Num artigo intitulado "Um marxismo anacrônico" [de 12 de fevereiro de 2007], Louise Caroline, Vinicius Wu e Alberto Kopittke me acusam de ter somado forças com o "setor mais reacionário do antigo campo majoritário em sua apressada tentativa de desqualificar o documento e, por conseqüência, a própria tese da Refundação defendida por seus signatários".
A acusação é curiosamente reveladora.
Primeiro: se há um setor "mais reacionário" do campo majoritário, então haveria um setor "menos reacionário"? Segundo: se os signatários defendem a tese da “refundação”, por qual motivo esta tese desapareceu da versão final da "Mensagem"? Terceiro: se a "Mensagem ao Partido" pretendia construir um "novo espaço de diálogo partidário", por qual motivo os dois companheiros e a companheira interpretaram minhas opiniões como "desqualificação"?
No texto "Os 7 pontos capitais" eu disse que a “Mensagem ao Partido” apresenta “de maneira bastante otimista as perspectivas do Brasil e do PT. Reafirma teses que fazem parte do patrimônio intelectual do Partido, não apenas dos signatários. E incorpora positivamente questões (como o controle de entrada e saída de capitais), que até o PED de 2005 tinham muitos detratores e poucos defensores".
Disse, também, que a versão final da “Mensagem” manteve "uma abordagem insuficiente, inadequada e/ou incorreta de uma série de questões". Dizer isto desqualifica o texto? No diálogo que os companheiros pregam só vale concordar?
Lembro ainda que tomei o cuidado de dizer que "não pretendemos fazer cobranças excessivamente rigorosas de um manifesto. Claro, também, que um texto assinado por setores tão diversos tende a buscar sínteses e acomodar divergências. Entretanto, como estamos num processo de Congresso, é imperioso debater as idéias ali contidas, inclusive na expectativa de que seus signatários incorporem as críticas e observações; ou que nos demonstrem melhor o acerto de suas posições".
Wu, Caroline e Kopittke não incorporaram nenhuma das críticas e observações que fiz. É seu direito. Ademais, optaram por abordar apenas um, dos sete pontos críticos que aponto na minha crítica à "Mensagem": o republicanismo.
Deixaram de lado, portanto, as seguintes questões citadas no texto “Os 7 pontos capitais”: o balanço do primeiro mandato de Lula; a análise da tradição socialista internacional; o lugar do PT na tradição socialista brasileira e internacional; renda, riqueza e poder; populismo e imperialismo; e a organização partidária.
Não me surpreendo com a opção por tratar apenas do "republicanismo". Afinal, a própria "Mensagem" deixa claro que a “incorporação radical de valores republicanos na formulação do socialismo petista é um fundamento programático essencial na nossa proposta de reconstrução partidária”.
Segundo Wu, Caroline e Kopittke, meus argumentos são teóricamente "frágeis" e sustentados por uma leitura "anacrônica" e "defasada" da teoria marxista. Acho que no fundamental eles têm razão.
Como tantos outros dirigentes do PT, tenho enormes debilidades teóricas. E como ultimamente tenho lido muito pouco, meu conhecimento do marxismo é cada vez mais defasado, o que faz com que minhas referências teóricas sejam, na maioria dos casos, as que construí há 25 anos.
Exatamente por isto, não entendo por que Wu, Caroline e Kopittke precisaram apelar para o velho recurso de caricaturizar meu pensamento, para depois espancar com mais facilidade a caricatura.
Por exemplo: os três afirmam que eu chego "mesmo a rejeitar a idéia de que a defesa de valores socialistas deva ocupar um lugar central em uma estratégia de poder da esquerda contemporânea".
Gostaria que os três apontassem onde é que eu cometo esta barbaridade! Se isto fosse verdade, por qual motivo eu critico –noutra passagem do texto- o “abandono do ideário socialista”???
O que eu disse e repito é que "o termo "valores" tem sido usado por algumas correntes com o propósito de sublimar a necessidade de transformações reais, objetivas, materiais. Na formulação destas correntes, vão desaparecendo termos como "socialização dos meios de produção". No seu lugar, aparece a vontade política de introduzir "valores" socialistas no capitalismo realmente existente".
Isto por acaso é mentira? Existem ou não estas correntes? Fazem ou não aquilo que eu aponto nas frases acima?
