domingo, 18 de setembro de 2011

Uma questão de 1999 que segue atual

O texto abaixo, de 1999, é um relatório sobre minha dissertação de mestrado acerca da formação do Partido Comunista do Brasil. Numa passagem deste relatório, está escrito o seguinte: Cabe investigar porque a crítica ao etapismo não evoluiu. A nosso ver isto está ligado à força da burguesia brasileira, as características estruturais de nossa sociedade, a precariedade do debate teórico no movimento comunista e a forte influência do nacional-desenvolvimentismo sobre o conjunto do movimento comunista. Temas presentes para quem atua no Partido dos Trabalhadores, no ano de 2011.










A cisão de 1962: a formação do Partido Comunista do Brasil





























O Partido

Em 11 de agosto de 1961, o jornal Novos Rumos, semanário de propriedade do Partido Comunista do Brasil, publicou os estatutos e o programa do “Partido Comunista Brasileiro”. Publicou, também, uma entrevista com Luís Carlos Prestes, principal dirigente do PCB, explicando que tais documentos seriam encaminhados ao Tribunal Superior Eleitoral, visando o registro deste partido.

A mudança no nome foi apresentada como um passo necessário para conseguir o registro eleitoral do Partido, posto na ilegalidade em 1947.

Um setor do Partido Comunista, agora Brasileiro no entender da esmagadora maioria de seu Comitê Central, atacou duramente a decisão. Argumentou que os novos Estatutos excluiam “a afirmação de que o Partido se regia pelos princípios do marxismo-leninismo e do internacionalismo proletário e a declaração de que a organização partidária dos comunistas tem como objetivo final o estabelecimento de uma sociedade comunista. Além disso, o Programa do ‘Partido Comunista Brasileiro’ se resume a um conjunto  de enunciados reformistas cujo alcance fica muito aquém das medidas indicadas nas plataformas de alguns partidos da burguesia e dos latifundiários”. (“Em defesa do Partido”, in: 30 anos de confronto ideológico, Editora Anita Garibaldi, 1990, São Paulo).

Como o Comitê Central do PC Brasileiro recusou os pedidos para que convocasse um Congresso partidário e começou a punir os dissidentes, estes realizaram uma Conferência Nacional, que “reorganizou” o Partido Comunista do Brasil, em fevereiro de 1962.

Após a cisão, o PCdoB reunia, segundo seus próprios dirigentes, algumas centenas de militantes. O número sobe bastante depois do golpe militar de 1964, mas não existe qualquer contabilidade confiável sobre o tamanho do Partido.

Em 1966, quando é realizada a chamada Sexta Conferência Nacional, rompem com o PCdoB aqueles setores que defendiam o engajamento imediato na guerrilha (urbana, no caso). Tais setores deram origem a duas novas organizações: a Ala Vermelha e o Partido Comunista Revolucionário(PCR).

A partir de 1967, o PCdoB começa a organizar o deslocamento de mais de 60 militantes para a região do Araguaia, com o objetivo de organizar ali o embrião de uma “guerra popular prolongada” contra o regime militar.

Atacados pelo exército no dia 12 de abril de 1972, os guerrilheiros resistem até 1974, quando é assassinado o principal dirigente militar da guerrilha, Osvaldo Orlando da Costa. O PCdoB demorou a reconhecer a derrota. E quando o fez, ficou claro que existiam diferentes visões, no seu interior, sobre a guerrilha.

Enfraquecido pela derrota no Araguaia e pela prisão de dirigentes e militantes em todo o país, o Partido recebe novas forças a partir da incorporação da Ação Popular Marxista Leninista (APML). Os militantes oriundos da AP são incorporados em todos os níveis do PCdoB, inclusive no Comitê Central.

Em dezembro de 1976, o Comitê Central reúne-se para realizar o balanço político da guerrilha do Araguaia. Quando a reunião termina, predomina uma posição crítica, que considera que a guerrilha foi uma manifestação de “blanquismo” e “foquismo”. 

A maioria crítica não durará mais do que algumas horas. A reunião estava sendo monitorada pelo Exército e pelos orgãos de segurança, que atacam a casa onde se reunira o Comitê Central, assassinando os dois dirigentes que permaneciam no local. Um terceiro integrante do Comitê Central é preso e torturado até a morte. Os demais participantes da reunião são presos, torturados e condenados à diversas penas, com exceção de José Novaes (que consegue escapar) e Jover Telles (que delatara a reunião).

A “queda” do Comitê Central do PCdoB foi o último lance espetacular da repressão militar contra as organizações de esquerda. O Partido permanece desarticulado e bastante dividido até 1980, quando prevalece a posição dos dirigentes que estavam no exterior, entre eles João Amazonas. Numa Conferência realizada em Tirana (Albânia), é aprovado um balanço positivo da guerrilha do Araguaia.

Os setores críticos pedem a convocação de um Congresso. Não são atendidos e começam a ser expulsos do Partido. Parte deles cria uma nova organização, o Partido Revolucionário Comunista (PRC), que se dissolverá no final dos anos 80.   Outros integram-se individualmente ao Partido dos Trabalhadores ou ao PCB.

Novamente reorganizado, o PCdoB atua na semi-clandestinidade até 1985, quando é legalizado, durante o governo Sarney. Desde 1986, participa regularmente dos processos eleitorais.

A lacuna
           
O estudo da cisão que deu origem ao PCdoB, inclusive seus antecedentes e desdobramentos, pode ajudar a preencher uma lacuna na historiografia brasileira.

O Partido Comunista do Brasil é o mais antigo partido brasileiro em funcionamento, com 77 anos de idade (segundo o próprio Partido) ou com 37 anos (segundo os que o acreditam nascido na cisão de 1962). Possui uma bancada parlamentar atuante, com 9 deputados federais, presença expressiva no movimento sindical e estudantil.

