domingo, 11 de setembro de 2011

Gilney ataca novamente


Conforme explicado no começo de tudo, meu principal objetivo com este blog era tornar disponíveis textos escritos ao longo dos últimos anos.
É o caso deste, intitulado "Gilney ataca novamente", escrito em 25 de março de 1990, como parte dos debates travados na velha Articulação.
A seguir, o texto, mais de vinte anos depois.


Nosso amigo Gilney Amorin Viana apresentou dois textos ao seminário nacional da articulação: "Contribuição para uma política de organização partidária" e "Sem medo de errar".

Se consegui entender a idéia central desenvolvida no "Sem medo de errar", Gilney repudia os modelos estratégicos aplicados noutras paragens por compreender que o Brasil é um pais diferente.

Diferente das sociedades onde se conseguiu fazer revoluçõe socia­listas vitoriosas, daquelas onde não chegou a haver revoluções ou onde  aconteceram tentativas derrotadas.

Partindo deste fato, cabe a nós elaborar uma teoria, uma estratégia apropriada a nossa situação particular. Concordo com esta idéia bási­ca, que aliás não é nem um pouco nova. Mas o problema é que Gilney não para aqui.

Para ele, há duas grandes vertentes estratégicas de onde se pode partir para esta elaboração: a estratégia revolucionária de minoria e a estratégia revolucionária da maioria. Como não podia deixar de ser, ele se declara adepto dos "majoritários" e pontifica a respeito.

Primeiro, enfia leninistas, social-democratas, golpistas e quetais no mesmo saco dos "minoritários". 

Depois, explica que a "estratégia' revolucionária da maioria" exige que a luta de classe percorra e preencha uma série de condições antes de se assumir o poder.

E conclui desenvolvendo os elementos conceituais do partido de mas­sa, da estratégia revolucionária da maioria e do socialismo democrático.

Apesar das contribuições positivas, sou de opinião que Gilney nos vende gato por lebre. Suas explicações não têm tanto fundamento histórico quanto ele sugere; sua estratégia não dá conta de resolver nossos problemas; e, ademais, representa um corte em relação a linha de elaboração que estamos seguindo nesses últimos anos. Falando curto, acho que ele reintroduz os "modelitos" que tanto critica.

Vou tentar mostrar isto, morrendo de medo de errar, porque afinal de contas todos sabemos que por detrás do bagrinho esconde-se um perigoso jaú.

Na teoria as coisas parecem tão fáceis...

Para Gilney, a estratégia majoritária "exige que a luta de classes percorra e preencha uma série de condições antes de se assumir o po­der". Tri-legal, resta agora combinar com os gringos para que tudo saia nos trinques.

Afinal, na história real as revoluções ocorrem sempre "antes" da luta de classes "preencher e percorrer" as tais condições. Mais ainda: para preencher e percorrer completamente as tais condições é preciso que haja revolução.

Basta olhar algo bem mais singelo: as eleições municipais. Vencemos "antes" ou "depois" de estarmos (partido e classe) preparados? Outro exemplo: estávamos "preparados" para vencer as eleições presidenciais? Para azar dos revolucionários, o ritmo de organização do partido e da própria classe é sempre inferior ao necessário. Ou, falando de outro jeito, as condições que nos permitem assumir o poder surgem sempre antes do momento ideal.

O problema, portanto, não pode ser resolvido desta maneira. Afinal, caso o cavalo passe encilhado, das duas uma: ou montamos (com ou sem as tais "condições") ou deixamos o cavalo passar, já que as tais condições não estão preenchidas.

A opção dos partidos reformistas foi não montar. A opção dos parti­dos revolucionãrios foi montar. As vezes eles se deram mal. Mas é sempre melhor ser derrotado na luta do que não lutar.

Do que adianta o modelito apresentado com tanto garbo por Gilney? Ele nos resolve o problema? Nos indica uma solução adequada? Sinceramente, acho que não.

Se Gilney tivesse dito que nossa estratégia visa acumular forças, o máximo de forças possivel, antes de "assumir o poder", eu concordaria com ele. Mas Gilney prefere exigir da luta de classes uma série de condições.

