de superar o capitalismo, aceitando como objetivo a melhoria constante das condições de vida dos trabalhadores e da maioria do povo, mas nos marcos do capitalismo.

Se for isto, esta opinião precisaria ser claramente afirmada, para que fique claro que o setor atualmente majoritário na direção nacional do PT aderiu aos princípios programáticos e estratégicos historicamente conhecidos como social-democratas. Mas ainda que seja isso, achamos que há variantes social-democratas mais avançados do que a de Blair e sua “governança”.

A rigor, a leitura do item número 4, página 7 do texto, praticamente esclarece a questão, num sentido a nosso ver negativo. Lá está dito que “o PT se declara herdeiro das melhores tradições do socialismo democrático. Reafirma suas resoluções históricas sobre o socialismo petista, entendido não como um ponto de chegada a uma sociedade determinada, mas como uma luta permanente por valores e pela construção de um novo tipo de relações sociais e econômicas, fundadas na solidariedade, na igualdade de oportunidades e na distribuição equitativa dos benefícios do progresso técnico”.

Na verdade, as resoluções históricas sobre o socialismo petista não dizem apenas ou exatamente isto.

Vejamos, por exemplo, o que está no item 5 da resolução denominada “O socialismo petista” (página 431 do livro Resoluções de Encontros e Congressos, 1979-1998, editada pela Fundação Perseu Abramo): “Semelhante convicção anticapitalista, fruto da amarga experiência social brasileira, nos fez também críticos das propostas social-democratas. As correntes social-democratas não apresentam, hoje, nenhuma perspectiva real de superação histórica do capitalismo. Elas já acreditaram, equivocadamente, que a partir dos governos e instituições do Estado, sobretudo o Parlamento, sem a mobilização das massas pela base, seria possível chegar ao socialismo. Confiaram na neutralidade da máquina do Estado e na compatibilidade da eficiência capitalista com uma transição tranqüila para outra lógica econômica e social. Com o tempo, deixaram de acreditar, inclusive, na possibilidade de uma transição parlamentar ao socialismo e abandonaram, não a via parlamentar, mas o próprio socialismo. O diálogo crítico com tais correntes de massa é, com certeza, útil à luta dos trabalhadores em escala mundial. Todavia o seu projeto ideológico não corresponde à convicção anticapitalista nem aos objetivos emancipatórios do PT”.

Nesta mesma linha, sentimos falta, nas definições dos companheiros, de uma defesa enfática do socialismo enquanto anticapitalismo. Ao invés disso, há uma ênfase no “processo”, nas “reformas”, deixando a impressão que os companheiros abandonaram a defesa do socialismo, por isso entendida uma sociedade diferente e superior ao capitalismo.

No lugar desta defesa enfática que reclamamos, há uma espécie de deslizamento teórico, que os conduz a colocar, no lugar do socialismo, a “república” e o “desenvolvimento”. Nas palavras do texto: “ao sustentar os princípios da liberdade e da democracia como fins da sociedade, o PT se declara herdeiro também das melhores tradições do republicanismo”.

Quem conhece os clássicos sobre o assunto, sabe que a defesa da “liberdade” serve, muitas vezes, para defender a liberdade dos proprietários explorarem seus respectivos trabalhadores. Não deixa de assustar, também, a referência mais do que clássica, romana, segundo a qual “a corrupção é o principal mal das Repúblicas e se opõe ao ideal da vida cívica virtuosa”.

É claro que há, no texto dos companheiros, passagens mais animadoras, como a que defende a eliminação da “exploração, dominação, opressão, desigualdade, injustiça e miséria, visando construir uma sociedade mais justa, livre e igualitária”. Mas estas passagens, como veremos ao analisar o que o texto fala sobre o Estado, a globalização e o governo Lula, não organizam o pensamento, a interpretação e as propostas do conjunto do texto.

A discussão sobre o Estado

O capítulo V do texto dos companheiros é dedicado a discutir “O papel do Estado no desenvolvimento”. Segundo o que está escrito ali, “a questão de fundo que o Brasil e o PT estão chamados a resolver reside na percepção de uma realidade que deixou para trás falsas expectativas sobre a atuação do Estado. Este não pode mais ser visto como redentor, nem como o vilão que deve ser afastado de qualquer atividade relevante na economia.”

A seguir, o texto fala que “as mudanças estruturais do país e do mundo não nos permitem mais acreditar que as imensas e abundantes falhas do mercado só podem ser sanadas por meio de um retorno às práticas excessivamente intervencionistas que marcaram a atuação do Estado nos anos 50, 60 e 70”.

Convenhamos: quem “acreditava” que cabia ao Estado “sanar” as “falhas do mercado” eram correntes de corte keynesiano, cepalino, nacional-desenvolvimentistas. E quem falava e fala de “práticas excessivamente intervencionistas” do Estado são os teóricos identificados com o monetarismo, o neoliberalismo.

Não podemos abordar a questão utilizando o ponto de vista que diferentes correntes burguesas adotaram sobre o tema. Por óbvio, se fizermos isso, nossa opinião sobre o Estado passa a ter uma cláusula pétrea e implícita: não prejudicar os interesses do Capital.

