Não é por falta de aviso.
15 meses é muito tempo.
E 2021-2023 será muito diferente de 2001-2003.
A mensagem abaixo diz quase tudo.
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Não é por falta de aviso.
15 meses é muito tempo.
E 2021-2023 será muito diferente de 2001-2003.
A mensagem abaixo diz quase tudo.
No dia 26 de julho de 1953 aconteceu o assalto rebelde ao Quartel Moncada. Do episódio surgiu o nome do Movimento 26 de Julho, organização que – com aliados e no curso de uma revolução popular – chegou ao poder no dia 1 de janeiro de 1959.
A história do que veio depois é mais ou menos conhecida. A revolução converteu-se em socialista por força de uma dupla pressão: de um lado, a luta popular em favor de suas reivindicações; de outro, a reação combinada da oligarquia cubana e do imperialismo contra a revolução.
Que destino teria a revolução cubana se não existisse a União Soviética? Não há como saber. O que sabemos é que a URSS acabou, Cuba sobreviveu, mas os Estados Unidos não cessaram o bloqueio, nem cessou a pressão pela “mudança de regime”. Pelo contrário, com Trump e com Biden a pressão sobre Cuba aumentou.
Que fazer diante desta situação? Antes de mais nada muita solidariedade, pelo menos da parte daqueles que percebemos que não haverá alternativa boa em caso de triunfo do imperialismo.
Além da solidariedade, não há como escapar do debate permanente que se trava a respeito de Cuba. Boa parte deste debate é - por dever e direito - cubano: cabe aos “mambises” decidir o que farão de sua vida.
Mas há um aspecto do debate que é universal: trata-se do que entendemos por “socialismo”.
Há várias definições a respeito, mas tanto inimigos quando defensores giram ao redor das mesmas variáveis fundamentais: a “igualdade” e a “liberdade”.
Para os inimigos, o socialismo geraria menos liberdade e menos igualdade. Para impor a igualdade, se teria limitado a liberdade. E limitando a liberdade, cresceria a miséria e a desigualdade.
Já para os defensores, o socialismo geraria mais igualdade e mais liberdade. A libertação da maioria tornaria possível a busca da igualdade. E a igualdade tornaria possível uma liberdade de novo tipo.
Entretanto, os defensores do socialismo não encaram de maneira uniforme a relação que existe (ou que deveria existir) entre igualdade e liberdade, especialmente em condições de imperialismo, como ficou mais uma vez evidente na polêmica recente acerca das manifestações ocorridas em Cuba.
As diferenças e divergências são variadas, muitas delas remetendo para a seguinte questão: será possível construir o “socialismo em uma só ilha”?
Para aqueles que consideram que o socialismo é essencialmente a divisão igualitária da riqueza já existente, obviamente que sim. É verdade que restaria ao socialismo enfrentar pelo menos dois problemas: como tratar as desigualdades herdadas do passado e como impedir que surjam novas desigualdades.
Há exemplos – especialmente no passado – de sociedades mais ou menos isoladas, com baixa desigualdade social e com diferentes níveis de liberdade. E podemos especular sobre como isto poderia ser feito no presente, se existissem condições favoráveis de temperatura e pressão.
Mas vamos deixar de lado este mundo hipotético e coloquemos a questão nos seguintes termos: é possível construir o “socialismo em uma só ilha”, se esta "ilha" for vítima da agressão continuada de um inimigo materialmente superior?
Neste caso, além das desigualdades herdadas do passado e das que poderiam surgir de “condições normais”, teríamos novas desigualdades produto das agressões externas. E o esforço para conter estas agressões tenderia a estimular o surgimento de novas desigualdades.
Não precisamos especular sobre como esta situação poderia ser compensada pela ajuda externa e que tipo de efeitos colaterais esta ajuda poderia causar: o estudo da relação entre Cuba e URSS nos fornece abundante material histórico.
O que podemos especular é: no longo prazo, caso esta situação se mantivesse, resultaria no quê? Uma sociedade sob cerco eterno, compensado por um também eterno auxílio? Que tipo de igualdade e que tipo de liberdades seriam possíveis nestas condições?
De maneira mais geral, será possível enfrentar um capitalismo em constante desenvolvimento tecnológico, se o socialismo não for também capaz de desenvolver as forças produtivas em nível pelo menos equivalente?
Voltando ao caso de Cuba, não saberemos nunca o que aconteceria caso a URSS não tivesse desaparecido. O que sabemos são os efeitos históricos derivados deste desaparecimento, combinados ao agravamento do cerco estadounidense.
A divisão igualitária do que se possuía foi complicada pela redução substancial daquilo que se possuía. Tornou-se cada vez mais difícil superar as desigualdades anteriores à revolução. Além disso, novas desigualdades foram introduzidas pelas medidas indispensáveis adotadas para compensar o fim da ajuda externa, como o turismo, a dupla moeda etc. E as possibilidades de desenvolvimento das forças produtivas foram ainda mais reduzidas.