São cinco as condições: um longo acúmulo de experiências na luta de massas, por parte da classe trabalhadora; a elevação do nivel cultural e político da classe trabalhadora; quebrar a hegemonia ideológica da burguesia sobre a maioria da classe trabalhadora; a "tomada do poder", como ação da maioria da classe trabalhadora; a vanguarda (que não deve ser confundida/reduzida ao partido) não pode tomar o lugar das massas.

Naturalmente, ninguém vai discordar dessas cinco condições. De novo, o problema é outro: tais condições são "preenchidas" antes, durante e depois da tomada do poder. Logo, não há nenhuma regra que nos permita dizer: "agora pode tomar o poder, agora não".

Um exemplo. Quebrar a hegemonia ideológica da burguesia sobre a classe trabalhadora é um trabalho de décadas. Enquanto existir burguesia dominando, faz-se necessário lutar pelo fim de sua hegemonia. 

Mesmo depois da tomada do poder, continua sendo necessário lutar contra a ideologia burguesa.
As revoluções ocorrem antes desse processo estar terminado. Mais ainda: as revoluções são parte fundamental do processo de destruição da hegemonia ideológica e política da burguesia sobre a sociedade.

Gilney sugere que primeiro se deve quebrar a hegemonia burguesa para depois se "assumir" o poder. Isto é uma tolice: na vida real, a hegemonia burguesa é em parte quebrada antes, em parte durante e em parte depois da revolução. As massas só se tornam socialistas ao longo da luta pelo socialismo.

Na verdade, Gilney critica os "modelitos de Lenin e Trotsky" por ciúmes. Porque o que ele nos apresenta é um modelo pior, semelhante ao da intelectualidade acadêmica, que adora pontificar acerca do "momento", sobre se ele é propício ou não para a tomada do poder.

Mesmo porque essa decisão não cabe à vanguarda, cabe às massas. Alias, Gilney reconhece isto: "históricamente só tem acontecido, de alguma vanguarda se capacitar a dirigir as massas num processo revolucionário, quando as próprias massas já desenvolvem as ações revolucionárias".

Genial. Logo, o que as vanguardas fazem é tentar criar o máximo de condições ideais possiveis antes que as massas passem às ações revolucionárias. Mas a vanguarda não deve considerar estas condições como uma muralha da China que defina se as massas podem ou não se lançar a uma ação revolucionária. Na história, como já disse, o que tem ocorrido é que as massas se lançam ao assalto dos céus sempre antes da "hora ideal".

É nesses momentos que a gente consegue ver quem é quem entre os revolucionários. Aqueles que têm compromisso com suas teorias fi­carão em casa, escrevendo longos artigos para provar que ainda não estamos prontos. Os que têm compromisso com a massa estarão junto dela, mesmo quando acham que não vai dar certo. Gilney, claro, jogará fora seus textos e ficará do lado certo.

Um corte teórico

No início deste artigo eu disse que Giiney havia realizado um corte teórico em relação à linha do 5º encontro [nacional do PT, realizado em 1987]. Vou explicar porque acho isto.

Em primeiro lugar, me parece que sua estratégia da maioria abandona o conceito de acúmulo de forças. Esta noção é fundamental e­xatamente porque expressa processualidade, ou seja, acumularemos enquanto for possivel e necessário. Não há nenhum indice mágico que nos permita dizer que o acúmulo se completou, ou o contrário.

A grande vantagem da noção de acúmulo de forças é exatamente o caráter dinâmico, não dogmático, do conceito. Gilney substitui as vantagens do acúmulo pelas desvantagens das "pré-condições" e "exigências" feitas à luta de classes.

Em segundo lugar, Gilney rompe a linha de continuidade ao não fazer nenhuma referência ao caráter estratégico da politica de a­lianças, a importância de ganhar os setores médios, a composição social da tal "maioria".

Em terceiro lugar, Gilney abandona o conceito de alternativa democrática e popular, que se firmou no 5º encontro e se confirmou na campanha Lula.