O mais grave é que o texto, embora critique as duas posições já citadas, evolui para uma síntese favorável a uma delas: a monetarista.

Vejamos o que é dito: “a recusa dos modelos de interpretação e de atuação que fundamentam estas duas realidades permite-nos reconhecer que, após décadas com uma economia relativamente fechada, o Brasil precisa incentivar e valorizar o investimento privado, facilitar e regular o funcionamento dos mercados, apoiar e promover a presença de empresas e produtos brasileiros nos mercados externos e buscar a garantia de oportunidade para todos”.

Quer dizer, então, que por décadas fomos uma “economia relativamente fechada”? E que agora precisamos “incentivar e valorizar o investimento privado”? É impossível não reconhecer, nessas frases mal postas, a sombra do pensamento monetarista, neoliberal, gustavo-franquiano, cujo espectro frequenta as reuniões do Copom em nosso governo.

Para este pensamento, sempre usando as palavras do texto dos companheiros, o papel estratégico do Estado é “preparar o terreno” para que os “agentes privados” trabalhem nos “marcos dados pelos valores e aspirações da própria sociedade”. Ou seja, mais ou menos o que a Rainha Vitória fez pelo capitalismo britânico: “preparar o terreno” para os agentes privados atuarem...

E o que seria isto, exatamente? Segundo o texto dos companheiros, seria “a democratização e defesa dos direitos de propriedade”, “as reformas microeconômicas para melhorar a capacidade produtiva”, “o combate à violência e ao crime organizado”, “a geração de empregos”, a “melhoria do ambiente de negócios”, a “ampliação e o fortalecimento de um sistema de proteção ao trabalho e estabilidade macroeconômica”.

Tirante a geração de empregos e a proteção ao trabalho, o restante é a pauta de reivindicações do grande empresariado brasileiro. A esta pauta, os companheiros agregam o seguinte: “é fundamental que o Estado assuma também as tarefas de implementar atividades, políticas e programas estratégicos do ponto de vista do desenvolvimento econômico e tecnológico a longo prazo, alavancar os investimentos em infra-estrutura e logística e proteger setores vitais para a soberania nacional e preservação dos recursos estratégicos do país”.

Novamente, tarefas que fazem do Estado um suporte para a acumulação capitalista. E conclusões que não correspondem, em nada, a pretensão –-manifesta no texto-- de superar “modelos de interpretação [sobre o papel do Estado] questionados exatamente por sua rigidez analítica”.

Na verdade, a discussão sobre o papel do Estado na economia precisa levar em consideração a natureza histórica e social desse Estado. Não fazê-lo é que resulta numa “rigidez analítica” fatal para um partido socialista.

Hoje, em que levamos mais de 20 anos de experiência institucional, o PT pode afirmar com muito mais segurança que o Estado foi construído para atender aos interesses e as necessidades das classes dominantes brasileiras. E, por isto, não surpreende que nem o nacional-desenvolvimentismo, nem o neoliberalismo, tenham conseguido “dar solução aos problemas estruturais e sociais do país”, pois tais problemas derivam de uma ordem social que o Estado nunca se propôs a enfrentar.

Com este Estado, não conseguiremos avançar, ao menos não no sentido de transformações profundas. E, por isso mesmo, as “reformas” que nele precisamos fazer são muito mais profundas do que uma reforma política. Não se trata apenas de um “aperfeiçoamento”, nem de construir “uma nova e virtuosa sinergia entre Estado e sociedade na construção de um projeto de desenvolvimento”. Trata-se de construir outro Estado e outra sociedade.

Neste sentido, a proposta que os companheiros fazem sobre as “agências reguladoras” é, no mínimo, brutalmente ingênua. Dizer que elas são “entes públicos”, destinadas a fazer os “agentes econômicos a se comportarem do modo mais eficiente possível”, é esquecer que a eficiência capitalista é contraditória com o interesse social.

E defender a autonomia das agências, achando que isto favorece o “objetivo maior de garantir o bom funcionamento da infra-estrutura de bens e serviços”, numa perspectiva de “longo prazo do Estado”, em que as agências reguladoras autônomas serviriam para “resistir a pressões de curto prazo”, serve a quem? Aos trabalhadores, que estamos fazendo “pressões no curto prazo”, ou as classes dominantes, que fazem “pressões” de longo prazo, favorecidas que são pela inércia de funcionamento do sistema?

E dizer que a “experiência internacional” (qual???) sugeriu a “conveniência de dotar de autonomia um corpo de dirigentes”, um “corpo de especialistas voltado para perseguir (...) objetivos públicos e zelar pelo cumprimento de contratos”, serve exatamente para dar “estabilidade” para regras econômicas que históricamente tem desfavorecido os trabalhadores.

Em resumo, a visão que os companheiros têm do papel do Estado é globalmente incorreta e, pior, muito influenciada pela visão neoliberal. Influência que aparece, também, na discussão sobre “O Brasil, o desenvolvimento tecnológico e a sociedade de conhecimento”.

