quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Um estranho diálogo

O texto abaixo --contendo uma polêmica com as posições da então tendência petista Força Socialista, hoje uma das correntes integrantes do PSOL-- foi divulgado no dia 8 de setembro de 1999. Recomenda-se a leitura do trecho destacado em azul.


Trinta e nove textos foram publicados no 4º caderno de debates do II Congresso do PT. Destes, apenas dois expressam posições ligadas ao campo majoritário. Dos 37 restantes, dois tratam do combate ao racismo e outros dois do modo petista de governar. Dos demais 33, 32 dedicam-se a criticar as posições do campo majoritário.

     A única exceção é o texto assinado pelo companheiro Jorge Almeida, membro da executiva nacional do PT e dirigente da tendência Força Socialista, que escreveu um artigo intitulado “Dialogando com a pré-tese Soberania, democracia popular e socialismo”.
    
Escreveu um texto para polemizar com as posições da pré-tese assinada por militantes da Articulação de Esquerda, Forum Socialista, Tendência Marxista, Corrente Socialista dos Trabalhadores e por militantes de um grupo regional gaúcho, integrado entre outros pela deputada estadual Cecília Hypólito.

     Ou seja, o Jorge Almeida foi o único dirigente da esquerda que se deu ao trabalho de publicar um artigo polemizando com as posições da própria esquerda.

     Bem, embora não julgue nossa pré-tese merecedora de tanta atenção e considere que nossa prioridade é a polêmica contra as teses do setor moderado do Partido, decidi corresponder ao diálogo proposto pelo Jorge Almeida.

Nota de rodapé


Quero começar fazendo uma autocrítica. Nós devíamos ter colocado uma nota de rodapé na pré-tese, algo que dizesse assim: “para uma melhor compreensão de nossas posições, ver as resoluções da Articulação de Esquerda, as resoluções do Forum Socialista, da Tendência Marxista e da Corrente Socialista dos Trabalhadores”.

Talvez com este rodapé, o Jorge tivesse sido mais condescendente e não nos fulminasse com o seguinte petardo: nossa pré-tese “é um texto muito aquém (para dizer o mínimo) das resoluções do V Encontro Nacional e I Congresso do PT e nem mesmo delimita com as formulações do velho PCB”.
    
Afinal, é sabido –e o Jorge certamente sabe—quais são as posições de cada uma de nossas tendências sobre socialismo e estratégia. Sua crítica só ganha algum sentido se for uma tentativa de justificar, perante a militância da sua própria tendência, o porquê da Força não assinar a pré-tese comum.

     O fato é que milhares de militantes do PT em todo o país vão receber o caderno de debates e vão ler, ali, um dirigente experimentado da esquerda revolucionária acusando outros de “não delimitar com as formulações do velho PCB”.

     Mas na ausência da nota de rodapé, não vale reclamar: a pré-tese tem que se defender sozinha e responder se ela é ou não aquém das resoluções do V Encontro, do I Congresso e do “velho” PCB (!!!!).

Kafka


Sou obrigado, também, a fazer uma segunda autocrítica: eu deveria ter publicado, no jornal Página 13 ou em qualquer outro lugar, a memória das discussões que travamos no processo de formulação da pré-tese.

     Eu fui encarregado, em nome da AE, de conduzir as discussões com as demais tendências, tendo em vista a constituição de uma pré-tese comum da esquerda petista.

     As tendências envolvidas neste esforço eram a própria Articulação de Esquerda, a Força Socialista, o Forum Socialista, o Brasil Socialista, a Tendência Marxista e a Corrente Socialista dos Trabalhadores.

     Na primeira reunião que fizemos, recebi a incumbência de elaborar o texto-base para nossas discussões. Executei a tarefa e fizemos mais algumas reuniões, geralmente precárias e nunca com a presença de todos.

     Semanas antes do prazo de inscrição da pré-tese, a companheira Vitória Cancelli (que representava a Força Socialista neste esforço comum) me informou da existência de importantes divergências entre a posição de sua tendência e as posições expressas no texto-base. E para me ajudar a compreender a posição da Força, passou-me um longo documento.

No dia 21 de julho, eu sugeri que os companheiros apresentassem emendas, mas a companheira Vitória insistiu na necessidade de fazermos uma reunião.
    
Esta reunião ocorreu no dia 22 de julho. Compareceram a Vitória e o Genildo, pela Força Socialista; eu e o Julian Vicente, pela Articulação de Esquerda.

     Os companheiros relacionaram então os pontos de conflito entre sua posição e aquela explicitada no texto-base da pré-tese. Alguns destes pontos eram: a)falta de estratégia; b)pouca ênfase para a questão nacional; c)não diferenciação clara entre o governo democrático-popular e o socialismo; d)o que fazer com as estatais que foram privatizadas; e)o que fazer com a dívida pública interna; f)incentivos fiscais etc.