Acho que Gilney tem todo o direito de não dar continuidade a linha de elaboração que seguimos até agora. Mas ele poderia nos avisar, dizer se é isso mesmo ou apenas impressão, se ele concorda ou discorda do que vinha sendo falado antes etc.. Só não pode é desconsiderar a questão.

Dito isto, eu queria falar um pouco mais sobre o problema do acúmulo de forças. As correntes esquerdistas do Partido sempre insistiram que este conceito visava abandonar a perspectiva revolucionária.Afinal, diziam eles, voce acumula, acumula, acumula e nunca sabe qual é a hora de parar de acumular.

Como é óbvio, os esquerdistas nunca ofereceram alternativa a altura, porque de fato não é possivel saber a priori quando se oferece­rá para os trabalhadores uma oportunidade de ruptura. O máximo que sabemos é que caso essa oportunidade se ofereça, a aproveitaremos bem ou mal dependendo do quanto tivermos acumulado antes.

Por isto mesmo é que afirmamos o caráter revolucionário da conso­lidação do sindicalismo combativo, da ampliação da luta pela terra, da politização da sociedade, da multiplicação das organizações populares. Sabemos que é isto que determinará nossas chances quando se oferecer uma oportunidade.

O conceito de acúmulo de forças explicita exatamente este sentido processual da luta de classes, seu caráter dinâmico. Gilney se afasta deste entendimento não porque deixa de utilizar o termo, mas porque abandona seu significado. Vejamos quando e porquê.

Ao estabelecer uma série de pré-condições para assumir o poder, Gilney se vê numa enrascada teórica e política. Afinal, como já dissemos antes, o fato é que a oportunidade da ruptura tem surgido sempre antes das tais pré-condições terem sido cumpridas. Com isso, ou bem retornamos ao terreno do acúmulo de forças (abandonando as pré-­condições) ou bem definimos que não "assumiremos" o poder caso tais condições não se façam presentes.

Gilney oscila entre uma e outra posição. Por exemplo: "a ruptura só interessará a classe trabalhadora quando a institucionalidade burguesa não comportar a dimensão do crescimento e das exigências democráticas da classe trabalhadora".

Um exemplo esclarecerá melhor: caso Lula tivesse vencido as eleições e a direita armasse um golpe para evitar sua posse, teria se configurado um quadro desse tipo: a institucionalidade burguesa não comportou a dimensão do crescimento e das exigências democráticas da classe trabalhadora.

Ora, diante da violência da minoria burguesa, nós teríamos que recorrer a legítima defesa. Mas nesse caso: 1)estaríamos falando em nome da "maioria"? 2) teríamos antes constituído uma hegemonia socialista sobre a classe trabalhadora? 3)teríamos quadros, organização, experiência suficientes? Gilney será o primeiro a dizer que não.

Logo, a possibilidade de ruptura teria se dado antes das pré-con­dições terem sido cumpridas. Mas teriamos que --sob pena da desmoralização polltica-- contra-atacar. Logo, é preferível abandonar as pré-condições propostas por Gilney.

Mesmo porque quem vai determinar se a "institucionalidade" comporta ou não a "dimensão do crescimento e das exigências democráticas da classe trabalhadora" não somos nós, é a classe.

Versado como parece ser em história, Gilney deve conhecer os acontecimentos da revolução de fevereiro de 1917, na Rússia. Esta revolução começou a partir de uma comemoração pela passagem do dia da mulher, que se transformou em uma onda grevista, que levou a choques de rua, que terminou derrubando o czar e criando condições para a instalação do governo provisório.

A posição dos partidos socialistas na época é conhecida: não queriam a realização da manifestação, sob o argumento de que ela servi­ria de base para provocações anti-operárias. Se enganaram redondamente. Alguns meses depois, em circunstâncias semelhantes, os bolchevi­ques acertariam, e as manifestações foram de fato aplastradas, e o movimento entrou em refluxo por um curto período. Mas nos dois casos, os bolcheviques estiveram junto com a massa, e não lhe dando lições.