Para agravar a situação, as medidas políticas indispensáveis à luta contra a agressão externa continuada consomem recursos escassos (agravando a desigualdade). E as crescentes desigualdades internas provocam conflitos reais, que por sua vez são em alguma medida estimulados e até financiados pelo agressor externo. Isto por sua vez coloca a liberdade sob pressão crescente, inclusive por dificultar a atuação dos críticos socialistas do "socialismo reamente existente". Sendo que alguns chegam a afirmar que as medidas políticas adotadas para lutar contra o inimigo externo estariam, ao menos parcialmente, à serviço da manutenção do status quo, que pelos motivos já expostos não é de crescente igualdade.
Há várias conclusões a tirar desta situação. Uma delas é: a agressão imperialista torna impossível existir um caminho ótimo, perfeito, harmônico, sem contradições*.
Portanto, ao menos em países como Cuba, com limitações materiais e históricas enormes, sob pressão direta e constante de um inimigo desproporcionalmente mais poderoso, a disjuntiva fundamental é: ou 1/deixar a luta pelo socialismo para quando mudar o contexto histórico estrutural ou 2/ buscar fazer o melhor e o máximo possível nas condições dadas.
Reconhecer as limitações históricas e estruturais não significa negar a existência de margem de manobra, nem justifica opções políticas que prejudicaram/prejudicam a luta pelo socialismo entendido simultaneamente como igualdade e liberdade. Reconhecer as limitações dadas significa apenas compreender que a derrota do imperialismo é condição sine qua non para ampliar as possibilidades do socialismo significar efetivamente a máxima igualdade e a máxima liberdade.
Podemos debater muito, contrafactualmente, acerca do que teria ocorrido em Cuba se tivesse prevalecido a alternativa de "deixar a luta pelo socialismo para outro momento". Mas por mais que se debata a respeito, não há como provar que a passividade seja superior à rebeldia, do ponto de vista político, histórico e humano.
Pelos dois motivos, honra eterna aos rebeldes de 1953 e a todos os cubanos e cubanas que não dobram sua espinha ao império.
“O incêndio da estátua do Borba Gato, na zona sul da capital paulista, no mesmo dia em que os setores democráticos realizam nacionalmente maciças manifestações pacíficas de protesto, tem toda a pinta de provocação da direita”.
“O bandeirante homenageado com a horrível escultura foi um escravocrata assassino. Trata-se de homenagem descabida. Deve ser aberto um debate público por sua remoção do local”.
“No entanto, tacar fogo na peça, como foi feito, é ato de puro vandalismo. A extrema direita se aproveitará do evento”.
“A esquerda e os setores progressistas devem imediatamente desautorizar qualquer vínculo com a mazorca”.
Vamos começar pelo começo: de onde foi que Gilberto Maringoni – cometedor dos quatro parágrafos acima - tirou que a defumação de Borba Gato tem “pinta de provocação da direita”?
Da coisa em si não foi, pois queimar pneus e defumar a estátua de um “escravocrata assassino” também têm “toda a pinta” de ser “ação direta”.
Sem falar que tanto eu quanto Maringoni já aprendemos - pelo menos desde a época em que o pessoal do MR8 espancava militantes da oposição metalúrgica - que para fazer merda a esquerda não precisa estar infiltrada pela polícia.
Claro, os grupos de “ação direta” também podem ser "estimulados" ou infiltrados. Se foi o caso, peo menos desta vez o vídeo da ação está esteticamente melhor, mais para Casa de Papel do que aquele feito por um P2 que registrou seu coturno numa manifestação pelo Fora Bolsonaro.
De toda maneira, volto a perguntar: de onde Maringoni tirou sua afirmação acerca da "pinta"?
A "resposta" achei num post de Cid Benjamin, outro que se incomodou com a defumação de Borba Gato.
Neste post, Cid diz o seguinte:
“Houve gente bem intencionada apoiando aquela ação de mascarados queimando a estátua do Borba Gato, ao melhor estilo dos provocadores a serviço da polícia. O grupo se autodenomina "Revolução Periférica". Pois bem, Gilberto Maringoni foi procurar por esse grupo nas redes sociais. Vejam o que encontrou e concluam se essa gente é de esquerda ou se estamos diante de infiltração policial. Passo a palavra ao Maringoni”.
A seguir vem as palavras do Gilberto Maringoni, tal e qual reproduzidas por Cid:
"Fui atrás do tal grupo Revolução periférica no Facebook e no Instagram. Nesta última rede, tem 34 mil seguidores, 5 posts e dois dias de existência. Existe só para propagar a queima dos pneus (a estátua quase não sofreu danos). O Facebook é semelhante. Acabou de ser criado. Sim, é um grupo revolucionário com extenso trabalho de base. Contam com apoio do Papai Noel e do Coelhinho da páscoa..."
As referências finais são um esforço para fazer rir de piada ruim, pois do que foi descrito não há elementos para afirmar que estamos “diante de infiltração policial”.
Outros que foram de fato atrás do assunto chegaram a conclusão bem diferente, como se pode ler no texto disponível no link a seguir:
https://jornalistaslivres.org/foraborbagato-ou-a-revolucao-sera-periferica-ou-nao-sera/
Quem tem razão nesta questão, Gilberto Maringoni ou Laura Capriglione?
Logo saberemos, entre outros motivos porque a polícia deve estar atrás dos autores da “mazorca” (um termo que não lia faz tempo e que por sinal “tem toda a pinta” de cair bem na boca de certos meganhas).