Das organizações que participaram da luta armada contra a ditadura militar, o PCdoB é a única que se mantém atuante (a não ser que consideremos o MR-8 quercista uma continuidade do grupo que sequestrou o embaixador Charles Elbrick).

De todas elas, o PCdoB foi a única que realizou uma guerrilha rural; e a que manteve funcionando, por mais tempo, seu aparato guerrilheiro. Entretanto, mesmo os estudos sobre a guerrilha do Araguaia são de caráter mais jornalístico, laudatório ou polêmico.

De todas as organizações influenciadas pelo Partido Comunista Chinês (exceto aquelas que atuam em países da órbita de influência direta da China, como a Índia, por exemplo), o PCdoB é um dos poucos casos que superaram a condição inexpressiva de seita. O outro, também na América Latina, é o Partido Comunista do Peru, mais conhecido como Sendero Luminoso.

Outras cisões ocorridas na história do comunismo brasileiro  mereceram maior atenção: é o caso das trotskistas (nos anos 30), de Agildo Barata (1957), das que deram origem à grupos de guerrilha urbana (na segunda metade dos anos 60), do prestismo e do “eurocomunismo”.

            O número de trabalhos a respeito do PCdoB é muito pequeno. Um levantamento no banco de dados Unibibli mostra que, de 1463 títulos referentes a “comunismo”, menos de 10 dizem respeito diretamente ao PCdoB e nenhum trata da cisão de 1962. No banco de dados Dedalus, de 409 títulos referentes a “partidos”, nada há sobre a cisão de 1962. O número de trabalhos sobre o PCdoB é muito inferior ao número de estudos sobre o PCB, sobre as organizações da guerrilha urbana e mesmo sobre o PT. O pouco que existe, concentra-se no estudo da guerrilha do Araguaia.

As interpretações

            Nos estudos sobre o movimento comunista no Brasil e a luta armada contra a ditadura militar, prevalece uma linha de interpretação que explica a cisão de 1962 a partir de três variáveis:

a)o conflito entre stalinistas e anti-stalinistas no interior do PC;
b)o conflito entre as linhas “soviética” e “chinesa”;
c)o conflito entre a “via pacífica” e a luta armada.

            Um bom exemplo disso nos é dado por Jacob Gorender, em seu livro Combate nas Trevas: “os stalinistas argumentaram que o Comitê Central incorrera em infração de princípios, que o Programa e os Estatutos encaminhados ao TSE haviam renegado o partido fundado em 1922 e criado um novo partido (...) Na Conferência Nacional Extraordinária [de fevereiro de 1962] o PCdoB aprovou um Manifesto-Programa que retomou as teses do Quarto Congresso do PCB (...) a instauração de um novo regime (...) não se daria pelo inviável caminho pacífico, porém pela violência revolucionária. (...) No Manifesto-Programa ainda se afirmava que a União Soviética marcha para o comunismo. Contudo, o PCdoB encontrou má acolhida no PCUS e optou pelo alinhamento com o Partido Comunista da China (...) O maoísmo ganhava difusão institucionalizada no Brasil e atuava como força aglutinadora contra o PCB”.

Esta linha de interpretação lança luz sobre uma parte da realidade; mas desvia a atenção do aspecto mais importante, qual seja, o processo de diferenciação que já estava em curso, dentro do Partido Comunista. Diferenciação que tinha relação com o debate travado no movimento comunista internacional, mas não era mero reflexo daquele debate.

O stalinismo

O termo stalinismo é utlizado para designar, muitas vezes de forma simultânea, quatro coisas diferentes. Designa, em primeiro lugar, uma variante do marxismo, codificada pelas academias soviéticas. Em segundo lugar, uma determinada estratégia de luta pelo socialismo, inspirada na leitura que Stálin e outros farão da experiência bolchevique. Designa, em terceiro lugar, um determinado “modelo” de construção do socialismo, cujos pilares são a ditadura do partido, o planejamento centralizado e a industrialização pesada. Finalmente, designa um determinado método de direção partidária, marcado pelo predomínio do Comitê Central sobre o partido; e do secretário-geral sobre o Comitê Central.

            O stalinismo foi hegemônico no movimento comunista internacional, da derrota da Oposição de Esquerda no PC Soviético (no final dos anos 20) até a morte de Josef Stálin (1953).

            Com o final da Segunda Guerra Mundial, o stalinismo chega ao seu apogeu e inícia o seu declínio. Por um lado, tensões internas à União Soviética impõem reformas econômicas e políticas, imposição a que o próprio Stálin não esteve alheio. Por outro lado, a emergência de novos Estados dirigidos pelos comunistas coloca em questão o monolitismo soviético por sobre o movimento comunista internacional.

            Em 1953, o stalinismo tal como existira antes já tinha seus dias contados. A morte de Stálin apenas acelera o processo. Em 1956, durante o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, o secretário-geral Nikita Kruchev lê um relatório “secreto” em que faz duras críticas aos métodos adotados pelo falecido secretário-geral.

O relatório é publicado pela imprensa norte-americana e reproduzido, no Brasil, pelo jornal O Estado de S. Paulo. Passado um momento inicial, em que se tentou negar sua veracidade, o efeito é devastador.

A imprensa do PCdoB começa, à revelia da direção, o debate sobre o relatório, que logo se torna um debate sobre os princípios, a estratégia, a tática e a concepção de partido vigentes no movimento comunista brasileiro e internacional.

Alguns meses depois, Prestes em pessoa toma a iniciativa de “por ordem” no debate. Os críticos mais veementes são afastados ou se afastam. Em 1957, forma-se um novo núcleo dirigente do partido; os dirigentes supostamente identificados com práticas “mandonistas” são afastados do politburo (comissão política) e do secretariado do PC.