Confusões e platitudes acacianas

A educação é mais ou menos como a democracia: virou um chavão, que cada setor político usa a seu modo. O texto dos companheiros embarca nessa onda, dizendo que “o conhecimento, as novas tecnologias e a inovação produtiva constituem o principal fator de produção de riqueza, renda e prosperidade das sociedades contemporâneas”.

Esse conceito de “fator de produção”, como sabem os do ramo, é muito utilizado para ocultar o papel do trabalho (e da exploração do trabalho) no processo capitalista de produção. Como resultado deste pequeno embuste teórico, uma enorme quantidade de técnicos e acadêmicos muito bem capacitados não entendem porque são vítimas do emprego e do subemprego.

O mais curioso é que o texto dos companheiros mistura, numa só frase, como um só “fator de produção”, “o conhecimento, as novas tecnologias e a inovação produtiva”; e atribuem a este fator a produção de “riqueza, renda e prosperidade”, sem chamar a atenção para que, numa sociedade capitalista, não há distribuição igualitária dos ganhos da produtividade, dos avanços do conhecimento, da prosperidade potencialmente realizável graças ao desenvolvimento.

Em seguida, o texto passa a falar da “política industrial, tecnológica e de comércio exterior” (PITCE), da “lei de inovação” e da “reforma da educação”, apresentadas como “três vértices estratégicos do novo modelo de desenvolvimento que está sendo implementado pelo governo petista”.

Vejam: assentar um novo “modelo de desenvolvimento” em três vértices que não incluem a questão da estrutura de propriedade, é aceitar a matriz fundamental do modelo atual.

Isso fica claro na seqüência do texto, quando deste “novo modelo” salta-se para algo mais trivial: a importância da PITCE para “qualificar ainda mais nossa capacidade produtiva, diferenciar nossas exportações e ampliar a malha de países para os quais exportamos”. Ou seja, do “novo modelo” salta-se para o comezinho esforço exportador, onde a PITCE representaria não a velha política industrial, mas sim uma “política contemporânea, orientada para uma colaboração estratégica entre o setor privado e o Estado, na busca de oportunidades que levem a superar obstáculos ao desenvolvimento da produção”. Não se pode negar que, neste ponto, as coisas estão ditas como elas são: colaboração estratégica entre o setor privado e o Estado.

Mais adiante se esclarece que “o forte desta política” reside na “ênfase nos processos de inovação”, que buscam “expandir a capacitação tecnológica das empresas, de modo a favorecer a consolidação de uma nova cultura, mais adequada a um novo empresariado”.

E antes que alguém se choque com a linguagem tão explícita, o texto afirma que “para sustentar um ciclo longo de crescimento, será preciso que a inovação se espalhe por todo o sistema produtivo, ajudando a empurrar a estrutura salarial para cima”.

Neste pequeno parágrafo esconde-se o segredo de um raciocínio que faz passar por interesse dos trabalhadores, o que na verdade serve ao interesse do empresariado. Explicamos: ninguém é contra aumentar a capacidade produtiva do parque empresarial instalado no Brasil. A questão é: qual a relação que existe entre este aumento na capacidade produtiva e a ampliação da igualdade social no país?

A resposta está em nossa própria história. A transição que o país fez, de agrário-exportador para potência industrial, não reduziu a desigualdade social. Ao contrário, aumentou-a. Achar que este fenômeno não se repetirá, graças aos aumentos que provoca na “estrutura salarial”, é não refletir sobre a experiência das metalúrgicas do ABC, nos anos 1970. Ali, a estrutura salarial foi puxada para cima. Mas isso não alterou a situação social no conjunto do país.

Portanto, se queremos desenvolver outra estrutura social, o Estado tem que fazer muito mais do que “espalhar a inovação por todo o sistema produtivo”. Se o Estado não impulsionar medidas de natureza não-capitalista –-como, por exemplo, fortíssimos investimentos na elevação das condições de vida do povo brasileiro-- toda e qualquer medida de “inovação” contribuirá tão somente para a dinâmica capitalista realmente existente, para o “modelo” atualmente existente.

Acredito que os companheiros sabem disto. Talvez por isto mesmo, digam que “o Brasil só abrirá efetivamente os caminhos para o ingresso pleno na sociedade de conhecimento se, junto com a política industrial, tecnológica e de inovação, for capaz de processar uma revolução na educação”.

Vamos deixar para lá o termo “sociedade de conhecimento”, mais uma destas mistificações que a máquina acadêmico-midiática inventa para evitar chamar as coisas por seu nome. Vamos ao centro do problema: é uma ilusão pequeno-burguesa achar que garantindo acesso à educação, estaremos resolvendo os nossos problemas de fundo.

O capitalismo brasileiro não é um sistema meritocrático, em que o acesso igualitário à educação garantirá “oportunidades iguais” para todos. Ou resolvemos o problema de fundo, que é a extrema concentração da propriedade dos meios de produção, ou a revolução educacional gerará uma legião de trabalhadores desempregados e frustrados, por não terem como aplicar seus conhecimentos de forma socialmente produtiva.