     Como os companheiros não apresentaram emendas, eu mesmo tomei a iniciativa de sugerir uma alternativa para cada um dos pontos de conflito. Para minha surpresa, embora acredite que tenhamos dado solução para todas as questões, os companheiros da Força disseram que não poderiam decidir ali se assinavam ou não a pré-tese, pedindo algumas horas para responder.

     No final do dia, a Vitória me informou que a Força Socialista não assinaria a pré-tese, porque havia uma divergência “estrutural”, “de fundo”.

     Curiosamente, segundo a lembrança que tenho das várias conversas, esta divergência de fundo residia na relação entre governo democrático-popular e socialismo. Enquanto defendíamos que o governo é democrático popular e socialista, a Força defendia que não era assim. Ou seja, na minha lembrança, a posição da Força era “etapista”. Lembro ainda que, para atender aos companheiros, fiz várias alterações no texto da pré-tese, no sentido de reduzir sua “taxa” de socialismo.

     Pois bem: não deixei registrada esta memória e, agora, me sinto numa situação surreal: ser cobrado, pelo Jorge Almeida, por questões diametralmente opostas às criticas anteriores da própria Força!!

     Aqui, novamente, a pré-tese vai ter que se defender sozinha. Será que ela consegue? Veremos.

Complexo de Barsa

Jorge diz que a pré-tese, “mesmo explicitamente se concentrando nas questões do ‘programa econômico’, expõe a dificuldade de responder às questões estratégicas de fundo, que o PT precisa responder neste congresso”.

     O problema é que a pré-tese não se propôs a fazer isso, pelo simples motivo de que não havia (como ainda não há) unidade suficiente no interior da esquerda para “responder” tais questões.

     Claro que existe unidade para afirmar o socialismo como objetivo e outras generalidades que não constituem, nem de longe, uma “resposta às questões estratégicas de fundo”. Para ir além disso, seria necessário travar um debate, que só agora estamos tentando fazer. Portanto, a cobrança feita pelo Jorge é extensiva a todas as pré-teses da esquerda. Ou existe alguma que respondeu tais questões?

     Diante da impossibilidade de fazê-lo –a qual devem ser agregados os problemas de tempo e de espaço— a pré-tese optou por tratar mais longamente de um único aspecto: o “econômico”.

     Este dilema foi enfrentado por todos os que escreveram as pré-teses: falar pouco de quase tudo, ou falar o máximo possível de poucos assuntos. Optamos pela segunda solução.

     A crítica do companheiro Jorge me lembrou um seminário sobre socialismo que assisti há algum tempo. Nesse seminário, representantes de vários partidos “marxistas-leninistas” tinham que falar em 20 minutos sobre a conjuntura de seus países. Gastavam 5 minutos agradecendo o convite e elogiando os anfitriões; outros 5 minutos falando da crise do capitalismo mundial e sobre a violência do imperialismo; gastavam 9 minutos explicando a trajetória heróica do seu próprio partido e seus vínculos inquebrantáveis com a tradição revolucionária, socialista, marxista e leninista; e finalmente, no minuto restante, forneciam alguma análise concreta sobre a situação concreta.

     Nós não temos vocação para enciclopédia. Também não vituperamos contra quem optou por apresentar de outra maneira suas posições. Mas nós preferimos gastar mais tempo falando de medidas programáticas, porque achamos que nelas há espaço para um debate que a conjuntura torna cada vez mais urgente, com a vantagem deste debate ser compreensível pelo partido e pela sociedade, esclarecendo de maneira bastante concreta as divergências existentes no interior do PT.

     Curiosamente, acerca do que a pré-tese diz sobre tais questões, o companheiro Jorge não fala nada. Por que será? Sugerimos aos companheiros que leiam ambas as pré-teses e comparem o que nelas é dito.

Operação Unicórnio

Jorge diz que “o próprio intuito de apresentação futura de um ‘Projeto de Programa’ composto de seis pontos (socialismo; medidas democráticas e populares; economia; sociedade; política; estratégia) pode já estar expondo uma concepção fragmentada de estratégia, pois, concretamente, socialismo e estratégia estão articulados e, os outros pontos são, necessariamente, parte daqueles e não pontos em separado”.

     Agradeço encarecidamente ao Jorge por nos lembrar que socialismo e estratégia estão articulados e que tudo se relaciona com tudo. O problema é que, na hora de escrever, pessoas limitadas como somos têm o mal hábito de expressar nossa visão com palavras, frases, períodos, capítulos, tomos, livros...

     Mas uma coisa é compreender como “separadas” as propostas políticas e as econômicas de um programa. Outra coisa é apresentar estas propostas, de maneira didática e articulada, em “pontos” (itens de um discurso) separados.