Grande parte destes dirigentes participará da dissidência de 1962. Isto –somado ao fato do próprio PCdoB, ainda hoje, reivindicar abertamente o legado de Stálin— ajudou a consolidar a tese segundo a qual o PCdoB seria uma “dissidência stalinista”.

Entretanto, somente isto não é suficiente para sustentar a tese segundo a qual a cisão de 1962 foi uma reação dos “stalinistas”. É o que se pode verificar, quando estudamos o conteúdo do debate travado em torno do relatório “secreto” de Kruchev, bem como quando analisamos os métodos utilizados pelo novo núcleo dirigente.

Quando o Partido tomou conhecimento do discurso de Kruchev, já estava em curso um duro debate acerca da estratégia do PC. Vale lembrar que após o fracasso de 1935, o Partido enfrentara uma situação muito difícil, sendo reorganizado apenas em 1943, na chamada Conferência da Mantiqueira. Nesse evento, prevaleceria a tese da unidade nacional contra o fascismo, na prática uma aliança entre os comunistas e Vargas. A nova linha coincide com um curto período de legalidade, em que os comunistas elegem 16 parlamentares (entre eles, Prestes), participa da Assembléia Nacional Constituinte, obtém 10% dos votos nas eleições presidenciais e obtém importantes vitórias nas eleições municipais.

O crescimento do PC é a senha para que, em 1947, a justiça casse o registro do PC. A ofensiva anti-comunista é mundial, e marca o início da chamada Guerra Fria. Nesta nova situação, o Partido faz um giro de 180 graus em sua política, aprovando uma linha que prevê a criação de sindicatos paralelos e até a formação de um exército popular revolucionário. O partido insiste nesta linha, com as mediações impostas pela realidade, até o suicídio de Vargas.

A reação popular ao suicídio voltou-se também contra o PC, que fazia então dura oposição a Vargas. Pouco a pouco, o Partido vai adotando uma nova linha, que prevê a colaboração tática com o governo Juscelino (e depois Jango), a aproximação com o PTB e um maior peso para as disputas eleitorais.

O relatório “secreto” sobre Stálin aparece neste contexto, como um ponto de apoio importante para os setores que defendiam uma estratégia mais moderada. A chave para entender a posição de uns e outros, naquele debate, portanto, não era propriamente a posição frente ao stalinismo.

Quando Prestes “pôs ordem” no debate acerca do relatório secreto, o Partido já estava se preparando para o V Congresso, realizado em 1960. As páginas da imprensa partidária acolhem uma polêmica muito dura, onde as referências ao stalinismo são marginais. Sobre este tema, a maioria dos dirigentes optou por uma linguagem cifrada: a admissão de que houve, durante o período em que Stalin dirigiu a URSS, quebras na “legalidade socialista” e nos “princípios leninistas de direção coletiva”.

O centro do debate preparatório do V Congresso era a estratégia do PC. O novo núcleo dirigente opera com decisão e consegue controlar a maioria dos delegados ao Congresso, elegendo a quase totalidade do novo Comitê Central. E é só depois desta esmagadora vitória que se decide mudar o nome do partido.

Existe, portanto, uma forte vinculação entre o debate sobre o relatório “secreto” e o debate sobre a estratégia do PC. Mas a vinculação é muito mais complexa do que a adesão ou não ao stalinismo.

Até porque o culto a pessoa de Stálin é um aspecto menor do que se convencionou chamar de stalinismo (embora o culto a alguma personalidade seja parte fundamental).

Luís Carlos Prestes, por exemplo, foi o principal beneficiário do culto a personalidade no movimento comunista brasileiro. Prestes foi o mentor da linha do Manifesto de Agosto, assim como foi um dos mentores –juntamente com Jacob Gorender, Mário Alves e Giocondo Dias—da Declaração de Março e das Teses ao V Congresso.

Em nenhum momento Prestes foi minoritário no Comitê Central. E foi sua maioria que barrou o debate acerca do relatório “secreto”. Se os “stalinistas” eram “os outros”, porque Prestes fez tanta questão de “por ordem” no debate? Se os stalinistas eram os outros, como explicar as manobras que impediram que a minoria elegesse delegados ou tivesse representantes na direção?

O novo grupo dirigente, que se forma em 1957 e se consolida no V Congresso, adota métodos “stalinistas” contra a minoria que criará o PCdoB; e os dissidentes de 1967-68 também receberão o mesmo tratamento.

Ademais, apenas uma minoria da direção do PC –ainda que com postos importantes—foi afastada após 1957. Mesmo que aquela minoria fosse muito comprometida com o stalinismo, mesmo que aceitássemos ter sido esse o motivo de seu afastamento, ainda assim restaria a pergunta: e os que permaneceram na direção, não eram também “stalinistas”?

            Dizer que os que fundaram o PCdoB eram stalinistas; e os que se mantiveram no PCB não o eram é um tour de force. Os métodos e as concepções continuarão semelhantes em ambos os partidos.

O maoísmo

            Vejamos agora o caso da disputa entre soviéticos e chineses. Essa disputa começa nos anos 20, quando os comunistas chineses –orientados pelos soviéticos—participam do Kuomitang e depois realizam uma fracassada insurreição urbana. Um setor minoritário do PCChinês –encabeçado por Mao Tse Tung—defende outra política, baseada no trabalho entre os camponeses, na guerra popular prolongada e no cerco das cidades pelo campo. Só durante a Longa Marcha a posição de Mao torna-se majoritária.