Porque o acúmulo se conquista na luta, não fora dela. E não há condições prévias nem para se lutar, nem para se "assumir o poder". Eu repito: Gilney oscila. Se bem o conheço, vai dizer que deturpei seus pontos de vista, que ele na verdade é o mais ardoroso defensor do a­cúmulo, que não impõe pré-condições a nada etcetera e tal.

Mas que oscila, oscila. Vejam só a seguinte passagem: "a vanguarda, ou uma minoria, não tem condições de substituir a ação revolucionária da maioria das massas trabalhadoras, embora a vanguarda possa, em determinadas condições, assaltar e tomar o poder (mas aí pagando o preço das limitações históricas já identificadas nas estratégias de minoria)".

A vanguarda pode... Porque não dizer: a vanguarda deve tomar o po­der, mesmo sabendo o preço que vai pagar. Deveriam os bolcheviques ter recuado diante dos sacrifícios, das mortes, dos problemas poste­riores a revolução? Houve quem propusesse --dentro do próprio comitê central do partido bolchevique-- não tomar o poder, exatamente por­que não existiam as tais condições. Deveriam os chineses ter tomado o poder? E os cubanos, os nicaraguenses?

Vamos trazer a discussão para nossa experiência prática. Quantas centenas de quadros do partido tinham dúvidas sobre se Lula deveria ou não vencer as eleições? Quantos dirigentes não torciam no íntimo para que a vitória não ocorresse, temendo que fosse prematura? Pior ainda: quantos militantes deixaram de se incorporar a campanha, ou se incorporaram tarde, com medo de que nossa vitória fosse antes da hora?

É melhor ficarmos com Lênin, que ficava com Danton: audácia, audá­cia, audácia, a principal característica de um revolucionário. E co­mo politica não é ciência exata, acho melhor deixar a decisão para a hora da decisão, sem ficar estabelecendo pré-condições.

Um exemplo típico de pré-condição necessária à revolução: a questão militar. É possível resolver a questão militar antes da revolução? Ou será que só uma revolução autenticamente popular pode abalar a disciplina do exército, ganhar o apoio de uma parte da soldadesca, fornecer armas para o povo? É claro que antes eu posso tomar uma série de medidas que facilitarão a solução da questão militar. Mas a maior parte dos problemas só será resolvida durante o próprio processo revolucionário.

Mas de que adianta falar: o Gilney certamente concorda com tudo isto, e ainda vai dizer que eu não li direito o texto dele...

Uma estratégia que não resolve nossos problemas

Acho que Gilney não dá conta de resolver um problema chave para o partido: sua progressiva cooptação pela institucionalidade burguesa. Hoje a maior parte da vida partidária está voltada para a disputa eleitoral e para a questão das administrações.

As frentes de massa (CUT, UNE, movimentos populares) não são objeto da atenção partidária senão secundariamente. Nossas direções não dão à estas questões a atenção merecida.

A própria ação institucional está criando três tipos de problemas. Primeiro, uma deformação interna: ser parlamentar, por exemplo, vi­rou condição para ser respeitado internamente no debate partidário. Segundo, a vida institucional virou um fim-em-si, e não um dos muitos meios de acúmulo de força. Terceiro, ao se dedicar de maneira tão exclusiva à frente institucional, o partido está perdendo as condições para enfrentar uma situação de ruptura, ou simplesmente uma situação de fechamento politico.

Explico melhor este último ponto. O fato da burguesia ter sido obrigada a abrir partes do aparelho de Estado à disputa nos obriga também a participar desta disputa. Primeiro, porque fomos nós que criamos criamos as condições para que isto ocorresse. Segundo, porque esta disputa constitui um momento importante no processo de acúmulo, especialmente num pais como o Brasil, onde a vida institucional têm tanta importânciai, e pode desempenhar um enorme papel na educação de massa.

Contudo, ao jogar todas as nossas forças --ou o principal delas-- nesta disputa, da maneira como o fazemos, estamos nos acostumando, conformando nossa organização, nos preparando apenas para este tipo de disputa.