Seja como for, de uma coisa tenho certeza: existem muitos motivos e ambiente propício para que uma parcela da militância parta para a “ação direta”, mesmo que apenas performática.
E se esta militância for tratada e se estas ações forem interpretadas da forma como Maringoni e outros fizeram, o resultado não vai ser bom para a esquerda.
De que outros estou falando?
Primeiro, de Aldo Rebelo, que faz tempo vem se notabilizando por confundir a defesa da soberania nacional com a defesa dos valores e das instituições da classe dominante.
Diante da defumação de Borba Gato, Aldo disparou dois tweets dizendo o seguinte:
“Canalhas, bandidos, assassinos da memória nacional. Vejam que não molestam as dezenas de imitações de “estátuas da liberdade” espalhadas pelo Brasil, escolhem a obra de artista brasileiro, um símbolo da história e da identidade da cidade de São Paulo”.
“É como o movimento não vai ter copa: filhinhos de papai de “esquerda” e de “direita” tocavam o terror nas ruas, vandalizavam, com a cumplicidade da mídia. Era a guerra híbrida contra o Brasil”.
Na interpretação de Aldo Rebelo, o “escravocrata assassino” cf. Maringoni seria um “símbolo da história e da identidade da cidade de São Paulo”.
Num certo sentido, ambos têm razão e uma boa questão é o que faremos com este tipo de símbolos em homenagem a assassinos, escravocratas, ditadores etc.
Aldo, sempre tão generoso com a memória dos que até agora foram vencedores, talvez proponha uma coleta para restaurar a obra símbolo da "pátria" bandeirante.
Maringoni propõe a “remoção do local” (parece que Borba Gato está lá desde 1963). Mas o que o preocupa mesmo são os efeitos políticos da defumação: “(...) tacar fogo na peça, como foi feito, é ato de puro vandalismo. A extrema direita se aproveitará do evento. A esquerda e os setores progressistas devem imediatamente desautorizar qualquer vínculo com a mazorca”.
A preocupação política é legítima. Se ela procede ou não, é um bom debate.
Em nenhum caso, contudo, o critério pode ser apenas ou principalmente o referido por Maringoni, a saber: se “a extrema direita se aproveitará do evento”.
Claro que se aproveitará (já há posts falando de queima de igrejas).
A direita em geral, o bolsonarismo em particular, tenta se “aproveitar” de qualquer coisa.
Nem os que lutam certo, nem os que lutam errado, tampouco os bundões são poupados da propaganda da direita. Assim, o critério deve ser outro.
O problema é que Maringoni acha que “tacar fogo na peça, como foi feito, é ato de puro vandalismo”. Ele não percebe que é preciso diferenciar o “puro vandalismo” de “performances” com propósito político.
Neste caso do Borba Gato, mesmo que Maringoni tivesse razão e fosse provocação policial, em nenhum caso se trataria de “puro vandalismo”: existe um propósito político na ação. Desconhecer isto é validar o conservadorismo mais atroz.
Por sinal, Aldo que me perdoe, em um país verdadeiramente democrático aquela estátua não teria sido construída nem estaria de pé.
Voltando a Maringoni, ele foi um gentleman nas suas críticas, ao menos em comparação com Renato Rovai, que em artigo publicado na revista Forum disse o que segue:
“Não foi um ato de terrorismo. Longe disso. É uma ação direta contra um símbolo cujo conteúdo histórico remete à opressão e ao genocídio. Mas é uma ação violenta contra o patrimônio histórico, mesmo que em sua base esteja a contestação à violência”.
“Não se pode escrever as regras do jogo apenas para um lado. Recentemente o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub ameaçou retirar um mural de Paulo Freire do MEC porque ele era “feio, parecia um vudu e além do que Freire era comunista”.
“Sérgio Camargo, da Fundação Palmares, usou discurso semelhante para excluir nomes de lutadores e intelectuais negros da lista de personalidades da instituição. Foram 27, incluindo Gilberto Gil, Martinho da Vila, Marina Silva, Milton Nascimento e Sueli Carneiro. O motivo é que eram de esquerda”.
“É possível debater certas homenagens e buscar corrigi-las. Evidente que sim. Defendo que podemos e devemos debater e negociar a retirada de certos monumentos históricos de lugares públicos. E inclusive considero que se deva construir espaços para que certas estátuas e obras sejam expostas e que as histórias dessas personagens sejam contadas a partir de um viés crítico”.
“Mas destrui-las é agir como os talebans procederam no Afeganistão ou como os extremistas da Ucrânia que destruíram a estátua de Lenin. Não é um bom caminho. E para a esquerda é o caminho da burrice, porque quem costuma ter a força para destruir a História são as classes dominantes. Elas é que costumam ter o poder e as armas para destruir placas como as de Marielle”.
“Não é um jogo bom para a esquerda apostar na violência. Em especial num momento em que temos um fascista no poder com um governo militarizado e que está doido para poder achar “terroristas” por aí para justificar o uso da força contra o campo progressista e os movimentos populares”.
“Mas a burrice da ação contra a estátua de Borba Gato é ainda maior porque pegou carona num dia de lutas contra Bolsonaro. O genocida da vez que nos assombra com 550 mil mortes. O fascista que precisa ser derrotado pelo seu presente e não pelo seu passado. E, por conta do que foi feito, as redes ontem falaram mais de Borba Gato do que do seu impeachment. É uma pena”.