Nesse contexto, a centralidade para a defesa da educação serve para dissimular os problemas de fundo. Afinal, ninguém de esquerda é contra ampliar os gastos com educação, fazer reformas curriculares e garantir a universalidade e qualidade do sistema. Agora, não vamos exagerar nas platitudes: dizer que “os currículos de nossas escolas precisam ser repensados e concentrados nas disciplinas-guia do século XXI: as matemáticas, ciências, português, inglês e história” é, falando sinceramente, não dizer coisa nenhuma. Isso para não falar do esquecimento da filosofia, que no mínimo é útil na redação de documentos.

O papel das políticas sociais

Reconhecemos que o texto dos companheiros aponta o combate à desigualdade social como um dos “eixos constitutivos” do processo que levará o Brasil rumo ao “desenvolvimento sustentado”.

Reconhecemos, também, que os companheiros reafirmam a necessidade de ampliar os investimentos sociais, rejeitando a fórmula neoliberal dos “gastos sociais” e as políticas meramente assistenciais.

Mas achamos que os companheiros se equivocam, quando tentam equacionar o binômio crescimento/desigualdade. Tentaremos mostrar o porquê.

Segundo vosso texto, “a maior dificuldade no combate à pobreza e à fome tem sido o baixo crescimento da economia nos últimos 25 anos (...) O problema de fundo é que a enorme desigualdade provoca um grande impacto sobre o crescimento econômico, reduzindo sua eficácia como instrumento de diminuição da pobreza”.

Ou seja: para os companheiros, a desigualdade reduz a eficácia do crescimento como instrumento de diminuição da pobreza. Talvez fosse mais adequado dizer isso de outra maneira, simplesmente assumindo que o crescimento capitalista brasileiro gera desigualdade (relativa) e a ausência de crescimento gera ainda mais desigualdade (absoluta).

Nessa “hipótese”, o crescimento não é instrumento de diminuição da pobreza. Ele pode gerar, como subproduto, uma redução da desigualdade absoluta. Mas gera, ao mesmo tempo, uma ampliação da desigualdade relativa.


Por isso é que não basta retomar o crescimento. Se não forem alteradas as bases do modelo, o crescimento sempre gerará alguma modalidade de desigualdade.

Neste ponto, o documento dos companheiros aponta, corretamente, que “a questão da desigualdade situa-se no centro de toda reflexão sobre desenvolvimento, uma vez que esta tem se mostrado resistente tanto às políticas sociais quanto ao crescimento da economia”.

Isto é verdade, pelas razões já indicadas: a estrutura social é tão radicalmente desigual, com uma concentração tão grande da propriedade nas mãos de um setor tão pequeno da população, que não há política social nem crescimento que alterem isto.

O grave é que os companheiros deduzem daquela “constatação” a propositura de aperfeiçoar e ampliar as políticas sociais. Nada contra isso, exceto se for pelo caminho da focalização. Mas isso não é suficiente. Ou se tomam medidas que democratizem a propriedade dos meios de produção, ou continuaremos patinando.

Nesse particular, a reforma urbana e a reforma agrária são duas grandes “políticas sociais”, no sentido forte da palavra. As medidas anti-monopolistas (especialmente na área de serviços públicos) e o combate à ditadura do capital financeiro, também são grandes “políticas sociais”.

Apresentar, no lugar disso, o binômio “oportunidades-esforço” como “via de saída da pobreza” é uma solução pobre e desigual.

Poucas lições, poucas perspectivas

Um terço do texto dos companheiros é dedicada a discutir “O PT no governo federal: lições e perspectivas” e “O PT e a economia”.

Grande parte do capítulo III é laudatória. Por exemplo: “ a vitória de Lula em 2002 representou uma inflexão histórica no Brasil e no PT”; “o PT passou a ser o principal partido da coalização que governa hoje o país”; “ o governo brasileiro passou a servir de fonte de inspiração para governos, partidos e movimentos simpatizantes em todo o mundo”.

Tudo isto é verdade, mas tudo isso pode se transformar no seu contrário, se formos derrotados. Portanto, seria conveniente deixar aos outros o elogio e concentrar-mo-nos na crítica e na auto-crítica.

Outra parte é dedicada a evolução que o Partido experimentou, desde o início até a condição de “principal partido” da coalizão governista. A tese central é que o PT, “à frente do governo federal, ampliou a sua compreensão dos limites, necessidades e desafios do desenvolvimento nacional”, que soube “mudar, sem mudar de lado”.

Gostaríamos, sinceramente, que isso fosse verdade. Mas o texto dos companheiros revela que se trata de uma verdade, quando muito, parcial.