     Aliás, basta ler a pré-tese assinada pelo Jorge para ver como os vários aspectos de uma mesma realidade são tratados, ali também, em “pontos” separados.

     Nessa questão, com todo o respeito, o Jorge exagerou na mão. Provavelmente ele sabe disto, porque tratou de colocar um “pode” na sua frase. Pois para que não fique dúvida: conosco não pode não.

     Mas é claro que se o Jorge tivesse lido as resoluções das tendências que assinam a pré-tese –mea culpa, mea maxima culpa— ele não teria estas dúvidas. Na próxima vez que encontrá-lo, vou oferecer-lhe dezenas de exemplares das resoluções da II Conferência Nacional da Articulação de Esquerda. De graça, para ele e para todos os companheiros que pensam isso de nós. Assim, se eu der sorte, a culpa pela suposta quedinha reformista da pré-tese ainda vai acabar na conta da Corrente Socialista dos Trabalhadores....

Chamem o Procom

Jorge diz que “o próprio título da pré-tese promete muito mais que isso: ‘Soberania, democracia popular e socialismo’. Sendo assim, não há como discutir as ‘questões econômicas’ sem enfrentar os desafios estratégicos centrais, especialmente a questão do poder e da relação entre a ‘democracia popular’ e o socialismo.”

     Como já dissemos, trata-se de uma pré-tese e ainda assim concentrada nas medidas de natureza econômica. Mas alto lá: mesmo com todas estas limitações, a pré-tese estabelece claramente a relação entre aqueles três “elementos”.

     Caso o companheiro Jorge não tenha entendido, o título é a síntese que ele reclama. Ou seja:

a)não há soberania sem democracia popular e socialismo;

b)não há democracia popular sem soberania e socialismo;

c)não há socialismo sem democracia popular e soberania.

     Por falar em títulos, o da pré-tese assinada pelo companheiro Jorge é primoroso: “A Revolução Socialista é necessária e possível”. Concordo completamente com esta afirmação. E, embora não tenha encontrado na pré-tese dos companheiros elementos que a sustentem de maneira consistente, nem por isso seria capaz de escrever uma frase tão... tão... tão... (...deixa para lá...) quanto: “o título da pré-tese promete muito mais que isso”.

Chamem Jack

Jorge diz que “a pré-tese não poderia deixar de tratar da questão do poder. E o fez, tanto na afirmação, quanto na omissão. Em um e outro caso, residem seus principais problemas e uma formulação pouco clara de governo.”

     Bem, deixemos de lado –por enquanto— a acusação de omissão e vejamos a “formulação pouco clara de governo”: segundo Jorge, nossa pré-tese “fala genericamente que o programa é para a luta social, eleitoral e para ser executado por ‘governos democráticos e populares’, no plural e com minúsculas”. E pergunta: “o que será isto? A previsão de uma série de ‘governos federais’ democráticos e populares, pela via eleitoral e sem que haja um confronto com a classe dominante e uma ruptura revolucionária? Ou apenas a menção a governos estaduais e municipais?”

     Bem, temos uma pergunta concreta e vou tentar respondê-la por partes:

1)na sua totalidade, o programa apresentado na pré-tese é para ser agitado na luta social e eleitoral;

2)na sua totalidade, o programa apresentado na pré-tese deve servir de orientação para nossos governos, em qualquer nível;

3)na sua totalidade, o programa apresentado na pré-tese deve ser aplicado por um governo democrático-popular em escala federal;

4)imaginamos que sua aplicação leve o país a um confronto total com as classes dominantes, que pode desembocar numa revolução popular ou num golpe.

     Se o companheiro Jorge tivesse lido as resoluções das conferências nacionais da Articulação de Esquerda, ele não teria estas dúvidas. Mas parte de suas dúvidas estão respondidas no item 11 da pré-tese: “o segundo objetivo (do programa) é orientar o programa de ação imediato de um futuro governo federal dirigido pelo PT”. Por isso, “o programa do PT não supõe a realização prévia de uma revolução popular”.

     Ao dizer “orientar a ação imediata”, quisemos esclarecer que serão necessárias outras medidas --por exemplo, a expropriação dos grandes monopólios.

     Ao dizer que não supõe a realização “prévia” de uma revolução popular, quisemos dizer que supõe a realização de uma revolução popular –mas não “prévia”. Prévia ao quê? Prévia, no caso, à conquista de maioria eleitoral e, portanto, do governo federal pela esquerda.

     Porque falamos de “governos democrático-populares” no plural? Evidentemente não pensamos numa sequência de governos federais democráticos e populares pela via eleitoral e sem que haja um confronto e uma ruptura.