Como já disse antes, a preocupação política é legítima, ainda que possamos tirar conclusões diferentes.
Já a comparação com os “extremistas da Ucrânia” e com os “talebans” é de um exagero sem tamanho.
Não sei se Rovai diria (ou disse) o mesmo do que foi feito, recentemente, com estátuas similares no mundo anglo-saxão. Ou será que lá pode?
O problema não é apenas o exagero; o problema principal é tratar de maneira simétrica a violência dos opressores e a violência dos oprimidos.
Pode ser um erro político fazer tal e qual ato, especialmente em determinada data; mas defumar a estátua de um “escravocrata assassino” é um ato que possui uma legitimidade politica incomparável com a violência da extrema direita e do fundamentalismo religioso.
Podemos discutir o que fazer com os símbolos que a classe dominante plantou e segue plantando neste país, mas não dá para tratar como equivalentes – por exemplo - o Paulo Freire e o Borba Gato.
Ademais, o “patrimônio histórico” não caiu do céu. Como bem lembrou o Célio Turino, "antes de escandalizarem-se de forma precipitada, censurando os atos como simples vandalismo ou esquerdismo infantil, melhor buscar compreender o que motiva essa indignação em relação a determinados monumentos, que, pela força simbólica, condensam essa "raiva". A partir dessa busca por compreensão cabe o diálogo quanto à forma".
Fontes dos textos citados
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-quem-interessa-incendiar-estatuas-no-mesmo-dia-de-protestos-contra-bolsonaro-por-gilberto-maringoni/
https://revistaforum.com.br/blogs/blogdorovai/fogo-no-borba-gato-nao-e-terrorismo-e-so-burrice-mesmo/
https://www.google.com.br/amp/s/www.brasil247.com/brasil/aldo-rebelo-diz-que-fogo-em-estatua-de-borba-gato-faz-parte-da-guerra-hibrida-contra-o-brasil%3famp
Os sandinistas tomaram o poder na Nicarágua em 1979. Adotaram um "modelo" de economia mista e pluralismo político. Não adiantou nada: desde 1981 os EUA financiaram e armaram uma guerrilha contra o regime sandinista. Mesmo assim os Sandinistas ganharam as eleições de 1984. Os EUA continuaram pressionando e apoiando os Contra. Os sandinistas não arredaram pé e mantiveram as eleições presidenciais de fevereiro de 1990. O povo votou com um fuzil apontado para a cabeça: se os sandinistas ganhassem, a guerra civil continuaria. Diferente de 1984, a oposição ganhou. “Democraticamente” tiveram início 16 anos de neoliberalismo. Mas tinha pluralismo partidário e propriedade privada que, na opinião de alguns, constituiriam a base da verdadeira democracia.
Nicarágua foi torturada pelos Estados Unidos por 10 anos. Os cubanos são torturados há uns 60 anos. Será que nessas condições seria possível manter um “socialismo libertário” e dispensar o apoio soviético?
Cuba buscou ampliar sua margem de manobra frente aos soviéticos, através do fortalecimento da esquerda na Ásia, na África e na América Latina. Em nosso continente, a quase totalidade das guerrilhas apoiadas por Cuba foi derrotada. Previsível mas infelizmente, pois nosso continente seria mais soberano, mais igualitário e mais democrático se a luta armada tivesse triunfado.
Com a crise e o desaparecimento da União Soviética, Cuba entrou no famoso “período especial em tempos de paz”. A partir de então, os danos causados pelo bloqueio estadounidense tornaram-se brutais. A situação econômica e social deteriorou-se. A situação política tornou-se mais difícil. Mas Cuba seguiu praticando a solidariedade internacional e nenhuma criança cubana dormiria na rua, entre outros detalhes que talvez não façam muita diferença para certo tipo de “ciência política”.
Cuba voltou a ter alguma folga a
partir de 1998, quando por toda a América Latina começaram a surgir governos de
esquerda e progressistas, que administraram seus países “com pleno respeito pelas
liberdades”, mas que mesmo assim foram vítimas de todo tipo de patranha por
parte da mesmíssima direita que ama os EUA e demoniza Cuba.
E o bloqueio? Seguiu, as vezes mais relaxado,
as vezes mais brutal, como ocorreu durante o governo Trump e segue durante o
governo Biden, que está firme no propósito de fazer uma "revolução capitalista"...
em Cuba.
Aliás, se eu trabalhasse no
Departamento de Estado, estaria nesse momento embrulhando um “presente” para
enviar a Cuba, por ocasião do aniversário do assalto ao Quartel Moncada,
ocorrido no dia 26 de julho de 1953.
É certamente um bom momento para isto:
uma nova geração assumiu o comando do governo cubano, acumulam-se problemas de longa data que exigem
solução para ontem, está em curso uma reforma que como todas tende a causar mais problemas antes de causar mais benefícios, a pandemia afetou pesadamente o turismo, o bloqueio endureceu, a economia está no limite, parte da população está cansada e sem perspectivas etc.
Frente a isso, o Partido dos Trabalhadores escolheu fazer a
coisa certa: denunciar o bloqueio e prestar solidariedade incondicional ao
povo e ao governo cubano.