Por exemplo, vejamos aquilo que o Partido teria “aprendido”, segundo os companheiros: “o Partido soube aprender que o descontrole da economia e das finanças públicas é sempre mais cruel com os pobres”. Mas o que quer dizer “descontrole”? Será o que fez o governo Vargas, mandando queimar o café sobrante (anos 30) e aumentando o valor do salário mínimo (anos 50)? Será o que fez o governo JK, investindo na construção de Brasília? Será o que fez o governo Geisel, endividando-se para concluir o ciclo de industrialização? Será o que fez o governo Sarney, decretando a moratória parcial da dívida? Ou será o que fez o governo FHC, mantendo o real estável e multiplicando por 10 a dívida pública?
Será que descontrole é o que José Serra acusa a nossa companheira Marta Suplicy de ter feito, gastando mais no social do que seria fiscalmente recomendável?

Como se vê, seria necessário definir melhor o que se quer dizer com “descontrole” da economia e das finanças públicas. Do mesmo jeito, é difícil aceitar sem maiores explicações a seguinte afirmação: “Uma das principais lições tiradas de nossas experiências à frente do setor público refere-se à compreensão de que uma economia estável, sólida e dinâmica é condição essencial para que o Brasil invista fortemente na qualificação e capacitação de seu povo, na ampliação de seus direitos e universalização de políticas sociais, como forma de combater a pobreza e as desigualdades”.

O primeiro pulo do gato deste raciocínio é a falta de reflexão sobre o setor privado. Como já dissemos, temos que escolher se vamos utilizar nossa presença no Estado para ajudar no redesenho da estrutura social; ou se vamos atuar para gerir de maneira mais ou menos “social” a atual estrutura.

Lendo o texto dos companheiros, encontram-se várias propostas de aperfeiçoamento na gestão do Estado, mas não recebem destaque as poucas propostas de utilizar o Estado para redesenhar a estrutura social.
Intitular-se “partido semeador do diálogo à frente do setor público”, defender a “alternância no poder” e a “elevação do “padrão republicano de nosso Estado” não servirão de nada, se não percebermos que o grande “déficit institucional” que existe no Brasil é a diferença entre o número de títulos eleitorais e o número de carteiras profissionais, a diferença entre o número de trabalhadores e o número de empresários representados no parlamento.

O segundo pulo do gato é a adoção de uma terminologia “físico-química”, para falar da economia: “estável”, “sólida” e “dinâmica”, para quem, cara-pálida? Dependendo para quem, pode-se ou não gerar igualdade social.


A ditadura dos bancos

Quando se lê o capítulo IV, “O PT e a economia”, ficam claros os efeitos negativos deste linguajar asséptico. Por exemplo, “falar em solidez econômica significa orientar, sem falsas oposições, nossa produção para a exportação e para o mercado interno, integrar e desenvolver nossa base produtiva e nossa capacidade tecnológica, superar os gargalos e vulnerabilidades estruturais da economia, ampliar e qualificar o mercado de trabalho e estabelecer um novo padrão de inclusão econômica e social”.

Curiosamente, a atitude do campo majoritário à frente do Ministério da Fazenda não é tão generosa quanto neste texto. Na gestão da Fazenda, fica bem clara a existência de hierarquias, escassez de recursos e prioridades. Portanto, quando a teoria desce ao chão da prática, fica claro que “este conceito de solidez econômica”, ao contrário do que dizem os companheiros, não “supera os limites que aprisionaram o Brasil sob o governo anterior”.

E não supera, porque (como vemos neste documento) o chamado campo majoritário não indica a necessidade de quebrar a hegemonia do capital financeiro sobre a economia nacional.

O “roteiro” do campo majoritário cita, acertadamente, que “a capacidade dos agentes financeiros de desestabilizar a economia pende permanentemente como uma espada de Dâmocles, sobre o país, condicionando as decisões de política econômica em suas diversas esferas”.

Esta é uma das heranças que o governo Lula recebeu do governo FHC. Sem quebrar a hegemonia do capital financeiro sobre a economia nacional, será impossível retomar o crescimento econômico e implantar um desenvolvimento de novo tipo. Mas isto não é destacado pelo “roteiro” do campo majoritário.

Pelo contrário, o texto elogia o “sentido geral das decisões tomadas” e compra a cantilena anti-imposto inflacionário e anti-“renegociações traumáticas dos contratos de dívidas”. Ou seja, compra a pauta do sistema financeiro, que tem horror de inflação (não porque corrói o poder de compra, mas porque corrói o valor de seus ativos financeiros) e mais horror ainda de qualquer tipo de renegociação de dívidas (exceto as que o grande capital mantém com a Viúva).

É verdade que o texto faz uma crítica dura, nos itens 22 e 23, a herança recebida do governo FHC. Mesmo apontando como grande “conclusão” a de que “o modelo de estabilização adotado nesses anos varreu para debaixo do tapete o pó inflacionário”, o texto descreve corretamente a situação de “crise estrutural, de ameaça de desagregação da economia e de enormes restrições externas e financeiras” em que Lula tomou posse. Faltou dizer, por óbvio, da enorme crise social, mas este lapso deve ser debitado na conta da infiltração que o petismo está sofrendo por parte do discurso tecnocrático.