            Entre 1945-49, os soviéticos não acreditam que os chineses vão conseguir tomar o poder. Seu comportamento na Manchúria reflete esta descrença. E, uma vez que o PCCh assume o poder, as relações entre as duas potências comunistas tornam-se progressivamente tensas. Enquanto os soviéticos defendem uma estratégia moderada, os chineses propugnam a ofensiva. Estas divergências foram tornando-se públicas até explodirem, em 1965, com a retirada dos técnicos soviéticos que estavam na China.

É principalmente por isto que o PCChinês –que tinha todos os motivos para criticar Stalin e o stalinismo—reagirá negativamente ao rumo proposto por Kruchev. Afinal, o secretário-geral do PCUS combinava a crítica ao stalinismo com uma política de coexistência pacífica com o capitalismo.

Esta disputa no movimento comunista internacional influenciou, em maior ou menor medida, a luta interna no Partido Comunista no Brasil. Passado algum tempo, o PCdoB alinhar-se-á com o PCChinês contra o PCUS; e proclamará sua adesão à chamada “guerra popular prolongada”. Mas daí a considerar a cisão de 1962 como um reflexo da disputa sino-soviética, vai um grande passo. Como disse o ex-dirigente comunista Apolônio de Carvalho: “Se, depois, eles se orientaram para um contato mais estreito com o PC chinês e foram para outros lados, esse é um problema posterior.”

            Num documento datado de 27/07/1963, o próprio PCdoB afirmaria que “quando se iniciou a discussão no Comitê Central, os camaradas que posteriormente procuraram reorganizar o Partido não conheciam as divergências no movimento comunista mundial. Mais tarde, ao se inteirar da existência de questões controvertidas, ignoravam sua real profundidade”.

            Relacionar mecanicamente as divergências sino-soviéticas à cisão de 1962 é bastante funcional para quem quiser fugir da necessária pesquisa sobre os fatos. Muitas seitas inexpressivas surgem e desaparecem sem deixar vestígios, e são motivadas por influências internacionais. Mas um partido que completou seus 35 anos deve ter suas raízes em fenômenos mais profundos da realidade nacional. São estes fenômenos que podem explicar as ligações do PCdoB com o maoísmo, e não o contrário.

            Aliás, estas ligações devem ser postas sob suspeita. Os fatos posteriores mostram que a influência cubana, na sua versão “foquista”, foi muito mais forte. A esse respeito, aliás, uma curiosidade: o primeiro livro publicado pelo novo Partido, após a cisão de 1962, foi sobre a revolução cubana.

Luta armada

            Finalmente, a disputa entre “via pacífica” e “luta armada”. Evidentemente, este foi um aspecto importante da cisão. Mas não foi o centro da disputa –ao contrário do que ocorreu em 1967-68, com as novas dissidências do PC.

Vejamos o que diz Apolônio Carvalho, um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (Teoria e Debate, abril/junho de 1989): “Houve dois momentos, dois ciclos de ruptura do PCB: 61/62 e 64/67. As origens são as mesmas (...) Havia uma situação de estranheza em relação à política de 45/46, em relação à visão de um caminho pacífico em 56, e essa estranheza de nossa parte foi crescendo a partir de 56. Ela colocou em posição de rebeldia uma parte dos dirigentes que não queriam aceitar a resolução política do XX Congresso. São os dirigentes que depois seriam afastados da direção e mais tarde formariam o PCdoB, mas que eram, em sua quase totalidade, membros do secretariado e da Comissão Executiva do Partido até agosto de 1957. Muitos de nós ficamos numa situação de dúvida, sem alternativa, situação muito penosa, porque imobilista. Nesse momento eu escrevi artigos para a Novos Rumos, mas não contestei de maneira violenta, nem deixei de ter o mesmo caminho anterior. Mas para o João Amazonas, Pedro Pomar, Arroio, eu tinha imenso respeito. Na verdade, eu vacilei. Esses companheiros não negaram o marxismo e o partido de maneira nenhuma. Fizeram uma luta interna limpíssima, aberta, corajosa, decidida, muito positiva... Dentro desse quadro, eu vacilei porque eu tinha uma opinião muito apagada nessa questão. Não estava com eles para deixar o partido e não estava com a orientação do partido. Os companheiros fizeram a contestação, foram extremamente corajosos e lúcidos como militantes na defesa de seus direitos de pensar e criticar... Em 1964 nós daríamos razão a eles. Por que nós não fomos com eles? Porque a alternativa que eles davam não nos convencia, mas também porque tínhamos medo de que eles fossem o reflexo do cisma URSS versus China. Não queríamos entrar nessa bancada. A URSS era o primeiro Estado socialista, era um patrimônio extraordinário dos trabalhadores do mundo. A China também, mas longe nessa questão. Não creio que fosse isto. Se, depois, eles se orientaram para um contato mais estreito com o PC chinês e foram para outros lados, esse é um problema posterior. Naquele momento foi a contestação com absoluto direito. Foi uma posição que eu não soube ter, porque não estava convencido, como eles, da absoluta necessidade de romper por uma alternativa que eles aceitavam, que eu não aceitava ainda... Em 1964, nós fomos fazer o segundo ciclo de ruptura, porque houve um impacto brutal, humilhante, verdadeiramente capaz de estraçalhar a imagem que se tinha do combatente de vanguarda”.

Parte do Comitê Central eleito pelo V Congresso saiu do PCB após o Golpe de 1964, atirando-se à luta armada. É o caso de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira (Ação Libertadora Nacional); Jover Telles, Jacob Gorender e Apolônio de Carvalho (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário).

            Uma série de motivos explica a adesão à luta armada, não apenas como orientação estratégica, mas também como forma imediata de luta. Entre estes motivos podemos citar: o ambiente internacional, em particular o prestígio dos cubanos; a ditadura militar e sua ofensiva contra as lutas de massa e a própria legalidade burguesa; a base social das novas organizações, predominantemente estudantil e “classe média”.

