Está tendo grande repercussão a reportagem publicada pelo Sul21 acerca de uma palestra proferida pelo companheiro Márcio Pochmann, em Porto Alegre, no dia 12 de agosto de 2019.
Não assisti a palestra, assim não tenho como verificar se a reportagem captou corretamente o que foi dito. Mas não tenho motivos para duvidar, seja devido ao autor da reportagem, seja porque coincide com o que ouvi Pochmann dizer em outros espaços.
Sendo assim, farei a seguir alguns comentários, com base em parte das aspas e transcrições de Sul21. Não comentarei o que Pochmann fala sobre 2020.
Pochmann critica certa “narrativa inapropriada que nos leva à acomodação e a saídas individuais”, uma narrativa segundo a qual estaríamos vivendo um período de transformações em relação às quais não temos muito o que fazer. Exemplos: a globalização financeira e a inovação tecnológica.
Paradoxalmente, Pochmann reproduz o que ele próprio critica, quando afirma que estaríamos vivendo a transição de uma sociedade industrial para uma sociedade de serviços.
Esta “narrativa” serve, na minha opinião, para naturalizar, tornar inevitável e nos fazer aceitar uma desindustrialização precoce, implementada em favor das grandes potências industriais do mundo.
Quem conduz essa “transição”? Segundo Pochmann, a extrema-direita. Esta afirmação, posta nestes termos, tem dois equívocos.
O primeiro é não perceber que a desindustrialização começou nos anos 1980 e vem desde então. A extrema-direita chegou só agora, quando ela se faz necessária para esmagar a única resistência real ao processo: a classe trabalhadora.
O segundo equívoco é não indicar a classe que está por detrás da desindustrialização: as frações que encabeçam o empresariado capitalista. Aliás, cá entre nós, foram frações capitalistas que sustentaram 1932 e também que apoiaram grande parte das operações reacionárias ocorridas em nossa história.
Pochmann diz que estaríamos “vivendo um período pré-insurrecional onde a população está extremamente insatisfeita e a extrema-direita tem maior facilidade de conversar com o povo do que a esquerda. Precisamos prestar muita atenção neste momento, pois estamos definindo o país que teremos nos próximos 40 ou 50 anos”.
Acho que Pochmann mistura alhos com bugalhos.
Ele tem razão quando fala que estamos vivendo uma transição, mas esta transição consiste na reconversão de nosso país em economia primário-exportadora, ao estilo do que fomos antes de 1930. De fato, falar de “transição da indústria para serviços” faria pleno sentido somente se fossemos uma nação capitalista madura.
Pochmann tem razão quando intui que esta transição tem um potencial explosivo, a medida que recoloca dilemas similares aos que, nos anos 1880-1930, foram resolvidos à bala. E, portanto, ele está certo ao apontar a possibilidade de grandes conflitos, convulsões e explosões sociais. Até porque, hoje, mais de 80% da população vive nas cidades, diferente do que era o país antes de 1930.
Seja como for, caso prevaleça a reprimarização, o padrão resultante será tão instável que não tem como durar 50 anos. O ciclo desenvolvimentista conservador durou isto porque era capaz de absorver parte das tensões sociais. Um “ciclo” primário-exportador vai exacerbar as tensões a tal ponto, que não tem como durar 40 ou 50 anos. Portanto, o que realmente pode durar varias décadas é o que virá “depois de amanhã”; e seria desastroso se a classe trabalhadora não aproveitar a oportunidade para impor uma alternativa socialista.
Neste sentido, é preciso ir além de obviedades do tipo: “a extrema-direita tem maior facilidade de conversar com o povo do que a esquerda”.
Qual é a base empírica disto? A última pesquisa 100% confiável demonstrou que a extrema direita tem maior facilidade de “conversar” com 57 milhões, nós com 47 milhões e 31 milhões não caíram no papo de nenhum dos pólos em disputa.