Mas ao descrever os supostos ou reais êxitos do governo Lula, o documento exagera nos elogios e é avaro nas autocríticas. Isto fica muito evidente no item que descreve os resultados da política econômica.
Por exemplo: ao comemorar a redução na relação dívida/PIB, a queda na inflação ou a retomada do crescimento, o “roteiro” do campo majoritário não esclarece que os resultados da política econômica não significaram uma alteração qualitativa em relação à situação que vivíamos no governo FHC.

Noutras palavras: continuamos operando nos patamares recebidos do governo anterior. Isso não quer dizer que o governo Lula seja neoliberal. Mas quer dizer que ele atua em marcos estruturais hegemonizados pelo capital financeiro. E, pior, adota medidas que, em alguns aspectos importantes, reforçam ao invés de enfraquecer, esta hegemonia. É o caso da política de juros e do superávit primário.

Certamente os companheiros têm consciência dessa realidade e dessa contradição. Por isso mesmo, vosso texto está cheio daqueles raciocínios meio socráticos, que vão dizendo e desdizendo as coisas.

Por exemplo: “o controle da crise cambial e financeira gerada em 2002” é apresentado como um “primeiro e necessário passo para preservar a estabilidade”, ao mesmo tempo em que abriam, “em diversas outras esferas, vias de acesso para a abordagem das fragilidades estruturais herdadas das administrações passadas”.
Mas no parágrafo seguinte, pode-se ler que “o crescimento econômico e a busca gradual do equilíbrio fiscal são peças estratégicas” para arrumar uma economia altamente endividada como a brasileira. Donde se deduz que, para pagar a dívida, não apenas para controlar a crise gerada em 2002, é preciso crescer e conter gastos.

Na frase seguinte, por sua vez, pode-se ler que “para o PT, a busca do equilíbrio fiscal e de um crescimento sustentado, com recuperação do emprego e distribuição de renda, objetivos centrais do Partido, não são incompatíveis e constituem um processo interdependente”.

Certamente, trata-se de um processo interdependente, inclusive quando o equilíbrio fiscal é perseguido através de uma política de juros altos, que estrangula o crescimento, gerando desemprego e concentração de renda.

O importante, para o texto, é que o “crescimento econômico pode e deve otimizar o equilíbrio fiscal”, sendo que a “gestão do equilíbrio fiscal e a execução orçamentária devem ser criativos e competentes para viabilizar as prioridades de governo”.

Talvez onde a criatividade seja mais necessária, é na formulação de explicações e justificativas para uma política monetária ortodoxa, que gera a alegria dos banqueiros e a irritação do empresariado industrial e da maioria do povo.

Na verdade, a “política eficaz de controle da inflação” adotada por nosso governo está baseada na pouquíssimo criativa prática de elevar os juros às alturas. Prática que não consegue ser compensada, estruturalmente falando, pelo que o texto chama de “ajuste econômico inclusivo” e que na verdade foram mecanismos mais ou menos focalizados de estímulo ao crédito e ao consumo.

Por isto mesmo, ainda que não reconheça, o texto faz questão de dizer que “o Partido deve dialogar com o conjunto do nosso governo e com a sociedade no sentido de realçar a visão de que o desenvolvimento e o bem-estar social implicam mais do que apenas crescimento econômico”. Ora, se isto estivesse claro, porque seria necessário “dialogar” a respeito?

Noutra passagem, o texto chega a dizer que o crescimento atual não é produto nem da “generosidade da mão invisível do mercado”, nem da “mera continuidade da política econômica do governo anterior”. Depois de Palloci, em Comandatuba, ter reconhecido que “é a mesma política”, foi a vez de um ato falho do texto chegar ao mesmo ponto.

Talvez por isso, o texto afirma que “deve-se buscar o caminho progressivo do alívio da política monetária, ampliando todos os espaços possíveis ao impulso da economia”, estando claro “que cabe ao governo recuperar progressivamente a capacidade de investimento público”.

O problema é que tudo isso deve ser “um processo a ser pacientemente construído”, “de modo que o investimento privado se intensifique, acelerando a expansão da economia”. Ou seja, reforçando o que dissemos anteriormente, o chamado campo majoritário comprou a tese liberal de que cabe ao setor privado, e não ao Estado, ser a locomotiva do desenvolvimento nacional. E abandonou a idéia, presente no XII Encontro Nacional do Partido, que afirmou com toda nitidez que para superar o modelo neoliberal, seria necessário realizar uma ruptura com seus pressupostos.

As alianças

Para encerrar nossas observações preliminares sobre o texto “Bases de um projeto para o Brasil”, vamos ao ponto II: “o PT, as reformas democráticas e a política de alianças”.

Este capítulo defende, “antes de tudo”, que o partido fortaleça sua “unidade interna, evitando disputas e cizânias, como puderam ver nos recentes episódios da eleição da Presidência da Câmara dos Deputados”. Depois, passa a defender um “compromisso explícito”, a ser negociado com as demais forças políticas, de “fortalecimento dos partidos e da representação parlamentar”. Em seguida, fala da reforma política, mas –-salvo engano—sem incluir nela o financiamento público das campanhas eleitorais.