     Falamos no plural, porque achamos que a transição socialista, que (esperamos) poder começar num governo democrático-popular eleito, a quem caberia dar início à aplicação do programa e, por exemplo, derrotar um golpe militar e aprofundar a aplicação do programa, exigirá muitos anos e muitos governos. Ou será que teremos um governo só, per ominia saeculo saeculorum?

     E porque usamos minúsculas? Ora, porque quisemos... Porque o manual permite... Porque o marxismo-leninismo aceita o uso de minúsculas... Porque nunca pensamos que alguém fosse nos perguntar a respeito... E certamente porque nos referimos a “governos” mesmo, não à categoria “governo democrático-popular” –se bem que esta também citamos em minúscula, o que todos sabem é uma imperdoável falha de quem não teve uma formação marxista consistente.

Lembranças da Bastilha

Segundo Jorge, em vários momentos da pré-tese falamos em “ferir de morte o capitalismo brasileiro”, sem explicar como isto seria possível sem “uma revolução popular”.

     Bem, claro que se o Jorge tivesse podido ler as resoluções das conferências das várias tendências que assinam a tese, ele não estaria se perguntando a respeito disto. Mas já que ele não leu, vamos ao ponto:

     A expressão “ferir de morte” é uma metáfora. Ela quer dizer que a aplicação daquelas medidas programáticas, aplicação que não supõe a realização “prévia” de uma revolução popular, medidas programáticas aplicadas por um governo que tenha força para tal, aprofunda a luta de classes no país, o que permite colocar em questão o conjunto do capitalismo.

     Isto, é claro, se tudo der certo....

     O problema é que não há como “matar” o capitalismo brasileiro, se não conseguirmos mobilizar as classes trabalhadoras contra ele. E não há mobilização em abstrato, contra um capitalismo abstrato. Os trabalhadores se mobilizam em torno de demandas concretas, que o programa tenta sintetizar. É para alcançar estas demandas que os trabalhadores se colocam a questão do poder. E a questão do poder, no Brasil de 1999, nesta conjuntura concreta que vivemos, passa pela disputa eleitoral do governo federal.

     Portanto, quando falamos que a implantação de um conjunto de medidas programáticas –como reforma agrária, reestatização das empresas privatizadas, estatização do setor financeiro, suspensão do pagamento das dívidas externa e interna etc.— “ferem de morte” o capitalismo brasileiro, estamos metaforizando o raciocínio acima exposto.

     Por outro lado, tudo isto que acabamos de falar é só um esquema, uma hipótese e sempre pensando que tudo dê certo. Mas em qualquer caso, é preciso lembrar que o capitalismo precisa ser derrotado militar, política e economicamente. E derrotá-lo economicamente é difícil, porque supõe reorganizar a economia em torno de uma lógica não-capitalista. Objetivo a que fazemos referência na pré-tese (ver o item 9).

     Assim, se quisermos ser absolutamente rigorosos, uma “revolução popular” é condição necessária, mas não suficiente, para “ferir de morte” o capitalismo.

Antes, uma Kaiser

Jorge diz que a pré-tese acaba “gerando uma ilusão eleitoral de ferir de morte o capitalismo através de um (ou quem sabe inúmeros) ‘governos eleitorais do PT’.”

     Alto lá! Três parágrafos antes o Jorge perguntava se nós defendíamos essa idéia da “série de governos federais”. Mas, antes de saber a nossa resposta, ele já coloca no texto a resposta? E coloca entre aspas, como se fosse nossa opinião???

     Todavia, muita atenção: finalmente as coisas começam a ficar claras. Tudo o que vinha sendo dito até agora pelo Jorge, todas as críticas, foram na verdade “fogo de barragem”, expediente militar muito utilizado para cobrir a retirada das tropas.

     Vejamos: ele até agora vinha criticando o nosso texto por não falar do socialismo, não falar da estratégia, não falar do poder, não falar da revolução... Ou seja, faz críticas “de esquerda” a um texto que “nem mesmo delimita com as formulações do velho PCB”.

De repente, de passagem, como quem fala algo desimportante, ele critica o nosso texto por vender uma “ilusão eleitoral”... Ou seja, nossa pré-tese se propõe a fazer com o governo democrático-popular algo de que ele não é capaz... Ou seja, defendemos que um governo democrático-popular adote medidas de natureza... socialista!!! (ver item VI, sobre a “área de propriedade socialista”).
    
Mas então agora o Jorge está nos criticando por... esquerdismo. Vejamos a frase inteira: “Evitando defender claramente um governo democrático e popular como um objetivo estratégico, compreendendo claramente seus limites (ou seja de ainda não ser um governo socialista no sentido de aplicar um programa socialista sem rupturas) o texto acaba gerando uma ilusão eleitoral...”