Há quem escolha fazer diferente: denunciar a "ditadura", virar
as costas, impor condições, dar conselhos ao estilo “engenharia de obra feita”,
sugerir como modelo nossa experiência 100% exitosa de luta contra a direita
brasileira, propor a eles construírem o socialismo libertário etc.
Nos últimos dias, vi, ouvi e li de tudo. O troféu "brutalidade" - por enquanto - foi para Maria Herminia Tavares de Almeida, cientista
política e socióloga brasileira.
Palavras de Hermínia, em artigo publicado no dia 21 de julho na FSP: “pobre, isolada,
embargada e sem a influência de outrora, Cuba não passa de um anacronismo. Mais
insondáveis se tornam, por isso, as razões da tolerância retórica do PT diante
das arbitrariedades cometidas pela ditadura de Havana contra seus cidadãos.
Essa ambiguidade apenas gera ruído que alimenta o discurso obscurantista da
extrema direita. Por isso, é pior que um erro. É um delito político. Há que dar
adeus a Cuba”.
Confesso que não me surpreendo com a expressão “delito político”, afinal não faz muto tempo que os tucanos aplaudiram a prisão e condenação e interdição de Lula. Nem me surpreendo com a pressão sobre o PT: também não é de hoje que buscam nos domesticar com este tipo de demagogia.
O que considerei merecedor do troféu "brutalidade" foi a frase “Cuba não passa de um anacronismo”. Não é o PC cubano, não é o regime cubano, não é o modelo cubano. É Cuba.
Não sei que decorrência Maria Hermínia tira disto. Delenda Cuba? Cortem as suas cabeças? Enola Gay? Desert Storm?
Seja qual for, me causa repugnância este jeito de tratar um país, uma nação, um povo, uma cultura, situação e oposição, reduzindo tudo a um "anacronismo".
Espero que tenha sido um erro do editor da Folha...
Mas se não tiver sido, se Maria Herminia cometeu mesmo o raciocínio, só me resta apelar à frase célebre (cujo sentido, talvez por ato falho, ela inverteu no parágrafo supracitado): reduzir Cuba a um anacronismo é pior do que um crime, é um erro.
Crimes as vezes não são punidos, vide os militares que hoje nos governam. Já erros provocam sempre consequências. Tenhamos ou não concordância com o governo cubano, é hora de defender a soberania de Cuba. Sem isto, não haverá depois disso.
Se a América Latina deixar Cuba sofrer o mesmo destino da revolução haitiana, podemos dar adeus a nosso futuro.
Hora de dar adeus a Cuba
Em 1960, Jean-Paul Sartre visitou o país com a sua companheira, a
escritora Simone de Beauvoir.
Os mais cultivados entre os seus admiradores brasileiros esperavam que
ele falasse do existencialismo, ou de seu polêmico livro "Crítica da Razão Dialética"
— aqui lido por poucos. Mas, vindo de Havana, seu assunto foi a Revolução
Cubana: a seu ver, a promessa de um socialismo libertário, a léguas do modelo
soviético, e o fato presente de que a vitória dos guerrilheiros de Sierra Maestra atingia
os interesses americanos no seu quintal, subvertendo a geopolítica da Guerra
Fria. O fim da ditadura de Batista fez mais do que aquecer os corações da
juventude rebelde e de intelectuais progressistas em muitos países: mudou a
história da esquerda.
Só que o grande pensador francês estava errado. Não passou uma década
para que Cuba se amoldasse ao "socialismo real", confirmando que não
há espaço para a democracia e as liberdades quando as empresas são do estado e
o regime é de partido único.
Sua estrela política só se apagou com a
derrota dos movimentos de oposição armada aos governos militares que fizeram da
América Latina dos anos 1970 uma usina de autoritarismo. Inspirados pela
experiência cubana e apoiados pelo governo de Fidel, multiplicaram-se pela
região focos de luta armada — de esquerda, mas também autoritários e incapazes
de vencer as ditaduras de direita.
Elas, finalmente, cederam à força de
ampla movimentação democrática, à qual se somavam lideranças e organizações de
diferentes colorações políticas. Os partidos e agrupamentos de esquerda que
dela participaram nada tinham a ver com Cuba e seu modelo socialista, ainda que
contassem com a participação de ex-guerrilheiros convertidos aos valores
democráticos. O chileno Partido pela Democracia (PPD), as organizações
uruguaias que se reuniram na Frente Ampla e o Partido dos Trabalhadores, no
Brasil, são os exemplos mais destacados dessa esquerda com inequívoco
compromisso com a democracia, as garantias individuais e o reformismo social.
Compromissos mais do que provados quando governaram seus países com pleno
respeito pelas liberdades públicas.
Enquanto isso, pobre, isolada,
embargada e sem a influência de outrora, Cuba não passa de um anacronismo. Mais
insondáveis se tornam, por isso, as razões da tolerância retórica do PT diante
das arbitrariedades cometidas pela ditadura de Havana contra seus cidadãos.
Essa ambiguidade apenas gera ruído que alimenta o discurso obscurantista da
extrema direita. Por isso, é pior que um erro. É um delito político. Há que dar
adeus a Cuba.