Este é um problema ao mesmo tempo tático e estratégico. Tático, porque um partido como o nosso não vence as eleições na urna, mas antes, no trabalho de massa, que tem sido bastante prejudicado exa­tamente devido a maneira como disputamos na urna.

É também um problema estratégico, porque a burguesia brasileira demonstrou, em toda a sua história, que não aceita pacificamente um resultado das urnas que não lhe seja favorável. É bom lembrar que os principais momentos da história brasileira foram resolvidos ou através de um acordo de elite e/ou via armada. Mesmo nas eleições de 1989, a burguesia mostrou a que ponto chega quando se vê ameaçada.

Ora, se nós sabemos que o comportamento da burguesia é este, não podemos deixar de estar preparados para esta hipótese. Como também para a hipótese deles tentarem bloquear o processo de democratização do país. Só que, repito, a maneira como participamos da disputa institucional está nos amolecendo, nos acostumando com certos procedimentos parlamentares, nos afastando da nossa própria tradição de enfrentamento, de luta de massa, de briga.

A "estratégia da maioria" do Gilney não dá conta desse problema. Não é que ele o desconheça. Ao contrário: "a questão de fundo... é se a burguesia se sujeita à disputa polltico-institucional com um projeto alternativo, de cunho socialista, disputando abertamente o governo, ameaçando-lhe, sem recorrer ao golpe militar...".

Gilney diz que "o novo Estado burguês suportou     o primeiro teste". Bem, se suportou ou não começamos a ver agora e terminaremos de ver nas próximas eleições. Na minha opinião, o ta­manho do susto que a burguesia tomou nestas eleições foi tão grande que eles vão fazer de tudo para evitar um repeteco. De tudo!

Mas para nós, a questão não é saber se a burguesia vai ou não agir com a habitual violência, mas é sim estar preparado para todas as eventualidades. O que determina­rá nosso futuro ê exatamente isto: estaremos preparados para as diversas possibilidades ou não?

Se não operarmos mudanças na nossa política de estrutura organizativa, no partido como um todo, sou de opinião que não estaremos preparados.

Aliás, foi isso o que aconteceu com a corrente social-democrata. Nos momentos em que houve oportunidade de tomar o poder, ou então houve a necessidade de contra-atacar, ela não estava preparada -nem política, nem ideológica, nem organizativamente. Dito isto, quero falar um pouco de história.

A estória de Gilney

O jovem Amorim Viana utiliza em seus textos o mesmo recurso polêmico de suas intervenções nas reuniões partidárias: trata logo de desqualificar o oponente. Neste debate, por exemplo, quem se opor a ele fica logo como defensor da "estratégia da minoria". Como ninguém quer andar em companhia de putschistas, golpistas, social-de­mocratas e leninistas (safa!), o jeito é se resignar e ficar com o Gilney.

O Gilney pode ser bom polemista, mas é péssimo historiador. Sua versão acerca do leninismo e da social-democracia é, no mínimo, questionável. Há estudos suficientemente isentos e sérios que mos­tram exatamente o oposto do que ele tenta demonstrar.

Por exemplo. Ele diz que "no início" a social democracia era adepta da estratégia revolucionária da maioria. "Contudo", a social-democracia alemã evoluiu para uma concepção de subordinação da ação das massas à ação do partido. Posteriormente, a social-democracia perderia a perspectiva revolucionária mas não perderia a sua base operária.

O Gilney deve ter andado lendo Rosa Luxemburgo ultimamente. Mas acho que não entendeu tudo o que havia para ser entendido. A vitória da corrente de direita no partido social-democrata alemão teve sua principal base de massa no... sindicalismo. Foram os sindicalistas que rejeitaram, antes de mais nada, a perspectiva revolucionária. E expressavam isto através da palavra de ordem da independência do sindicato frente ao partido.

Segundo: a social-democracia alemã perdeu a perspectiva revolucio­nária mas não perdeu a base operária também porque a base de massas do partido foi educada durante anos exatamente a partir de uma versão da tal estratégia da maioria.