Opa, opa: nós defendemos que o governo democrático-popular é um objetivo estratégico. Mas nós não trabalhamos com esta distinção entre governo socialista e governo democrático-popular! Tanto é assim que nossa pré-tese defende “colocar sob controle popular um setor importante da economia (...) este setor público e social pode ser ponto de partida para a construção de uma ‘área de propriedade socialista’ na economia brasileira”.
    
Jorge coloca na nossa conta algo que nós não pensamos. E aqui reside o centro de nossas divergências. Reside, também e paradoxalmente, o motivo pelo qual considero que se alguém está tendo uma recaída etapista, é a Força Socialista e não os signatários da pré-tese “Soberania, democracia popular e socialismo”.

Ming-ling

Jorge diz que “a luta por um governo democrático e popular e a possibilidade de chegarmos a ele por uma maioria eleitoral deve ser vista como um objetivo estratégico”. Estamos de acordo.

     Jorge diz ainda: “ou seja, o governo democrático e popular não tem um programa socialista, mas é estratégico na medida em que venha expressar a hegemonia dos trabalhadores, atenda as reinvidicações e anseios atuais e históricos do povo e se construa na perspectiva do socialismo”. Nisto não estamos de acordo.

     Para nós, um governo que “expressa a hegemonia dos trabalhadores”, “atenda as reivindicações atuais e históricas do povo” e “se construa na perspectiva do socialismo”... é um governo socialista.

Onde está a diferença entre nós? Ou bem no que entendemos por socialismo; ou está no “ou seja”. Recapitulemos a frase: “(...)a possibilidade de chegarmos a ele por uma maioria eleitoral. Ou seja, o governo democrático e popular não tem um programa socialista (...)”
    
“Ou seja”: porque chegamos ao governo por uma maioria eleitoral, então este governo não tem um programa socialista.

     E aqui temos um bom exemplo de como o doutrinarismo de esquerda pode estar a serviço de uma política de direita. Nessas horas é que consigo entender porque o PC Chileno apoiou a direita do Partido Socialista Chileno, contra a esquerda do PS e contra o Movimento de Esquerda Revolucionária. Frente aos que defendiam que o governo Allende radicalizasse, acho bem possível que o PC repetisse o catecismo do bom-senso: socialismo, só com revolução. Como este é um governo eleito etc etc etc.

     Nós pensamos diferente. Dando sequência às formulações do V Encontro, nós não estabelecemos uma Muralha da China entre o governo democrático-popular eleito e o programa socialista. Nós não achamos possível ter democracia-popular nem soberania, a não ser com medidas socialistas. Porque não acreditamos que um governo soberano, democrático e popular sobreviva sem assumir o controle de grande parte da economia brasileira. Portanto, sem “ferir de morte o capitalismo”.

A presença de Dolly

Esta distinção entre governo democrático-popular-eleito-não-socialista e o verdadeiro-governo-socialista-produto-da-revolução é um transgênico do etapismo do velho PCB.

     Um transgênico meio desnaturado, é claro: Jorge diz que “o governo democrático e popular não pode se prender aos limites do capitalismo”. Ora, se ele “não pode se prender aos limites do capitalismo”, como então não considerá-lo também... socialista?

Vejamos a frase inteira: “não pode se prender aos limites do capitalismo, mas dialoga com o acúmulo da consciência popular e deve ser anti-imperialista, anti-monopolista e radicalmente democrático” (claro que deve ser anti-latifundiário também, e embora o Jorge mereça, eu não vou adotar contra ele os métodos de polemista que ele adota contra nós).
    
Segundo entendi desta frase, o governo democrático-popular não é socialista essencialmente para “dialogar com o acúmulo da consciência popular”. Por este critério, não poderíamos considerar socialista o governo soviético em 1917, pois a consciência popular de então....

     Jorge pode argumentar, a seu favor, o que ocorreu em Cuba: o governo revolucionário só se proclamou socialista depois da vitória contra os mercenários. Nesse sentido, “dialogou” com a consciência popular.

     Bom, mas este é um problema de outra natureza. E, embora nesse terreno provavelmente tenhamos enorme concordância com as preocupações do Jorge, cabe lembrar que desde 1959 a burguesia e o imperialismo não se deixaram mais “pegar de surpresa” por governos populares que não se propunham explicitamente a construir o socialismo.

     Mas para ficar nas diferenças entre nós, voltemos ao texto do Jorge: “as reformas desse governo inevitavelmente atingirão os interesses da burguesia”... “o governo democrático e popular só tem como saída a reafirmação da participação organizada dos setores populares como sua principal base de sustentação”... “a contrapartida para que o processo de ruptura e transição se viabilize é a construção de um novo poder”.

Ou seja: o governo-democrático-popular-eleitoral serve para elevar a luta de classes de patamar, levando a luta de classes ao ponto de ruptura. Chegando neste ponto, será preciso fazer uma ruptura e construir um novo poder.
    