Ao contrário do que afirmam os três, eu não concebo o socialismo "como um mero modelo econômico alternativo ao capitalismo". E não acho que "socialismo é socialização dos meios de produção e ponto final".
Novamente, peço que os três mostrem algum texto meu, onde defenda este tipo de besteira. Duvido que achem. Mesmo assim, não atribuo aos companheiros má fé, “anacronismo” ou “fragilidade teórica”. Do meu ponto de vista, as críticas equivocadas que os três me dirigem têm uma causa mais simples e anterior às divergências teóricas reais que temos: falhas lógicas na interpretação do texto.
Dizendo de maneira mais direta: eles não entenderam o que leram. Vou dar, a seguir, alguns exemplos disto.
Os três dizem assim: “ao que tudo indica o autor das criticas permanece encarando a democracia como um valor instrumental, tático, e não como um elemento fundante de um projeto socialista contemporâneo”.
Ao que tudo indica? Mas onde é que está o tudo que indicaria isto?
Segundo entendi, estaria no fato de eu acusar o “Manifesto” “de possuir dois genes: um, recessivo, é socialista; outro, dominante, é democrático”.
Para os três, eu dissociaria democracia de socialismo; e trataria de ambos "em tempos diferenciados".
Primeiro, quero lembrar aos três que, na história, a democracia precede o socialismo; e que há correntes e experiências socialistas, mas não democráticas.
É exatamente pelo fato de que as duas coisas não andam automaticamente juntas, é que devemos defender um socialismo democrático. Pois se toda democracia fosse socialista e todo socialismo fosse democrático, por qual motivo deveríamos nos preocupar com o tema?
O erro de interpretação dos companheiros é agravado por uma citação incompleta do meu texto “Alguns comentários sobre uma ‘Mensagem’".
Nesse texto eu afirmo o seguinte: “Podemos dizer que a “Mensagem” expressa e combina dois genes: um, recessivo, é socialista; outro, dominante, é democrático. Democrático, aqui, no sentido clássico da palavra, ou seja: democrático-burguês”.
Podemos traduzir assim o raciocínio: a Mensagem expressa e combina dois genes. Um, recessivo, é socialista democrático; outro, dominante, é democrático-liberal.
Defender o socialismo democrático não nos obriga a defender que a democracia seja um “valor universal”.
Para Wu, Caroline e Kopittke, isto parece soar como uma monstruosidade, uma “postura anacrônica, autoritária que está na base do colapso das experiências do chamado “socialismo real” no século XX”. Para eles, “minha opinião a respeito remonta às teses dos partidos comunistas da primeira metade do século passado”.
Não entendi se os companheiros ficaram incomodados com o fato de eu defender teses comunistas; ou com o fato de eu defender teses que já circulavam na primeira metade do século passado; ou se com ambas as coisas.
Seja como for, esclareço que minha opinião a esse respeito é, no fundamental e com pequenos reparos, a que eu já defendia em novembro de 1990, numa carta publicada pela Teoria & Debate número 12. Nesta carta eu dizia o seguinte:
“(...) a democracia que temos no Brasil não é universal, não é igual para todos. Nem na lei, que faz com que alguns sejam mais iguais que os outros, nem na prática, onde a falta de democracia social e econômica faz da democracia política algo relativo.
O fato de a democracia que temos não ser universal (para todos) não quer dizer que ela é inútil para os trabalhadores. Ao contrário. A luta dos trabalhadores é responsável por tudo o que há de verdadeiramente democrático, universal, para todos, na democracia brasileira. E estas conquistas (contra a burguesia e ameaçadas cotidianamente por ela) estão na base de muitas outras vitórias.
Apesar de tais conquistas, a democracia existente no Brasil persiste desigual, restritiva, particular, para poucos... burguesa.
Isso não nos permite ‘identificar a noção de democracia com democracia burguesa’. Afinal, se é verdade que o capitalismo impõe restrições de todos os tipos à democracia, é verdade também que a luta democrática dos trabalhadores busca dar à democracia um conteúdo universal.
Logo, não podemos identificar, igualar, confundir, estes dois ‘tipos’ de democracia, seja dizendo toda democracia é burguesa, seja dizendo que qualquer democracia é “universal”.
A democracia que os trabalhadores querem conquistar é universal, para todos, igualitária sócio-econômica e politicamente. E só os trabalhadores podem lutar de verdade por uma democracia universal, porque só eles não têm nada a perder com isto.