Essa versão dizia em síntese cinco coisas: 1º)que era preciso ga­nhar o apoio da maioria para se poder assumir o poder; 2º) que a classe operária se tornaria maioria, primeiro através do seu crescimento quantitativo, resultante do crescimento do próprio capitalismo; se­gundo, através do progressivo crescimento da força eleitoral da so­cial-democracia; 3º)que era preciso garantir a independência da classe operária, e por isso não se devia fazer alianças (especialmente com os "reacionários" pequeno-burgueses); 4º) que se devia ter presente que a burguesia talvez não aceitasse a vitória eleitoral dos socia­listas, e que nesse caso deveríamos lançar mão do legítimo direito de defesa; 5º)que era preciso, de uma vez por todas, ficar claro que o partido não "faz" uma revolução, que a revolução é feita pelas massas.

Na prática, essas diretrizes levaram a que: lº)os socialistas ficassem isolados, mesmo crescendo sua força eleitoral; 2º)se superestimasse as eleições, que viraram quase que a única maneira de estabelecer quem é "maioria"; 3º)levaram ao "expectativismo revolucionário", ou seja, ficar esperando que a revolução "aconteça"; 4º)ao acentuar o caráter principalmente defensivo do direito à violência (e, portanto, do direito à revolução), os social-democratas recusaram o uso de uma série de mecanismos revolucionários (como a greve geral de massa); e mesmo quando a revolução estava em curso, preferiram falar da "falta de condições", com os resultados que todos conhecemos.

Não vou ficar citando aquela montanha de frases e textos históricos. Acho apenas que devemos levar a sério o fato de conhecermos muito pouco as experiências social-democratas, suas políticas, sua maneira de organizar o partido. Por isso, corremos o risco de comprar gato por lebre.

O que importa de momento é que o Gilney ou bem desconhece isto ou bem tem outra avaliação dos fatos. Da minha parte, acho essencial falar que a social-democracia tentou (através da estratégia "majoritária") se manter revolucionária e uma força de massa ao mesmo tempo. E não conseguiu, fracassou nesta tentativa. Mas certamente isso complicaria demais os raciocínios de Gilney.

Para defender sua estratégia da maioria, ele vai buscar diversos exemplos de revoluções "genuínas". O gozado é que os partidos que dirigiram tais revoluções tinham, em sua maioria, profundo apreço pelas contribuições do leninismo, que Gilney considera a mais bem elaborada versão da concepção "minoritária".

Este problema nós já sabemos como Gilney o resolve. Tais parti­dos, em algum momento de sua história, teriam se livrado do le­ninismo e construíram sua própria estratégia.

Mas, e como fica a revolução russa? Ou bem ela foi uma revolu­ção de minoria (de efeitos táticos, conjunturais) e nesse caso é impossível entender como ela pode deixar marcas tão profundas em nosso século. Ou bem ela foi uma revolução de maioria, e nesse caso é impossivel entender como foi possível aos bolcheviques serem seu partido dirigente.

Na verdade, Gilney tem uma visão míope acerca do leninismo. Não é porque os Partidos Comunistas (hoje já não mais) se declaram leninistas, que eu vou considerar o leninismo como sendo aquilo que eles dizem. Não é porque as organizações no interior do PT se declaram leninistas, que eu vou considerar o leninismo como sendo aquilo que elas dizem. Não é porque os fundamentos do leninismo, da maneira como Zinoviev e Stálin os entendiam, são um amontoado de "modelitos", que eu vou achar que a obra de Lênin é isto.

Como hoje virou dogma falar mal de Lênin vou me dar ao traba­lho de falar bem de sua obra. Em primeiro lugar, é impossível compreender sua obra sem conhecer a história do movimento operário russo, suas ligações internacionais, a história do POSDR e da luta de idéias no seu interior. Só assim poderemos descobrir exatamente o que foi e qual o papel do leninismo na história da revolução russa e, mais do que isso, descobrir o que há de universal no leninismo.

Lênin foi mais do que um teórico-organizador de partido. Não é novidade para ninguém dizer que ele foi, entre os marxistas, o que mais se dedicou a análise política. Mas sua obra vai tratar, também, de temas econômicos e filosóficos.