Outros motivos também ajudam a entender porque as diferentes organizações da guerrilha urbana não se reuniram em um único agrupamento ou partido: as diferentes interpretações acerca da luta armada; as diferentes concepções acerca da necessidade ou não de um partido político; as condições de clandestinidade e ditadura militar; a pressa em “partir para a ação”.

            Cabe investigar por quais motivos a crítica à “via pacífica”, feita pioneiramente pela cisão de 1962, não entusiasmou aqueles que a fariam, às vezes com ainda maior voluntarismo, alguns anos depois.

O golpe militar de 1964 desmoralizou, em toda linha, a política do PCBrasileiro. Fora exatamente esta linha que havia sido duramente criticada, desde 1958, pelos que fariam a cisão de 1962. Nesse caso, porque a “autocrítica”, acompanhada pela adoção da luta armada, não resultou numa adesão ao PCdoB?

Quando estudamos os debates travados no PCB, em torno da Declaração de Março de 1958, bem como os debates do V Congresso, pode-se verificar que o centro da crítica dos futuros dissidentes não é exatamente “a via pacífica”, mas sim a subordinação estratégica e tática do PCB à burguesia brasileira, em particular ao governo Juscelino Kubitschek.

            No artigo “Análise marxista ou apologia do capitalismo?”, publicado na Tribuna de Debates do V Congresso do PCB (jornal Novos Rumos de 6 a 12 de maio de 1960), Pedro Pomar diz que a Declaração de Março de 1958 é, “de um modo geral, falsa, nacional-reformista (...) a coexistência pacífica está sendo compreendida, pela direção, como amainamento da luta contra o imperialismo... Diante do desenvolvimento capitalista no país, a Declaração (...) caiu no objetivismo, na exaltação ao capitalismo (...) O desenvolvimento capitalista é um fenômeno objetivo (...) que nas condições brasileiras é progressista. Mas à classe operária e ao Partido incumbe encarar o desenvolvimento capitalista de acordo com seus interesses e suas tarefas revolucionárias e não prosternar-se diante dele (...) Ao constatar o caráter progressista do capitalismo no Brasil, embora na presente etapa a revolução não tenha objetivos socialistas, é profundamente errôneo apresentar ao nosso povo a perspectiva de um desenvolvimento capitalista”.

            Pouco antes, em abril de 1960, Maurício Grabois dirá o seguinte: “Toda orientação estratégica e a linha tática expostas na Declaração têm em vista quase que exclusivamente os interesses da burguesia, conduzem ao fortalecimento de suas posições políticas, em prejuízo das demais forças revolucionárias. Superestima a magnitude e a profundidade da contradição entre a burguesia e o imperialismo, como se a burguesia não pudesse chegar a acordos com os imperialistas”. “A Declaração considera que as forças revolucionárias chegarão ao poder através da acumulação de reformas profundas e consequentes na estrutura econômica e nas instituições políticas. Mas como acumular tais reformas no atual regime e com o poder nas mãos das forças reacionárias?” “Embora, na presente situação do mundo, se deva ter em conta a viabilidade do caminho pacífico, não se pode, nas condições brasileiras, torná-lo absoluto”.
           
O “etapismo”

Desde 1922 até sua mais recente cisão, o Partido Comunista Brasileiro defendeu uma estratégia “etapista” de transformação da sociedade brasileira. Isso podia aparecer explicitamente, como nas resoluções do IV e V congressos. Ou de maneira mais “processual”, como no VIII Congresso (Extraordinário) do PCB, realizado em julho de 1987.

            Na base desta estratégia “etapista” está a idéia de que o socialismo (ou processo de transição ao comunismo) pressupõe que a sociedade capitalista tenha chegado a um certo estágio de desenvolvimento, estágio este que colocaria as “forças produtivas em contradição com as relações de produção capitalistas”. Na maioria dos países do mundo, o estágio seria outro, dadas as condições de atraso econômico (geralmente provocadas pela dominação e exploração imperialistas).

Nesses países, a “primeira etapa” consistiria em transformações de natureza nacional, democrática e popular, cujo efeito principal seria acelerar o desenvolvimento capitalista, ao mesmo tempo em que fortaleceriam os setores populares, em particular a classe operária (que, em muitos casos, seria criada a partir daquelas transformações).

Desta forma, se abriria o caminho para o desenvolvimento capitalista, que num certo ponto produziria contradições agudas que colocariam na ordem do dia, como tarefa imediata, a segunda etapa: a revolução socialista.

            Na verdade, as “revoluções socialistas” vitoriosas não aconteceram nos países mais avançados econômicamente. Mesmo sendo uma das potências mundiais, a Rússia era sem dúvida das mais atrasadas. E não há padrão de comparação possível, no caso de países como China, Vietnã, Coréia, Cuba, Angola, Moçambique etc.

            Em todos estes países, as chamadas tarefas “democráticas, nacionais e populares” foram realizadas concomitantemente à desapropriação dos capitalistas.

Houve debates importantes, no interior do movimento comunista brasileiro, acerca da estratégia (ou, para usar a linguagem mais apropriada, sobre o “caráter da revolução brasileira”). Marcos Ianoni, por exemplo, em sua dissertação de mestrado, distingue três grandes momentos “que dividem, em termos estratégicos, a história do conceito de revolução no PCB: a revolução democrática pequeno-burguesa (1925-1930), a revolução agrária e antiimperialista (1930-1982) e a revolução democrática e nacional”.