Se considerarmos estes números no contexto de 130 anos de República, a verdade é: a) na maior parte de nossa história, a esquerda teve mais dificuldade de “conversar”; b) desde 1989 até 2014, foi o período em que a esquerda “conversou” com mais gente.
Mas será que “conversar” é o verbo adequado? O uso desta palavra faz certo sentido para quem abre uma palestra citando Habermas. Mas foi com “conversa” que a extrema-direita conquistou a presidência?? Será com “conversa” que a esquerda vai derrotar o fascismo???
A afirmação quase ingênua e óbvia segundo a qual a direita “conversa” com “mais facilidade” é a porta de entrada para o que me parece ser o núcleo da palestra de Pochmann. A saber: “a sociedade do final dos anos 70 e início dos anos 80, que deu origem ao PT, não existe mais. Se seguirmos fazendo as coisas do jeito que fizemos até aqui não teremos melhores resultados do que os que já obtivemos”.
Novamente, como discordar de uma verdade tão óbvia? Acontece que, como dizia um velho, se a essência fosse igual a aparência, a ciência seria desnecessária.
Vejamos as aspas: “Na década de 80, tínhamos uma burguesia industrial no país. Hoje, a indústria brasileira representa menos de 10% do PIB, o que equivale ao que tínhamos em 1910. Hoje, temos o predomínio de uma burguesa comercial, que quer comprar barato e vender caro. Nos anos 80, tínhamos uma classe média assalariada, que praticamente não existe mais. Hoje, temos uma classe média de PJs (pessoas jurídicas) e consultores. Houve um desmoronamento do emprego clássico da classe média. A classe trabalhadora também mudou. Cerca de quatro quintos dos trabalhadores estão concentrados no setor terciário, nas diversas áreas de serviços. Eles não estão mais concentrados em grandes fábricas, mas em shoppings center, complexos hospitalares, prestando serviços para condomínios de ricos. A classe trabalhadora está cada vez mais ligada a um trabalho imaterial e submetida a nova organização temporal e espacial. Essa nova realidade não faz parte do discurso dos sindicatos e dos nossos partidos. Estamos com uma retórica envelhecida”.
Sobre a primeira parte da descrição, me chama a atenção que Pochmann não fale da burguesia financeira e do agronegócio. Será que falou na palestra e o Sul21 não destacou?
Sobre a segunda parte da descrição feita por Pochmann, me causa espanto que ele diga que a “classe trabalhadora está cada vez mais ligada a um trabalho imaterial”. Como é??? Que é que existe de “imaterial” na maior parte das atividades exercidas por quem trabalha no setor de serviços???
Claro que certa propaganda vende a “uberização” (e similares) como um serviço de alta tecnologia, imaterial. Mas nós não podemos levar isto a sério. A maior parte da classe trabalhadora está sendo submetida a serviços fisicamente degradantes; chamar isso de “trabalho imaterial” é uma daquelas “narrativas” que Pochmann mesmo crítica.
Na terceira parte de sua descrição, Pochmann diz que essa “nova realidade não faz parte do discurso dos sindicatos e dos nossos partidos. Estamos com uma retórica envelhecida”.
Novamente a influência de Habermas se faz presente: o problema estaria no “discurso”, na “retórica envelhecida”.
É curioso! A direita, segundo Pochmann, teria mais “facilidade” de conversar com o povo. Já a esquerda teria uma “retórica envelhecida”.
Pergunto: tem algo mais “velho” do que o discurso de Bolsonaro? Um discurso que enfileira preconceitos que às vezes têm um século ou mais de existência! Será que o problema da retórica da esquerda é mesmo estar “envelhecida”??
Tenho a impressão de que a “embocadura habermasiana” conduziu Pochmann a uma armadilha lógica. Como nosso problema é conversar, então nossa dificuldade estaria em não dominarmos a gíria moderna...
Mas supondo que consigamos dominar a gíria, a pergunta é: o que vamos dizer?