Com todo o respeito pelos anti-leninistas de plantão, o camarada Ilich foi sem dúvida o melhor de todos os marxistas da geração que assistiu o nascimento do imperialismo, a primeira guerra mundial e a revolução russa.

Lênin nunca defendeu uma única forma de organização partidária. Para ele, bastava que a forma estivesse adequada aos objetivos finais e à conjuntura, às condições da luta política, ao nível de consciência da massa.

Em períodos de repressão e refluxo ele vai defender um partido centralizado, conspirativo, limitado: em períodos de ascenso, ele vai defender um partido democrãtico, aberto, de massas.

De massas, isto mesmo. Vejam só esta passaqem de um texto escrito por ele em novembro de 1907: "não pode existir um partido de massa, o partido de uma classe, sem que estejam bastante claras as nuanças existentes existentes, sem que a luta entre as diversas tendências seja uma luta aberta, sem que as massas tenham conhecimento de quais militantes do partido, de quais organizações do partido, propõem esta ou aquela linha. Sem isso, não se pode constituir um partido digno deste nome e nós o estamos constituindo".

O partido teria que estar preparado, se fosse necessário, para adotar outra forma organizativa, adaptar-se a outra conjuntura. Mais ainda: para não se cair no oportunismo em matéria de organização, é preciso não apenas estar disposto a futuramente adotar formas ilegais; é preciso também combinar sempre estas formas. Gilney, aliás, leninista sem o saber nem querer, de­fende a mesmissima coisa no seu texto.

Outra coisa. Para Lênin, é fundamental que o partido mantenha uma estrutura de quadros o mais articulada possível. Essa estrutura é o esqueleto do partido. É possível durante algum tempo existir um partido só de quadros, mas não existe partido só de massas.

O partido existe fundamentalmente para preparar o ataque decisi­vo contra o aparelho de Estado. Aqueles que esquecem, atenuam ou obscurecem este objetivo central jogam pela derrota. O partido é feito para tomar o poder, dirigir o assalto. O partido, portanto, existe para a política, é um instrumento de fazer política. A orga­nização subordina-se à política, e nunca o contrário.

Ao lado dos conceitos tão conhecidos de revolucionário profissional, aparelho, direção, está o de centralismo democrático --que não é outra coisa senão o que defendemos (Gilney incluso) para o PT, hoje.

Lênin é adepto da mais franca luta interna. Ele vai dizer que só "quando a maioria finalmente se delinear plenamente", a minoria deve se submeter --na própria ação política. Até mesmo o debate público antes da decisão era recomendável.

Outra coisa: Lênin insiste na importância da organização pela base, na transformação de cada fábrica em uma fortaleza socialista. Aliás, o Partido Bolchevique era --entre todos os partidos social-democratas da época-- um dos que tinha maior número de operários entre os seus quadros dirigentes. Inclusive operários na ativa.

Em geral, fala-se muita besteira sobre o que Lênin pensava da capacidade da classe operária "sozinha" chegar ao socialismo. Gilney chega a dizer a seguinte barbaridade: "os leninistas atuavam dentro dos sovietes deliberadamente no sentido de submetê-los à dinâmica partidária e finalmente destruí-los enquanto forma de poder pluri-partidário e pluri-social". Isso não corresponde a história, mas virou costume hoje falar coisas que não têm fundamento nenhum.

Podemos fazer um torneio de citações e o resultado será o de sempre: é possível provar que Lênin oscilou entre uma maior e uma menor valorização do papel do partido e das massas. Agora, daí a dizer que ele desprezava a ação da massa vai um longo espaço. É preciso lembrar que a social-democracia russa surgiu guerreando contra as concepções dos populistas russos, adeptos do terrorismo como forma de luta e avessos a luta de massas.

Mas afinal de contas: qual o sentido atual deste debate? Afinal, já se consolidou no partido a idéia de que ele deve ser de massa; e que é preciso possuir uma eficiente estrutura de quadros, sem o que não haverá partido de massas. Qual o sentido, me pergunto, deste debate hoje?