Acontece que a luta de classes só irá ao ponto de ruptura se nosso governo tomar medidas socialistas ou... se a burguesia entender, com ou sem razão, que isso está acontecendo ou vai acontecer. Num país como o Brasil, onde o simples fato do povo controlar o aparelho de Estado já será considerado como uma expropriação, as chances da burguesia tentar virar preventivamente a mesa são enormes, quase absolutas.

     Por isso, não deixa de ser curiosa esta discussão sobre o caráter socialista ou não de um governo democrático-popular. A burguesia não terá a menor dúvida, quem tem dúvida são alguns de nós...

     Quando o setor moderado rebaixa o programa do Partido e anuncia isto aos quatro ventos, é exatamente para evitar uma reação “desnecessária” da burguesia: “vejam, não se preocupem, não queremos o socialismo”.

A atitude dos moderados tem sua lógica. O que não tem lógica nenhuma é defender que nosso governo adote medidas extremamente radicais, “na perspectiva do socialismo”, mas dizer que não se trata de um governo socialista...

Por tudo isto, defendo que assumamos claramente o caráter democrático-popular e socialista de nosso governo, entre outros motivos porque acredito que nossa capacidade de derrotar a burguesia está diretamente ligada ao apoio popular do governo. Apoio que será tanto maior quanto mais nosso governo adotar medidas de sentido anticapitalista.

Suponhamos, finalmente, que alguém esteja raciocinando assim: “soberania nacional, reforma agrária e democracia política são medidas ‘burguesas’. A burguesia que temos aqui no Brasil não aceita nem estas medidas ‘burguesas’. Por isto, ela se voltará contra o nosso governo. Derrotaremos a burguesia e iremos além das medidas ‘burguesas’. Só então poderemos falar de um governo socialista”.

Este raciocínio é o cúmulo do doutrinarismo. Vejamos o caso da reforma agrária. Teóricamente trata-se de uma medida “burguesa” –distribuir propriedades. Mas concretamente, no caso brasileiro, a burguesia não realiza e –mais importante— não tolera esta medida “burguesa”. Por quê? Porque ela é “democrático-capitalista”, entra em choque com o capitalismo real que existe no Brasil. Portanto, trata-se de uma medida simultaneamente capitalista e anti-capitalista.

Um governo que realize uma profunda reforma agrária será um governo democrático-popular ou um governo socialista? Na minha opinião, será ambas as coisas. Qual aspecto, qual tendência prevalecerá? No concreto: teremos uma reforma agrária centrada na repartição de propriedades individuais, ou teremos uma reforma agrária que privilegiará a cooperativização?

A definição prévia de que se trata de um governo democrático-popular e socialista não garante o que vai acontecer, mas indica que rumo pretendemos seguir, que tipo de medidas pretendemos adotar. Definições ambíguas ajudam pouco.

Allende neles
    
Por outro lado, é preciso responder a duas perguntas: de que lado estará nosso governo, quando houver a “ruptura”? Qual a relação entre nosso governo e o “novo poder”?

     Se a ruptura e o novo poder forem contra o nosso governo, então temos um cenário “outubro de 1917”, só que o Kerensky seremos nós. Se a ruptura for contra o “Estado burguês”, em que lugar ficará o nosso “governo”?

     Na verdade, a hipótese desenvolvida pelo Jorge  –e por grande parte da esquerda petista— tenta fazer um mix entre a estratégia insurrecional clássica e a via chilena para o socialismo. O problema é que, na versão Jorge Almeida deste mix, não fica claro qual o papel do governo eleito.

     Jorge diz que a “nova democracia se constrói por fora e por dentro da institucionalidade e contra o velho Estado”, que a efetivação do poder dos trabalhadores só será possível quando as classes populares compreenderem que “este velho poder burguês não tem mais condições de atender às suas expectativas imediatas e futuras” e “quando uma força política se apresentar aos olhos do povo como capaz de resolver esta contradição”.

     Veja, tudo isso poderia servir como orientação, sem tirar nem por, para um cenário de insurreição clássica, contra um governo/Estado burguês. Mas e como ficam as coisas quando o Estado é burguês, mas o governo é popular?

     Por exemplo: para que as classes populares compreendam que o “velho poder burguês” não tem mais condições de atender às suas expectativas imediatas e futuras, será preciso que nosso governo (que as massas, sabiamente, percebem como parte do Estado) esteja contra as classes populares. Só que, nesse caso, será mais fácil fazer triunfar a contrarrevolução...

     Outra hipótese: o governo está fazendo de tudo para atender as massas, mas o legislativo e o judiciário e as forças armadas resistem. Neste caso, a insurreição das massas será contra algumas das casamatas do Estado. Mas que papel terá o governo nisso?