Por isso é que podemos dizer que só haverá real democracia no socialismo, e que não haverá socialismo sem democracia. Poderíamos acrescentar ainda que a luta pela democracia é permanente; e que enquanto a sociedade estiver dividida em classes sociais, mesmo a mais ampla democracia não será universal, ainda não será para todos”.
Relendo este texto, 16 anos e alguns meses depois, eu só faria um reparo: quando digo que só haverá "real democracia no socialismo, e que não haverá socialismo sem democracia", o mais correto seria utilizar o termo socialismo avançado ou comunismo. Pois na etapa inicial da construção do socialismo, continuarão existindo classes sociais, portanto desigualdades, inclusive políticas.
Outro exemplo de que Wu, Caroline e Kopittke não entenderam o que leram está na seguinte passagem: a "emergência de novos valores; profunda reforma moral e intelectual; superação das necessidades alienantes da sociedade de classes; eliminação das opressões de gênero, raça e orientação sexual, nada disto consta do “programa” socialista defendido por Valter. Pelo menos é isso que se pode concluir de uma opinião tão refratária à utilização do termo “valores” por parte do “texto Tarso/DS” ".
É isso que se pode concluir? Ocorre que de uma afirmação não decorre a outra.
Falando diretamente: não aceitar os "valores republicanos" que a "Mensagem" nos propõe, não implica em defender um socialismo das cavernas!!!
Defender que a "democracia, participação política, cidadania e controle social" fazem parte da agenda socialista, não nos obriga a aceitar a tese da “incorporação radical de valores republicanos na formulação do socialismo petista”.
Por trás da opção pelo termo “valores republicanos”, existe uma determinada chave de leitura acerca do que foi a luta pela democracia no século XIX e no século XX; e, portanto, acerca da relação entre liberalismo e socialismo, no século XXI.
Do meu ponto de vista, esta chave de leitura, adotada pelos autores da "Mensagem", não estabelece as distinções necessárias, do ponto de vista teórico e do ponto de vista histórico, entre democracia, socialismo e liberalismo.
Eu compartilho de outra chave de leitura, segundo a qual o movimento socialista é o herdeiro das grandes lutas democráticas que marcaram o século XVIII e a primeira metade do século XIX, lutas que foram travadas contra as correntes liberais.
Várias correntes, bem como várias tentativas de construir uma sociedade pós-capitalista no século XX, não deram o valor devido para os vínculos entre socialismo e democracia.
É por isso que o PT (e tantas outras correntes) precisam se apresentar como adeptas do socialismo democrático. Sendo assim, os signatários da "Mensagem" precisam explicar o que pretendem adicionar a este “socialismo democrático”, quando defendem uma “incorporação radical de valores republicanos na formulação do socialismo petista”?
Na minha opinião, sob o apelido de “valores republicanos”, o que alguns pretendem adicionar são valores liberais, no sentido mais profundo da palavra. Outros, é claro, podem estar comprando gato por lebre.
Um exemplo destes valores liberais “profundos”: a redução da democracia a um método de tomada de decisões. Outro exemplo: considerar a "liberdade" do proprietário dos meios de produção, liberdade no sentido de dispor livremente destes meios de produção, como uma das liberdades democráticas fundamentais.
Não acho, portanto, que tenha cometido uma "profunda derrapada teórica", não diferenciando "liberalismo econômico de liberalismo político", argumentando contra "liberalismo ético e o republicanismo como se Milton Friedman e Noberto Bobbio pertencessem a um mesmo campo!"
Claro que há diferenças no interior do liberalismo, como também há no interior do socialismo. Mas também há semelhanças. E, por isso, ao menos num plano de análise mais geral, as correntes que se identificam com o liberalismo pertencem sim a um mesmo campo. É por isso, aliás, que as tentativas de combinar liberalismo com socialismo padecem de contradições insanáveis.
Um terceiro exemplo de falha lógica na interpretação que os três fazem do meu texto está no seguinte trecho: “Para o Secretário de Relações Internacionais do partido, a origem da crise está no “abandono do ideário socialista e a adesão à estratégia de centro-esquerda”. A adoção de uma estratégia eleitoral explicaria, por si só, todas as dimensões da atual crise vivida pelo partido. Ou, em outras palavras, se nosso programa ainda fosse “socialista” e “revolucionário”, estaríamos imunes a toda pressão exercida pelo Estado burguês e pelo mercado sobre as organizações políticas dos trabalhadores. Se o programa é de esquerda, o debate sobre ética e compromisso republicano é inócuo, inválido, desnecessário.”