Penso que há duas razões que fazem as pessoas atacar as concepções leninistas nos dias de hoje. 

Algumas enxergam no "leninismo" a causa geradora da crise do socialismo. Para estas pessoas, partido de vanguarda, ditadura do proletariado e outros quetais são ortodo­xia, dogmatismo, leninismo, lixo.

A outra razão é de ordem diferente. Acabou a época de construção espontânea do partido. Ou existe uma operação dirigida, consciente, de reorganização ou estagnaremos. Ora, há muita gente que considera medidas de centralização, disciplina, unidade, controle partidário sobre os parlamentares e as administrações como... autoritarismo, vanguardismo, leninismo.

Gilney é favorável a mudanças no partido. Mais ainda: ao mesmo tempo que critica Lênin, Gilney incorpora em suas propostas argumentos originalmente... leninistas. Um exemplo: ele rejeita a "ditadura do proletariado"; mas incorpora a idéia de que o Estado da "transição ao socialismo" deve permitir a diversidade de expressões da vanguarda e do partido, da classe trabalhadora e do povo; deve permitir, portanto, a disputa do poder. Mas exclui a burguesia disto. Ou foi um lapso, ou ele concorda com a idéia central presente em O Estado e a Revolução: devemos implantar a democracia para a maioria e a ditadu­ra sobre a minoria, sobre a classe burguesa.

O mesmo leninismo-de-Gilney está presente em outras passagens do texto: "devemos aprofundar, alargar as liberdades democráticas den­tro da institucionalidade burguesa até o ponto da ruptura". Lênin dizia isto, e mais: que quem quisesse chegar ao socialismo por outro caminho que não o da democracia estaria cometendo uma aberração.

Vamos parar de cansar o leitor. Gilney envereda por um caminho para o qual ele não está muito preparado. Ele afirmou que o leninismo é uma "estratégia de minoria". Com certeza a de Lênin não era.

Ele afirmou que a social-democracia não tinha uma estratégia de maioria. Com certeza tinha. Quer se afirmar diferente do leninismo e da social­democracia, mas defende propostas leninistas e social-democratas. Usa o polêmico estilo da metralhadora giratória, abordando mil assuntos ao mesmo tempo. Nesse particular, é um campeão, e o máxi.mo que podemos fazer é mostrar as limitações deste estilo.

Duas passagens do texto mostram a inconsistência deste método. Na primeira, Gilney diz que o leninismo vê a conquista do poder como "tomada do poder", que se dá em função de uma conjuntura excepcional que possibilite a fusão da capacidade de ação imediata da vanguarda com a capacidade de mobilização imediata das massas".

Gilney quer tirar destas frases algo que elas não se propõem a tratar, qual seja, que por entender a tomada do poder desta maneira, logo os bolcheviques desprezariam todo o trabalho anterior de acúmulo, luta ideológica etc... Cá entre nós, os bolcheviques dedicaram grande parte de suas atividades exatamente a este trabalho anterior.

Outra passagem: "na ação (as massas) criam organizações diversas que podem desempenhar um papel de vanguarda na organização de suas lutas concretas, na formação de sua consciência, na formulação do projeto estratégico, no estabelecimento da hegemonia do projeto socialista". E arremata: nas "sociedades de massa" isso é tão evidente que dispensa demonstração.

Será tão evidente mesmo, ou se trata apenas de um argumento de autoridade? Porque nas "sociedades de massa" (Europa, Estados Unidos) o que nós temos visto é que as organizações criadas pela massa em sua luta cotidiana terminam desempenhando um papel de vanguarda apenas nas lutas cotidianas, não cumprindo os demais papéis apontados por Gilney. Na ausência de um partido político revolucionário, as organizações de massa terminam se perdendo na luta cotidiana. Aliás, é essa a experiência brasileira, e o fato da CUT ser mais avançada do que organizações similares de outros países se deve, antes de mais nada, a existência do PT. 

O texto do Gilney está cheio dessas afirmações que "dispensam comprovação" , óbvias por si mesmo. Espero ter ajudado a mostrar isto. E que venham os jaús.




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