Maria Hermínia Tavares,
professora titular aposentada da USP e ex-docente da Unicamp
Nesta manhã de 22 de julho, logo depois de ler um texto publicado na falha de SP, recebi e socializo o texto abaixo, de autor e paradeiro desconhecido:
Uma das coisas mais encantadoras que existe é a compaixão que os bem-aventurados demonstram ter pelos danados da Terra.
O cidadão
(ou cidadã) vive bem, come bem, dorme bem, se veste bem, frequentou boas escolas e tem acesso
adequado à saúde, não lhe falta energia elétrica nem água limpa e - que lindo – ainda
encontra tempo e energia para se preocupar com o fato de que a esmagadora
maioria das pessoas que vive neste planeta não tem e nunca teve nada disso.
Às vezes a
preocupação chega ao ponto de virar doação, voto ou até mesmo militância numa
ONG, num partido, num mandato institucional. Se bobear, vira até intelectual globalmente
conhecido por suas opiniões humanitárias e engajadas.
Mas sabe
como são as coisas: não faz sentido despir um santo para vestir outro. Então, a
compaixão, para ser eficaz e eficiente e efetiva, precisa ser direcionada no
sentido de convencer os pobres de que - para melhorar de vida – eles têm que se
esforçar, têm que demonstrar que sabem subir na vida por seus próprios méritos.
Mérito é
fundamental!
E fazendo
assim, veja que legal, crescerá a produtividade e a produção e – bingo – como resultado
aquilo que o pobre vier a ganhar terá sido produto dele mesmo e não do rico. Mostrando
que a sociedade oferece os problemas quando já tem as soluções à vista!
O que tem a
vantagem adicional de contribuir para a autoestima do pobre, que desta maneira não
se sentirá merecedor da caridade alheia. Por isso, gente, o negócio é ensinar a
pescar, para que cada um tenha o que consiga com seu próprio esforço!
E que isto demore um pouco é algo normal, mais que isso é inclusive natural que a pobreza só possa ser reduzida bem devagar e a desigualdade as vezes nem isso, afinal veja bem: quem faz milagre em 7 dias é Deus, não gente como a gente!
Mesmo os que vieram de barco e hoje são ricos demoraram muito para juntar sua fortuna e olha que eles são em pequeno número; por isso, vamos dar tempo ao tempo!
Além do que “there is no alternative” ao método lento, seguro e acima de tudo gradual. Pois querer mudar tudo de pressa, rapidamente, de maneira atabalhoada, confusa, além de ser um horror estético – pobreza não combina com palácio – não dá certo, simplesmente não dá certo.
Pois como sabemos, para acelerar o ritmo da ascensão social seria preciso transformar o Estado naquele Leviatã que inferniza a vida das pessoas, especialmente das pessoas de bem, que mesmo tendo os meios, não poderão mais fazer o que querem, quando querem e como querem.
Ademais, bloqueadas as fontes de toda a riqueza e inovação – a propriedade privada, o livre mercado e a remuneração adequada pelo esforço do proprietário: o lucro” – a sociedade vai estagnar ou retroceder. E tudo isto vai prejudicar principalmente quem? Os pobres!
E tem algo ainda pior nisso tudo: essas aventuras voluntaristas, de gente apressada, que não tem aquelas qualidades que vem do berço, provocam reações dos que – diferente de nós – não têm compaixão.
É daí que surgem os golpes militares, as ditaduras, as intervenções estrangeiras e os bloqueios: reações aos desatinos de gente apressada.
Para evitar que os reacionários reajam, é preciso mudar lentamente, de preferência silenciosamente, para que o gigante não desperte.
Por tudo que foi exposto antes, nem que seja por compaixão aos que têm compaixão por si, os pobres da terra deveriam perceber que precisam ficar no seu lugar. Pois como sabemos, bem aventurados os pobres, pois deles é o reino de Deus.
*
Publico o texto anônimo acima como homenagem a "colegas de profissão" que são capazes de falar com sincera paixão dos jacobinos negros do Haiti e de
sua revolução sufocada pelas potências do século XIX, ao mesmo tempo que
contribuem – com suas palavras e atos ou falta deles– para que os gringos sufoquem a revolução
cubana.
Normal: para a turma de Higienópolis, comunista bom é comunista morto, revolução boa é revolução morta!
O texto abaixo é uma versão revista e atualizada do que preparei para a aula debate sobre a vida e a obra de Marco Aurélio Garcia. Participaram da aula-debate, além de várias pessoas convidadas e do corpo discente, a professora Maria Carlotto e o professor Victor Marques.
Marco Aurélio Garcia (22/6/1941-20/7/2017) foi - junto com
Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma
Rousseff - um dos principais formuladores e executores da política externa
conhecida como "altiva e ativa".
Além disso, MAG foi protagonista do debate sobre as tentativas
de construção do socialismo no século XX e XXI e, também, do debate sobre a
estratégia da esquerda brasileira.
MAG faleceu pouco depois de completar 76 anos, no dia 20 de
julho de 2017, há exatos quatro anos, vítima de um infarto fulminante que o surpreendeu
em seu apartamento na Praça da República, no centro de São Paulo capital.
Para marcar a data, o professor Victor Marques e a
professora Maria Carlotto tiveram a ideia de realizar exatamente no dia de hoje
uma atividade uma homenagem a este brasileiro ilustre, como se diria noutros
tempos.