Durante os debates preparatórios ao V Congresso, um setor do PC criticava a subordinação dos comunistas à burguesia. A questão da “via pacífica” estava presente, mas como elemento secundário. Entretanto, a evolução posterior do PCdoB inverteu as coisas: a polêmica passou a ser “reforma ou revolução”, luta armada versus pacifismo. E no final das contas, como indica Jacob Gorender (Combate nas Trevas), “o PCdoB manteve a concepção das duas etapas da revolução, o que o identificava ao PCB, por mais que se detestassem”.

A maioria dos rachas sofridos pelo PCB durante os anos 60 incluia, entre as suas motivações, a crítica à subordinação dos comunistas frente a burguesia nacional. De forma impressionante, este aspecto da divergência terminava em segundo plano; logo, a diferença que dominava os debates passava a ser um aspecto da estratégia (luta armada versus via pacífica), da tática (frente única contra a ditadura militar versus ação independente dos trabalhadores), da concepção de partido etc.

            O caso do PCdoB é paradigmático. A crítica que os futuros dissidentes fizeram à estratégia defendida pela Declaração de Março de 1958 e, posteriormente, pelas teses do V Congresso, era muito ampla. Mas em algum lugar do processo, o que era um início de crítica mais profunda tornou-se a defesa de praticamente a mesma linha estratégica do PCB (uma, nacional-reformista; outra, nacional-revolucionária). Hoje, 35 anos depois, o PCdoB tornou-se de fato o continuador do velho partido fundado em 1922 –isto apesar das resoluções de seu último Congresso abandonarem formalmente o etapismo.

Cabe investigar porque a crítica ao etapismo não evoluiu. A nosso ver isto está ligado à força da burguesia brasileira, as características estruturais de nossa sociedade, a precariedade do debate teórico no movimento comunista e a forte influência do nacional-desenvolvimentismo sobre o conjunto do movimento comunista.

            É o que verificamos ao cruzar o estudo da cisão de 1962, com o estudo do desenvolvimento econômico-social brasileiro, principalmente no pós-Segunda Guerra, em particular verificando como os dissidentes viam o estágio de desenvolvimento do país, a influência que recebiam do debate econômico da época e a correspondência existente entre suas proposições programáticas e estratégicas, e o estágio real de desenvolvimento nacional.

            Este é o terceiro motivo que torna relevante o estudo da cisão de 1962: os debates que a precederam questionaram, com maior ou menor profundidade, a visão estratégica do PCB no que tinha de essencial, ou seja, a relação com o capitalismo. Cabe compreender o que se conseguiu naqueles debates, e porque eles não concluíram com a elaboração de uma estratégia alternativa –carência que atravessa até hoje a esquerda brasileira.
             
A hegemonia

            O quarto motivo que torna relevante o estudo da cisão de 1962 é a possibilidade de iluminar alguns dos mecanismos que levaram o PCB a perder a condição de partido hegemônico na esquerda brasileira.

            Durante um longo período, os comunistas foram a principal força entre os socialistas brasileiros. Essa condição começou a ser perdida nos anos 60, com o surgimento de organizações dissidentes e de novas organizações, concorrentes, como a Ação Popular e a Organização Revolucionária Política Operária.

            Durante aproximadamente vinte anos, o PC foi submetido a um processo de definhamento, que resultou –no início dos anos 90—na decisão de mudar o nome para Partido Popular Socialista.

            Com o surgimento do Partido dos Trabalhadores, estabeleceu-se outro centro hegemônico na esquerda brasileira. Isso após duas décadas em que nenhuma organização conseguiu cumprir este papel.

            Hoje, a hegemonia do PT está visivelmente em questão. Ainda é prematuro fazer prognósticos, mas nos parece relevante compreender os mecanismos mais gerais –se realmente existem—da crise da forma-partido hegemônica.

            Estes mecanismos deitam suas raízes nas mudanças ocorridas no capitalismo brasileiro, que se traduzem em alterações na base social da esquerda, nas condições de luta política no país e na esfera internacional, na formação cultural da classe trabalhadora brasileira e num determinado papel do Estado.

            É por terem este pano de fundo comum, que as polêmicas travadas no interior do PT, após as derrotas de 1989 e 1994; das organizações guerrilheiras, após a derrota da luta armada; do PCB, após 1947, 1957 e 1964, possuem um nítido parentesco de forma e conteúdo. O estudo da cisão de 1962 pode contribuir para revelar estes mecanismos.

Outra abordagem

            Nosso estudo sobre a cisão de 62 começa com a análise da situação política, econômica e social do Brasil, nos anos 50, quando condensam-se as contradições que desembocarão no movimento pelas reformas de base e na ditadura militar de 1964.

            Em seguida, concentraremos nosso foco na classe trabalhadora, durante os anos 50. Mostraremos sua evolução social e política, o comportamento de suas organizações sindicais e partidárias, o processo de diferenciação e radicalização da classe trabalhadora e dos setores médios.

Num terceiro momento, estudaremos o comportamento do Partido Comunista durante os anos 50. Mostraremos que o Partido optou por uma estratégia moderada, exatamente num contexto de radicalização crescente da luta política e social no país e no mundo. Disjuntiva que se expressa nos dois marcos da década: o XX Congresso do PCUS (1956) e a revolução cubana (1959).

A seguir, analisaremos o debate travado no interior do Partido Comunista, ao longo dos anos 50, concentrando nossa atenção nos debates do V Congresso do Partido. Mostraremos como o processo de radicalização social refletiu-se no interior do PC, em primeiro lugar sobre aqueles dirigentes que dariam origem ao PCdoB.

Finalmente, analisaremos os documentos aprovados pela Conferência de 1962, mostrando quais as concepções predominantes no novo partido.



V Congresso


A nosso ver, a questão central dos debates do V Congresso do PCB era o caráter do desenvolvimento capitalista no Brasil. Questão diretamente vinculada ao debate sobre a natureza da formação social brasileira.