Neste ponto, terei que apelar para o método ta-ti-bi-ta-ti. Vejamos: meu texto aponta duas origens para a crise de 2005. Uma delas seria o abandono do ideário socialista e a outra seria a adesão à estratégia de centro-esquerda.
Apesar disso, Wu, Caroline e Kopittke me atribuem o seguinte raciocínio: “a adoção de uma estratégia eleitoral explicaria, por si só, todas as dimensões da atual crise vivida pelo partido”!!!
Como “por si só”, se no meu texto, que eles citam, eu aponto explicitamente duas questões????
Em seguida, os três dizem o seguinte: “Ou, em outras palavras, se nosso programa ainda fosse ‘socialista’ e “revolucionário”, estaríamos imunes a toda pressão exercia pelo Estado burguês e pelo mercado”.
Como, em outras palavras??? O que eu disse resulta permitiria aos três chegarem à conclusão exatamente oposta, ou seja, que ao rebaixamos o programa e adotarmos uma estratégia eleitoral, estaríamos criando as condições para ampliar as pressões do “Estado burguês e do mercado”.
Portanto, em outras palavras, não nos adiantaria ter “o programa certo”, com aquela estratégia; como não adiantaria ter “a estratégia certa”, com aquele programa. Registre-se que, no caso concreto, tivemos o programa “errado” e a estratégia “errada”.
Mais adiante, os companheiros e a companheira chegam a dizer que eu não compreendo que “os partidos de esquerda, as centrais sindicais, as entidades e movimentos representativos da classe trabalhadora reproduzem, em maior ou menor grau, em seu meio as contradições, os impasses e aspectos repressivos que existem do lado de fora, na sociedade, e sofrem, permanentemente, o risco de cooptação e adaptação à ordem burguesa. Não basta ter um programa socialista para que um partido se credencie como o repositário da ética e da moralidade publica”.
Este tipo de raciocínio me passa a impressão que os companheiros me tomam por estúpido. Por coincidência, meu doutorado na USP foi dedicado exatamente a discutir os mecanismos através dos quais a hegemonia burguesa se introduz e é interiorizada pelas organizações de esquerda.
É óbvio, para mim, que não basta ter um programa socialista para que um partido se credencie como o repositário da ética e da moralidade publica”. Mas é óbvio, também, que a perda de perspectiva socialista e o abandono de referências “éticas” são processos interligados.
Um quarto exemplo de incompreensão de texto é o seguinte trecho: “Naturalmente, nosso dirigente também não está de acordo com a leitura de que a certeza na inexorabilidade das “leis da historia” conduziu o marxismo soviético à crença na infalibilidade do partido da classe operária e que, de modo semelhante, alguns dos nossos, em meio à certeza absoluta de estarem fazendo o “melhor” para a vida do povo, esqueceram-se de moldar os parâmetros éticos e morais de sua prática política".
Naturalmente??? Com base no que os três chegaram a esta conclusão?
O que afirmo é que a prática política social-democrata também revelou parâmetros éticos e morais problemáticos. A corrupção, o mandonismo e outras características deste tipo não são privativas, portanto, de uma das “famílias” do movimento socialista. E a idéia segundo a qual “os fins justificam os meios” é bem anterior ao movimento socialista.
Quem quiser fazer profissão de fé anti-Lênin, que o faça. Mas a honestidade intelectual manda reconhecer que os principais responsáveis pela crise de 2005 nunca foram leninistas e/ou que romperam com as concepções leninistas há muito tempo. Insisto: não é preciso de Lênin para entender o que se passou no PT, desde 2005.
Por fim: agradeço aos companheiros Wu e Kopittke e à companheira Louise a atenção que deram ao meu texto. Só lamento que tenham gasto tanto tempo requentando um tipo de argumentação que era muito comum no início dos anos 1990, mas que hoje soa anacrônica. Afinal, a principal ameaça que paira sobre o PT não é o "socialismo dogmático", mas sim o pragmatismo de tipo social-democrata.
Nenhum comentário:
Postar um comentário