     Dito de outra forma: de onde surgirá aquela “força política capaz de resolver a contradição”? Supondo que estejamos no governo e que a tal força política somos nós, isto quer dizer que resolveremos a contradição também atuando através do governo? Mas se as massas não estão satisfeitas, é porque o governo não está dando conta de resolver os problemas. Como então nós, que estamos no governo, conseguiremos nos apresentar aos olhos do povo como “capazes de resolver” a contradição???

     Em resumo: uma coisa é fazer uma insurreição, ir para a guerra civil, contra um governo reacionário (cenário “outubro de 1917”). Outra coisa é defender um governo popular, numa guerra civil iniciada pela direita (cenário “Allende 1973”). Outra coisa, ainda, é combinar a ação de um governo popular com uma insurreição, para derrotar a burguesia (cenário “Barcelona, 1936”). Outra, finalmente, é tentar fazer tudo isso, sem guerra civil (hipótese aventada por Rui Mauro Marini, no texto “Duas estratégias no processo chileno”).

     Quando defendo “um governo democrático-popular e socialista”, é porque imaginamos resolver uma pequena parte deste problema, pela linha da temperatura máxima. Ou seja: fazendo do próprio governo um agente da ruptura.

     A esse respeito, e deixando claro que estou extremamente cauteloso com aquela experiência --porque não vejo a classe trabalhadora atuando com independência, não sei qual é o programa econômico do chavismo, nem vejo partido revolucionário por lá— acho que o exemplo da Venezuela pode ser muito instrutivo, devendo ser acompanhado de perto.

A imaginação no poder

Não é possível discutir aqui aqueles cenários e as questões correlatas, cuja complexidade exigiria mais espaço, tempo e conhecimento do que disponho, mas em qualquer caso é prudente lembrar que a esquerda não tem tido muita sorte em combinar ação governamental com ação insurrecional.
    
Por isto mesmo, quero ressaltar outro aspecto desta questão: a idéia de “alternativa democrática e popular, articulada com o socialismo” não tem nenhum vínculo obrigatório com a disputa eleitoral, com a perspectiva de um governo federal eleito. Para deixar claro o que queremos dizer, peço que imaginemos dois cenários diferentes:

Num cenário, a burguesia realiza um golpe e fecha as possibilidades de disputa eleitoral. Nesse cenário, o movimento socialista brasileiro continuará lutando revolucionariamente por um governo democrático-popular e socialista, porque este é o caráter que assumirá o início da transição socialista no Brasil.

Este caráter é dado pela natureza das medidas que serão adotadas pelo governo. Já serão medidas socialistas (porque atacam profundamente o capital), mas também serão medidas democrático-capitalistas (por exemplo, vamos ampliar o espaço da pequena e média propriedade no Brasil). Noutra palavras, o início da transição socialista aqui no Brasil vai combinar medidas de controle coletivo sobre a propriedade com medidas que ampliam o número de proprietários e de propriedades privadas.

Os motivos desta combinação estão no fundamental expostos nas resoluções do V Encontro, por isso me poupo da necessidade de citá-los aqui.

É por conta desta contradição real que utilizamos a denominação “democrático-popular”. Se a transição socialista envolvesse apenas medidas de coletivização da propriedade, não haveria nenhuma necessidade de utilizar aquela denominação; poderíamos falar de programa socialista e governo socialista, pura e simplesmente.

Noutro cenário, a esquerda brasileira ganha as eleições e faz um governo de centro-esquerda. Nesse cenário, os socialistas devem continuar lutando por um governo... democrático-popular. Se o farão através da disputa interna, da pressão das massas, da disputa eleitoral ou do chamando à insurreição, isso é outra questão. O programa, o caráter, a etapa da revolução não são definidos pela via da tomada do poder.

Aliás, convém relembrar o óbvio: etapismo e reformismo são coisas diferentes. Pode-se defender um caminho revolucionário e etapista, como fizeram o próprio PC (em determinados momentos) e várias das organizações da luta armada. Assim como se pode defender um caminho reformista para o socialismo, sem cair no etapismo (ou seja, sem cair na defesa de uma “etapa” prévia ao socialismo).

A posição defendida pelo Jorge é revolucionária mas etapista. Um etapismo estranho, na medida que Jorge recusa explicitamente qualquer aliança estratégica com a burguesia. Mas etapista, porque considera que o governo democrático-popular é estratégico mas não é socialista.

Não basta Gelol

Finalmente, Jorge registra “a falta de uma clara defesa de um projeto nacional. Ou seja, apesar das declarações em contrário, (a pré-tese) acaba mesmo é apresentando uma lista de propostas sem uma coerência estratégica”.