Esta opinião está longe de ser consensual entre os historiadores que se dedicaram ao estudo deste período do movimento comunista brasileiro. Para a maioria, o centro do V Congresso foi o debate sobre o stalinismo. E, vinculado a isto, a afirmação do “caminho pacífico” para o socialismo, a “valorização da democracia”, a aposta nas reformas estruturais.

A maioria dos historiadores considera, ainda, que o principal equívoco do PCB, ao analisar a sociedade brasileira, estava em enxergar nela traços de feudalismo. Por isto mesmo, há uma quase unanimidade em apontar na obra de Caio Prado Jr. –em particular n’A revolução brasileira--.um contraponto à visão dominante. Contraponto que insistia no caráter plenamente capitalista do Brasil.

Nos parece que nessa apreciação há duas meias verdades. A caracterização da sociedade brasileira como “feudal” era uma forma caricata, mas apenas uma forma, através da qual transparecia a leitura que o PC fazia da formação social brasileira. Por outro lado, o desenvolvimento do capitalismo no Brasil tinha particularidades tremendas, não sendo redutível a nenhuma definição demasiado sintética.

Ocorre que uns e outros concordavam que o desenvolvimento do capitalismo brasileiro enfrentava “obstáculos”. Esta idéia, diretamente tributária da famosa “sequência de modos de produção”, era compartilhada por Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Jr. e Celso Furtado, e permanece viva até hoje na esquerda brasileira.

Haveria um desenvolvimento “ideal” do capitalismo brasileiro, que enfrentaria os obstáculos do feudalismo e do imperialismo, para uns; do latifúndio e da dependência externa, para outros; e assim por diante. A remoção destes obstáculos, via socialismo, revolução democrático-burguesa, reformas de base ou política desenvolvimentista, era a condição sine qua non do desenvolvimento no Brasil.

            A maior parte da esquerda acreditava que não haveria desenvolvimento algum –socialista ou capitalista-- caso o Brasil não conseguisse ampliar o mercado interno, superar o imperialismo e o latifúndio. Assim, aos “obstáculos” somava-se a idéia da “estagnação”. Esta é a base teórica comum que unia esquerda desenvolvimentista e os comunistas, das mais variadas extrações.

Em Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado Jr. chega a dizer o seguinte sobre a fase final da economia colonial: “achamo-nos em presença de uma economia constituída na base da exploração e exploração precipitada e extensiva dos recursos naturais de um território virgem, para abastecer o comércio internacional de alguns gêneros tropicais e metais preciosos de grande valor comercial. É esta, em última análise, a substância da nossa economia colonial (...) Tal base, com o desenvolvimento da população, com o concurso de outros fatores vários, se torna, através do tempo, restrita e incapaz de sustentar a estrutura que sobre ela se formara. Suficiente de início, e ainda por muito tempo para prover aos fins precípuos da colonização—a ocupação do território, o aproveitamento dele com um relativo equilíbrio econômico e social; para promover, enfim, o progresso das forças produtivas--, aquela base acabou por se tornar insuficiente para manter a estrutura social que sobre ela se constituíra (...) tal insuficiência se verifica pelos resultados a que levara aquele desdobramento, e que acumulados, tornavam iminente, na fase que nos ocupa, uma desagregação completa, senão a paralisação da vida do país”.

Portanto, o desenvolvimento produzira uma estrutura “pesada” demais: esta seria a materialização, no Brasil colonial, da contradição entre forças produtivas e relações de produção. Mas o motor desta contradição não seriam as forças produtivas, cujo desenvolvimento seria obstaculizado pelas relações de produção. Ao contrário, no esquema de Caio Prado, estaria em curso uma “desagregação completa”.

A partir do binômio obstáculos/estagnação, a esquerda brasileira dividia-se em torno de três grandes debates: Reforma ou revolução? Aliança ou não com a “burguesia nacional”? Capitalismo ou socialismo?

            Os partidários do socialismo como objetivo estratégico imediato, sem a “etapa” prévia da revolução democrático-burguesa, o faziam a partir da disjuntiva luxemburguiana do socialismo ou barbárie; ou a partir da subdesenvolvimentismo de matriz trotskista, segundo o qual as forças produtivas na periferia haviam cessado ou simplesmente não tinham como crescer.

            Num ou noutro caso, a saída socialista era posta na ordem do dia por um capitalismo que apodrecia, por não conseguir superar os “obstáculos” do mercado interno restrito.

            Os partidários da aliança com a burguesia nacional, o faziam a partir da idéia de que esta bu
rguesia estaria disposta a somar-se na superação daqueles obstáculos. E os que defendiam as reformas, o faziam na mesma perspectiva –animados, naturalmente, por uma conjuntura em que frações da burguesia pareciam comprometidas com o desenvolvimento nacional, com a ampliação do mercado interno e com as próprias reformas (Vargas, JK, Jango).


            As diferentes análises sobre o que foi o golpe de 1964 repousam, da mesma forma, sob uma base comum. A direção do PCB, num primeiro momento, enxergou no golpe militar um ato do latifúndio e do imperialismo, contra os setores populares e a burguesia industrial. E o comunismo de esquerda viu no golpe a confirmação de que seria impossível um desenvolvimento industrial no Brasil, através da luta pacífica e reformista.

            Mesmo que as conclusões táticas fossem opostas, a base do raciocínio era a mesma: a incompatibilidade entre latifúndio, imperialismo e desenvolvimento industrial.

            Esta incompatibilidade foi questionada por duas obras de Fernando Henrique Cardoso: Empresário industrial e desenvolvimento econômico e Dependência e desenvolvimento na América Latina. Questionamento que, contudo, manteve a ambiguidade da tese comunista, ainda que de maneira invertida –mas isto já é outra história.