Vamos buscar incorporar esta “nova” classe trabalhadora nos sindicatos e nos partidos? Vamos lutar pela soberania, pela reindustrialização do país, pelos direitos liberdades perdidas e também pelas até agora não alcançadas?
Sei que não é esta a posição de Pochmann, que inclusive enfatiza fortemente a importância dos partidos e sindicatos, mas cabe recordar que ao longo da história, alguns setores da esquerda sempre utilizaram o pretexto dos novos tempos para abandonar bandeiras supostamente “velhas”, mas que de fato seguiam e seguem atuais.
Claro que há novidades. Mas é como na saúde pública: novas doenças convivem com o regresso de doenças que pensávamos erradicadas para sempre. Portanto, nossa “retórica” e principalmente nossa ação política e organizativa (que inclui, mas não se limita ao “discurso”) precisa sempre combinar doses de “novo” com doses de “velho”.
Vejamos o caso das igrejas evangélicas.
Pochmann diz que “hoje, cerca de 80 milhões de brasileiros frequentam semanalmente assembleias, as assembleias de Deus. Por volta de 2032, os evangélicos já serão maioria no Brasil. A lógica que rege esse fenômeno está mais ligada à subjetividade das pessoas do que à racionalidade. Essas igrejas são espaços de sociabilidade onde as pessoas podem falar sobre seus desejos e anseios. Lá elas encontram laços de fraternidade e solidariedade. Temos que ter a humildade de reconhecer a nossa defasagem de compreensão dessa realidade”.
Cá entre nós: este fenômeno é mesmo “novo”? No passado, a Igreja Católica não ocupava um “lugar” similar? Aliás, recebendo para isso forte apoio político e material de parte das elites! Como hoje ocorre, por exemplo, com as igrejas citadas por Pochmann.
Que fique claro: não estou dizendo que não há novidades. Claro que há. O que estou dizendo é que em muitos casos estamos diante de formas novas, formas assumidas por velhos fenômenos.
A isto vale acrescentar uma indagação: os serviços, as igrejas evangélicas e o crime organizado prosperaram só depois de 2016? Ou parte de nós, embalada por um discurso chapa branca, não conseguia enxergar o que estava diante dos narizes?
Pochmann finaliza a primeira parte de sua intervenção dizendo que “o ciclo político da Nova República desapareceu e com ele também desapareceu a possibilidade de termos governos de conciliação. E sem a conciliação o que temos é a polarização”.
Aqui novamente estamos diante de afirmações que merecem certo questionamento.
O ciclo político da Nova República inclui os governos Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma. Os quatro primeiros aplicaram programas que de “conciliadores” tinham muito pouco ou quase nada. Já os governos Lula e Dilma buscaram, explicitamente, atender aos interesses do empresariado capitalista e dos setores populares. Neste sentido, foram governos que acreditaram na “possibilidade” da conciliação. Mas esta “possibilidade” era real? Ou era em grande medida uma ilusão?
Pochmann, ao menos segundo as aspas transcritas, parece seguir acreditando que esta possibilidade existia mesmo. A questão é: se era possível, porque agora deixou de ser? Terá sido a emergência de fenômenos novos, que ainda não compreendemos? Ou terá sido a maior facilidade da direita em “conversar”? Ou será que estávamos iludidos e não vimos que a nossa atitude conciliatória apenas criava as condições para os golpes de que fomos vítimas e para a emergência de uma extrema-direita que usa e abusa da polarização?
Estas são algumas das observações que faço a partir da leitura do que disse Pochmann, segundo o Sul21.
Não revisado
O Pochmann e o Haddad são aqueles que chegam botando tudo no chão. Eles não contestam nenhuma medida golpista, só justificam todas a partir de uma suposta situação que tratam como global e não é. Não estão dando "liberdade ao trabalhador retirando direitos" (como disse Haddad) na Europa, ao contrário. Eles são tão coxas que veem o mundo sob a ótica americana. Como disse Haddad, ele nunca foi das engrenagens do PT. Foi a única coisa lógica que ele disse até agora. Nunca mesmo.
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