Entre as alternativas possíveis, optamos por fazer isto através
de uma aula-debate na disciplina intitulada “América Latina e Caribe: Inserção
Mundial e Trajetórias”, do programa de pós graduação em Economia Política
Mundial da Universidade Federal do ABC.
Primeiro, porque a vida e a obra de MAG têm relação direta
com os temas abordados nesta disciplina: os dilemas do mundo, da América Latina
e Caribe, mas especialmente do Brasil nesse momento tão especial e tão difícil da
vida nacional. [Outros aspectos de sua trajetória, que certamente também
merecem análise, com destaque para seu artesanato gastronômico, ultrapassam os
limites desta disciplina].
E nada melhor do que uma aula - em uma universidade pública
- para debater a vida e a obra de alguém que tinha orgulho de ser um “professor”.
Como professor responsável por ministrar a disciplina “América
Latina...” neste segundo quadrimestre de 2021, me coube abrir a aula-debate. Para
tal, além da memória e do meu arquivo pessoal, contei com as seguintes fontes:
*a “Coleção
MAG”, composta até agora por três volumes: A Opção
Sul-Americana, Construir
o Amanhã e Notas
para Uma História dos Trabalhadores. A organização destes volumes
foi feita por Bruno Gaspar, Rose Spina e Dainis Karepovs. Os três livros estão
disponíveis gratuitamente para download. A coleção foi edita sob o patrocínio
da Fundação Perseu Abramo e do Instituto Futuro - Marco Aurélio Garcia.
*o dossiê
publicado pela revista Teoria e Debate, com artigos entre outros de Monica Hirst, Maria Regina Soares de Lima, André Singer, Marcelo
Ridenti, Jorge Mattoso, Martín Granovsky e Walnice Nogueira Galvão.
*a entrevista feita pelos professores Alexandre Fortes, do Instituto Multidisciplinar
da UFRRJ, e Paulo Fontes, do Instituto de
História da UFRJ. A entrevista foi publicada originalmente em Laboratório de Estudos
de História dos Mundos do Trabalho (LEHMT) da UFRJ.
Começo exatamente citando os professores Alexandre Fortes e
Paulo Fontes:
“Marco Aurélio Garcia, o MAG, como era conhecido, nasceu em
22 de junho de 1941. Militante do movimento estudantil, aderiu ao Partido Comunista
do Brasil (PCB) no final dos anos 1950. Foi vice-presidente da União Nacional
dos Estudantes entre 1961 e 62. Após o golpe de 1964, aderiu à Dissidência do Partido
Comunista no Rio Grande do Sul e, em seguida foi um dos fundadores do POC
(Partido Operário Comunista). Em 1967, ele e a socióloga Elizabeth Lobo, com quem
era casado, partiram para a França. Chegaram a voltar para o Brasil e depois
foram para o Chile durante o governo da Unidade Popular liderado por Salvador
Allende. Com o golpe de 1973, exilaram-se definitivamente na França, onde
completaram sua formação acadêmica”.
De volta ao Brasil, depois da Anistia de 1979, MAG trabalhou
profissionalmente como professor, tendo sido parte do Departamento de História
da Universidade de Campinas e um dos criadores do Arquivo Edgar Leuenroth.
Conforme nos lembra Cláudio Batalha, MAG “foi um dos
iniciadores do GT “Partidos e Movimentos de Esquerda” junto à Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), junto com
outros pesquisadores como João Quartim de Moraes e Daniel Aarão Reis Filho. No âmbito
desse GT foi retomada a ideia de elaborar a história da esquerda no Brasil, que
depois foi mudada para uma história do marxismo no Brasil, dando origem à
publicação da coleção homônima de seis volumes a partir de 1991. Na qual,
paradoxalmente, Marco Aurélio Garcia nunca chegou a escrever, possivelmente
porque essa publicação coincidiu com o período em que assumiu a Secretaria de
Cultura de Campinas na gestão de Jacó Bittar e depois desempenhou funções de
crescente responsabilidade no PT, resultando no seu crescente afastamento da
vida acadêmica”.
Vale dizer que seu envolvimento com a vida partidária não o
afastou das preocupações ditas “acadêmicas”. Como prova disso, Batalha lembra
que “em 1997, dentro da Fundação Perseu Abramo, [MAG estruturou] o Projeto
Memória e História do PT, o qual, em 2011, se transformou no Centro Sérgio
Buarque de Holanda, instituição responsável pela preservação da memória do
partido”.
Voltando aos anos oitenta: como tantos outros que regressaram
do exílio, MAG manteve intensa atividade política. Destaco sua participação, com
Eder Sader e outros, na criação da revista Desvios e , claro, sua militância no então recém-criado
Partido dos Trabalhadores, em cuja direção nacional chegou a ser presidente
nacional (em 2006), além de por muitos anos ter sido membro da comissão
executiva nacional, vice-presidente e, com destaque, secretário de relações
internacionais.
MAG também foi secretário de Cultura de Campinas (1989-1990)
– quando se criou a revista Trabalhadores -e depois encabeçou a secretaria
de Cultura de São Paulo capital (2001-2002).