Depois, discute a questão das alianças políticas num âmbito de total generalidade, concluindo que o partido “deve levar em conta critérios para formalizar alianças, considerando o compromisso democrático e a conduta ética dos atores envolvidos”. O que, se for para ser levado a sério, não permitiria muitas alianças. Aliás, é notável que este capítulo não cite nominalmente nenhum partido, exceto o PT.

Encerra-se o capítulo reconhecendo-se que “no atual governo, consumiu-se boa parte do esforço político para construir uma maioria governista, já que o PT e seus aliados eleitorais venceram as eleições sem maioria parlamentar”. Não se faz nenhuma reflexão, aqui, sobre a necessidade de construir uma governabilidade que não seja dependente da maioria parlamentar de direita que controla o Congresso.

Precisamos de um novo 5º encontro

Em 1987, o Partido produziu uma síntese política que nos acompanhou por muito tempo: a defesa de um programa de reformas estruturais, democráticas e populares, articuladas com o socialismo; a constituição de um novo bloco histórico, hegemonizado pelos trabalhadores; uma estratégia de acúmulo de forças, combinando luta social, luta institucional, construção do Partido e de um movimento socialista de massas; e um caminho para o poder que passava pela disputa e pelo exercício do governo federal.

A síntese política aprovada pelo 5º Encontro foi muito afetada pelas mudanças ocorridas no mundo e no Brasil, de 1987 até 2002, bem como pelas reações das diferentes maiorias que dirigiram o Partido nesse período. Entretanto, parte importante foi mantida e integra as razões que nos levaram a vencer as eleições presidenciais.

Mas agora, acabou. Chegamos lá, mas sem combustível teórico, programático e estratégico para prosseguir viagem. Precisamos urgentemente elaborar uma nova síntese política, que consiga nos orientar num mundo bastante diferente (e sob muitos aspectos pior) daquele de 1987.

Esta necessidade só não é percebida por três setores: pelos que estão satisfeitíssimos com os rumos atuais do partido e do governo; por aqueles que consideram o PT como um trampolim para suas "carreiras políticas"; e por aqueles que reputam nossos descaminhos à "traição".

Diante de quadro tão complexo, é natural que haja quem considere possíveis apenas duas alternativas: a otimista e a pessimista. Na alternativa otimista, o PT se mantém no governo, mas enquanto administrador do status quo. Na alternativa pessimista, os beneficiários do status quo afastam o PT do governo, pondo fim ao que seria apenas mais um hiato bizarro de nossa história republicana.

Não devemos subestimar estas possibilidades. Elas seriam versões tupiniquins de experiências vividas pela social-democracia em outros países; e constituiriam uma versão terceiro-milênio da tradição continuísta da sociedade brasileira.

Entretanto, outras alternativas são possíveis, entre elas a de que o PT produza as energias sociais, políticas e intelectuais necessárias para enfrentar os desafios do atual período histórico.

Isso só acontecerá, por óbvio, se compreendermos que a "estratégia" atualmente hegemônica no Partido é, na melhor das hipóteses, incompleta; ou, na pior das hipóteses, contrária aos nossos objetivos.

Vale esclarecer que coexistem, no Partido e mesmo no governo, duas estratégias. Uma delas é majoritária; a outra é hegemônica.

A estratégia majoritária corresponde à vontade, tanto das bases quando de grande parte dos quadros, de que nossa atuação partidária e nossa ação de governo sejam coerentes com os objetivos nacionais, democráticos, populares e socialistas. Mas esta estratégia não consegue se traduzir, na maior parte das vezes, em ações práticas. Ou quando o faz, é de forma imperfeita, parcial, porque está manietada pela estratégia hegemônica.

Já a estratégia hegemônica é aquela implementada, principalmente, por aqueles que um crítico radicalmente irônico denominou de "ministros burgueses": Meireles, Rodrigues, Furlan e... Palocci. Estratégia que conta, é bom dizer, com o apoio do Ministro Dirceu, embora este --como é da sua tradição- aparente sempre estar alguns graus à esquerda da sua posição real.

A estratégia hegemônica não é neoliberal, embora faça grandes concessões à doutrina neoliberal e aos interesses da especulação financeira. É mais adequado denominá-la de "desenvolvimentismo conservador": quer a retomada do crescimento, almeja desenvolver o país, pretende ocupar um lugar destacado no desacerto das Nações, mas quer fazer tudo isso sem rupturas, nos marcos do modelo herdado (para alguns, nos marcos do modelo herdado de FHC, ou seja, de hegemonia do capital financeiro; para outros, nos marcos do modelo nacional-desenvolvimentista herdado da ditadura militar, ou seja, de hegemonia do grande capital monopolista, do latifúndio e do imperialismo). Há até quem, como o Ministro Dirceu, queira superar tais modelos, mas através da "competição pacífica" com eles. Ruptura, nem pensar!