     Pelo visto, Jorge acha que a “coerência estratégica” das propostas é dada pela clara (não basta a defesa, ainda tem que ser clara. Por que não: “claríssima”? Ou, então “clara presença”, para ficar mais poético e nos lembrar o Che), repito, clara defesa de um projeto nacional.

Estamos diante de um mistério de Fátima: lendo e relendo a pré-tese, acredito que nela existe um projeto “nacional” (e internacional) explícito, bem como acredito que suas propostas têm uma “coerência estratégica”.

Acontece que a expressão “projeto nacional” tem dois sentidos diferentes.

Um sentido, que se tornou verdadeiro chavão –sendo repetido por pessoas de todo o espectro político e social— faz referência a medidas que preservem, defendam etcetera e tal, o espaço político, social e econômico da Nação brasileira, em contraponto com os interesses do imperialismo.

Nossa pré-tese apresenta medidas dessa natureza, embora não sintamos a necessidade de –como os companheiros de O Trabalho—falar dezenas de vezes frases como “salvar a Nação”, “defender a Nação”, “traição nacional” e assemelhados.
    
Entretanto, preferimos não utilizar o termo “projeto nacional”, por este ter algumas implicações que preferimos evitar.

     Uma implicação possível: dissociar as tarefas antimonopolistas, antilatifundiárias e democráticas das tarefas anti-imperialistas, como se fosse possível soberania nacional sem democracia popular e socialismo.

Outra implicação: sobrevalorizar a “questão nacional” em detrimento da “questão social e democrática”, o que levaria a alianças sociais e políticas que não nos interessam.
    
Mais uma implicação: minimizar o caráter internacionalista do programa democrático-popular.

Naturalmente, há quem use a expressão “projeto nacional” e não caia em nenhum desses equívocos. Assim como há quem não a utilize, mas seja capaz de apresentar uma proposta estratégica de conjunto. É, pensamos, o nosso caso.
    
A expressão “projeto nacional”, contudo, pode ser utilizado noutro sentido, no sentido de programa que, apresentado pelos trabalhadores, é capaz de hegemonizar setores mais amplos da sociedade. Capaz, noutras palavras, de organizar o bloco histórico responsável pelas mudanças na sociedade brasileira.

Nesse sentido, o “projeto nacional” é o nome que damos para o programa e, de maneira mais geral, para um conjunto de atitudes estratégicas e táticas que o Partido adota para se tornar força dirigente de outros segmentos sociais.

Novamente, embora não utilizemos a expressão, achamos que os elementos de programa apresentados na pré-tese têm esta capacidade. Sem cair na confusão que algumas tendências da esquerda petista têm caido, de confundir “projeto nacional” com retórica e prática nacionalistas.

Tréplica neles
    
Quando estávamos discutindo a pré-tese comum, eu disse para a companheira Vitória Cancelli que não entendia porque os companheiros não assinavam a pré-tese comum, nem propunham emendas à tese comum.

Tampouco entendi porque os companheiros não propuseram um texto inteiro alternativo, que se tornasse a pré-tese comum, no lugar daquela que eu havia redigido.

Agora, depois de ler as várias pré-teses, inclusive a dos companheiros da Força; depois de ler a réplica do companheiro Jorge Almeida; e depois de termos passado um dia inteiro discutindo estratégia com várias tendências da esquerda petista, minha conclusão é: as divergências existentes não justificavam, por si, a existência de várias pré-teses. Havia e continua havendo espaço para construirmos uma pré-tese comum.

Os motivos que levaram os companheiros a não construir uma pré-tese comum, portanto, não estão nos textos, nos argumentos, nas divergências reais ou imaginárias (se bem que as divergências imaginárias estão na moda e se multiplicam como amebas).

Quais foram então os motivos da Força? Não sei, mas tenho minhas hipóteses. Na prática, entretanto, teria sido melhor que os companheiros tivessem dito de saída –como fizeram com clareza os companheiros da DS— que preferiam inscrever uma pré-tese própria e deixar a unidade da esquerda para o momento da tese. Nos teriam poupado tempo, esforço, muita adrenalina e, principalmente, essa troca de réplicas.

Mas há males que vem para bem. Esta polêmica mostrou que é necessário insistir no debate estratégico dentro da própria esquerda petista. Debate que exige recuperar categorias como comunismo, transição socialista, tarefas da revolução, via da tomada do poder, via principal de acúmulo de forças. Exige, principalmente, uma análise concreta da sociedade brasileira: enquanto não houver uma análise das classes sociais e da luta de classes existente no Brasil, não poderemos falar que exista uma estratégia consistente.

Para isso tudo, será necessário um diálogo de verdade. Ou seja, aquele em que se ouve (ou se lê) aquilo que os outros de fato dizem. Sem esta disposição, todo diálogo será apenas estranho. Muito estranho.

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