Com o golpe militar, a esquerda revolucionária passou a ver o futuro na forma de disjuntivas como: socialismo ou fascismo, colônia ou libertação nacional, estagnação ou revolução. Como o capitalismo estaria "bloqueado", sem condições de continuar hegemonizando as massas, aquela mesma esquerda lançou-se à luta armada.

O desfecho é conhecido: não se enfrentou as questões do latifúndio e do imperialismo, o mercado continuou restrito e, exatamente por isto, houve desenvolvimento. Quanto a burguesia, esta manteve sua hegemonia, além de isolar e massacrar a esquerda revolucionária.
           
            É sabido que a coruja de Minerva alça vôo depois do por-do-sol. Foi só nos anos 60 e 70 que o debate sobre a formação social brasileira ganhou densidade, se traduzindo em obras como: A revolução brasileira, de Caio Prado Jr.; Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, de Celso Furtado; O capitalismo tardio, de João Manuel Cardoso de Mello; O escravismo colonial, de Jacob Gorender; e tantas outras, como as reflexões de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Otávio Ianni e Fernando Novais.

Em geral, tais obras deitam raízes nos anos 50. Em que medida o debate sobre a formação social brasileira esteve presente nas discussões que precederam a cisão do PCB e a fundação do PCdoB? Mutatis mutandis, em que medida a discussão entre os comunistas influenciou o debate sobre a formação social brasileira?

            Embora em alguns momentos as relações entre o PC e a intelectualidade tenham sido bastante intensas, de uma forma geral o Partido Comunista parece ter sido pouco permeável à influência direta da intelectualidade brasileira.

            Este é o depoimento quase unânime dos que viveram aquele período. Portanto, para detectarmos a influência, sobre o movimento comunista brasileiro, do debate acerca da formação social brasileira, realizado contemporaneamente por intelectuais como Caio Prado Jr., Celso Furtado e Nelson Werneck Sodré, será necessário pesquisar principalmente as referências indiretas, em particular na Tribuna de Debates do V Congresso. Pesquisa que deve concentrar-se em torno de quatro temas:

A existência ou não de feudalismo na sociedade brasileira, bem como qual o papel da escravidão. Nelson Werneck Sodré e Caio Prado Jr., dois intelectuais que abordaram o assunto de um ângulo diverso, eram ligados ao Partido Comunista.

A natureza do processo colonizador e a sua extensão temporal (que para alguns prosseguiu bastante tempo depois da independência formal do país). A ênfase na dominação e exploração “externas” é um guarda-chuva teórico sobre o qual abrigavam-se as teses acerca do mercado interno, do desenvolvimento “voltado para dentro” e outras similares.

As reflexões feitas por Fernando Novais, no início dos anos 70 (Estrutura e dinâmica do antigo sistema colonial) lançam luz sobre o problema: “a colonização tinha um caráter essencialmente comercial, voltada para fora, mas, para além disso, compunha um mecanismo de estímulo à acumulação primitiva de capital mercantil autônomo no centro do sistema. A externalidade da acumulação aparece, pois, nesta análise, como a estrutura básica, no plano econômico, definidora da colonização” (...) “Acumulação para fora, externa, refere-se à tendência dominante do processo de acumulação, não evidentemente à sua exclusividade; é claro que alguma porção do excedente devia permanecer (‘capital residente’) na Colônia, do contrário não haveria reprodução do sistema. Não se trata, desde logo, de uma formação social capitalista que se elabora sem acumulação originária; mas com um nível baixo dessa acumulação. Externalidade da acumulação originária de capital comercial autônomo refere-se à área de produção (as colônias) em direção às metrópoles; nada tem a ver com um processo externo ao sistema, que envolve por definição metrópoles e colônias. Não cabe, portanto, a increpação de obsessão com as relações externas (porque não estamos falando de nada externo ao sistema), nem de desprezo pelas articulações internas, pois estas não são incompatíveis com aquelas; trata-se, simplesmente, de enfatizar um ou outro lado, de acordo com os objetivos da análise”.

O binômio nação/colônia, bem como a disjuntiva desenvolvimento/dependência, presente tanto nas obras do Iseb quanto na de Caio Prado Jr., sustentava-se exatamente em não perceber que “o crescimento do mercado interno é, pelo contrário, uma decorrência do funcionamento do sistema, ou, se quiserem, a sua dialética negadora estrutural.” Politicamente, esta dialética implicaria numa independência feita pelas mãos da coroa portuguesa; uma república patrocinada pelo latifúndio etc.

O papel do latifúndio e, vinculado a ele, dos setores sociais intermediários. Referimo-nos a tendência à não percepção de que a propriedade latifundiária (como, hoje, o capital monopolista industrial) não apenas destruia, mas também criava e recriava formas de pequena e média propriedade. E que, portanto, a contradição entre elas não era tão simples e direta.

A burguesia brasileira e sua participação nas lutas políticas do século XX, em particular a revolução de 30 e o processo de industrialização posterior.
           
A crítica ao etapismo não evoluiu, entre os dissidentes do PCB, basicamente porque a matriz teórica permaneceu a mesma: a idéia de que haveriam “obstáculos” ao desenvolvimento capitalista brasileiro, sem cuja superação não haveria desenvolvimento, leia-se, industrialização.

            A predominância destas idéias revela a enorme força da burguesia brasileira, que transformou os seus problemas de crescimento, nos problemas de fundo da sociedade brasileira. O desenvolvimentismo foi a expressão desta hegemonia.

Isso foi facilitado pelas características estruturais de nossa sociedade –para quem o desenvolvimento e a industrialização representaram, para alguns setores, uma enorme oportunidade de ascensão social. 

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