Nos dois primeiros anos de governo, essa estratégia mostrou do que é capaz: numa conjuntura internacional favorável, segurou o crescimento nacional em índices inferiores ao que seria possível e necessário; através do superávit primário e da taxa de juros (campeã do mundo), ampliou a transferência de recursos públicos e privados em direção ao capital financeiro; estimulou a dependência do país frente a superávits comerciais baseados principalmente no agro-negócio, ou seja, num mercado insuficiente, fortemente instável e socialmente regressivo; não distribuiu riqueza, porque não comporta reformas estruturais; suportou, com muito má vontade, uma distribuição marginal de renda e um certo crescimento nos empregos, ambos insuficientes para repor aquilo que foi perdido nos últimos anos; motivos pelos quais não conseguiu reverter a brutal crise social em que estamos metidos já há muito tempo.

Prefiro não falar do que essa estratégia será capaz, num cenário (cada vez mais provável) internacional adverso, que evidenciará ademais o quanto nossa dependência externa continua alta e perigosa .

Por tudo isso e por corroer nossa base social e política, o "desenvolvimentismo conservador" é uma estratégia venenosa. Pode nos matar no curto prazo, através de uma derrota eleitoral em 2006. Como pode produzir uma derrota política, em que vencemos as próximas eleições presidenciais, mas sem condições de levar adiante as transformações almejadas pelo PT, nos últimos 25 anos. Num e noutro caso, trata-se de uma estratégia incapaz de enfrentar os desafios do atual período histórico.

Frente a hegemonia do "desenvolvimentismo conservador", há diferentes reações na esquerda socialista brasileira: muitos caem no desencanto e acusam o governo de ser "neoliberal"; parte se agarra à ilusão de que a alternativa estratégica estaria nos "movimentos sociais"; outros tentam construir uma alternativa eleitoral, repetindo nossos erros, sem possuir nossas virtudes; diversos investem na construção de "partidos revolucionários", a espera do grande momento que enxergam em cada esquina perigosa da história; vários permanecem no PT, mas ressuscitando a tese de que ele seria um "partido tático" (leia-se: uma legenda eleitoral, posição muito forte também em alguns moderados de nosso partido).

A ampla maioria do PT não reagiu desta maneira, tampouco defende acriticamente o governo. A maioria de nosso Partido --que, felizmente, é bem melhor do que a maioria de nossa direção-- percebe os riscos que corremos, combate as críticas esquerdistas, tem consciência dos movimentos ameaçadores que estão sendo feitos pela direita tucano-pefelista, quer que nosso governo dê certo e espera por mudanças.

Mas esta maioria ainda não foi capaz de criar uma síntese política correspondente à sua vontade. Só o conseguirá, se estiver disposta a derrotar a estratégia que hoje é hegemônica no Partido e no governo.

Aquela síntese (ou nova estratégia) tem que partir do diagnóstico do período histórico, a que nos referimos anteriormente. Deve recuperar o socialismo como objetivo real (e não retórico ou ritual) do Partido. Deve reafirmar o PT como instrumento de disputa de hegemonia e luta pelo poder, algo que inclui, mas não se reduz a disputar eleições e gerenciar mandatos executivos e parlamentares. Deve preservar a autonomia do Partido frente ao governo, até porque num governo de centro-esquerda, alguém tem que ser de esquerda, e este alguém é o Partido, não um determinado ministro. Deve ressuscitar a noção de que somos um governo de mudanças, não arautos do ajuste fiscal e do equilíbrio monetário. Deve apontar os caminhos para a constituição de outro tipo de governabilidade, estruturada pela aliança entre nossa força institucional, os partidos de esquerda e os movimentos sociais; e não uma governabilidade de tipo parlamentarista, refém da maioria conservadora do Congresso Nacional. E deve, principalmente, retomar e atualizar o programa democrático e popular.

Visando o pós-neoliberalismo, isso significa atualizar e precisar as famosas medidas antilatifundiárias, anticapitalistas e antimonopolistas. Trata-se de enfatizar, por exemplo, a defesa do espaço econômico nacional; a ampliação do investimento estatal; o estímulo às pequenas e médias propriedades; a universalização das políticas sociais. Sobre isto, trata-se de perceber que a criação de uma área pública não dominada pelos interesses capitalistas, é uma das materializações concretas do programa socialista, no período histórico em que estamos vivendo. Além de possuir um potencial insubstituível, tanto para estimular o crescimento, quanto para viabilizar o tipo de desenvolvimento que pretendemos.

Evidentemente, nada disto será possível sem quebrar a hegemonia do capital financeiro; e sem quebrar a crença, correlata, de que o país conseguirá crescer e se desenvolver, distribuindo renda, riqueza e poder, graças aos investimentos privados. Sem investimento público e estatal, não haverá crescimento e desenvolvimento de nenhum tipo, muito menos aquele voltado às maiorias.

O Partido fará este debate? Mudará de direção? Mudará a direção? Não temos como saber. Mas nós faremos a nossa parte. A julgar pelo texto que serviu como base para seu debate em 9 e 10 de abril, o atual “campo majoritário” não dá conta dos desafios postos para o Partido e para o governo Lula, no próximo período. Por isso, esperamos que a maioria dos filiados constitua outra maioria dirigente no Partido.



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