Entretanto, a partir dos anos 1990, a atividade política de
MAG foi se concentrando nas relações internacionais do PT e na política externa
do Brasil.
Lembro que ele foi um dos fundadores, em 1990, do Foro de São
Paulo; e que foi de 2003 a 2016 Assessor-Chefe da Assessoria Especial para
Assuntos Internacionais da Presidência da República.
Tanto na SRI
quando na PR, MAG contou com um conjunto de colaboradores, entre os quais cito Nani
Stuart, Bruno Gaspar, Audo Faleiro e Ricardo Azevedo.
Também cabe
citar sua mãe Sonia, seu neto Benjamim, seu filho Leon e – vou transcrever um
trecho do texto de Jorge Matoso – “sua esposa, companheira de vida, militância
e mãe do Leon, a Beth Souza Lobo”, falecida “em um acidente de automóvel em
março de 1991 perto de João Pessoa. Na Paraíba, Beth foi dar palestras no
Mestrado de Ciências Sociais da UFPB e em Campina Grande entrevistou mulheres
militantes sindicais rurais”.
Aliás,
recomendo enfaticamente ler o texto que MAG escreveu sobre Beth, intitulado “AUSÊNCIA
E PRESENÇA” e publicado na revista Teoria e Debate n. 14, abr/ma/jun. de
1991.
A vida e a obra de MAG são deveras interessantes.
Infelizmente, ele mesmo não nos deixou uma autobiografia,
nem mesmo publicou livros autorais que sistematizassem sua opinião.
Aliás, salvo engano da minha parte, ele foi “dispensado” da
– para alguns – via crucis de elaborar uma dissertação de mestrado e uma
tese de doutorado.
Segundo me informou um de seus alunos, “ele e a Beth iniciaram
[a pós graduação] sob orientação do Lucien Goldman em Paris. Ela concluiu, mas
não tenho certeza no caso dele. (...) No Brasil, nos anos 70 havia muita gente lecionando
em universidade sem ter pós-graduação, mas não sei se ocorria na França. No
Brasil ele estava inscrito como aluno de doutorado na USP tendo o Leôncio [Martins
Rodrigues, 1934-2021] como orientador. Essa era a tese que nunca terminou. Mas ele pode ter entrado direto no doutorado”.
Como nos
disse Bruno Gaspar, pouco antes de falecer MAG tinha planos de escrever muito. Segundo
Jorge Matoso, “Marco Aurélio recomeçou a organizar em seu apartamento os livros
e um conjunto amplo de materiais dos mais diversos tipos (anotações, cartas e
escritos variados) acumulados e guardados em muitas caixas ao longo de muitos
anos. Esse processo – que já gerava palestras e deveria resultar em textos e
livros que favorecessem o mais amplo conhecimento desta sua atividade única,
militante e intelectual nas relações internacionais – foi lamentavelmente interrompido
por sua morte repentina”.
#
A maior
parte das pessoas que conheceu MAG despois de sua volta do exílio pouco sabe de
sua vida antes do golpe militar de 1964. Parte desta lacuna é preenchida pela
entrevista supracitada, feita no dia 18 de novembro de 2009 e que cobriu basicamente
os primeiros 23 anos de vida de MAG.
Por diversos motivos, não aconteceu a continuidade da entrevista
– cobrindo o período pós 1964 – o que é uma tragédia sem nome para os que fazemos
parte da Central Única de Historiadores, entidade cuja sigla – como o Waldemor
de Harry Porter –não deve nunca ser mencionada.
Naquela entrevista, Marco Aurélio fala de sua família
(gaúchos progressistas de classe média), fala do ambiente político e cultural do
Rio Grande do Sul e conta um detalhe particularmente interessante: [minha] “família
é laica. Meus pais não casaram no religioso, eu não sou batizado, eu não casei
no religioso, meu filho não é batizado. Laicidade. O meu avô materno era
espírita, mas se comportava como um laico, de uma maneira geral. E, de uma
certa maneira, tinha um certo componente anticlerical na família”.
MAG também conta muitos episódios curiosos, entre os quais:
“Havia um programa lá em Porto Alegre, na Rádio Guaíba, que era um grande
sucesso, e eu terminei me inscrevendo. Participei de treze programas e ganhei.
O prêmio foram duas viagens para Paris. Então fui com meu pai. Uma coisa interessante,
porque eu nunca tinha saído de Porto Alegre. Eu não conhecia nem São Paulo nem
o Rio de Janeiro. (...) Eu fui a Paris em janeiro de 1959, passei um mês, fui a
Lisboa”.
O mais importante da entrevista,
obviamente, é o que ele nos conta acerca de sua vida intelectual, de sua
militância estudantil, de seu ingresso no Partido Comunista.
Em julho de 1961 Marco
Aurélio foi eleito vice-presidente da UNE, mais precisamente “vice-presidente da
Reforma Universitária e Cultura”.
Era uma época de
efervescência política e cultural, no qual a UNE estava metida dos pés à cabeça:
“Nós organizamos a greve do 1/3, que foi uma greve que paralisou as
universidades brasileiras, todas, sem exceção (Todas! Isso é uma coisa
espantosa) durante quase dois meses”.
MAG nos conta que viveu “um ano no Rio de Janeiro, e foi um
momento que eu conheci o Brasil. Salvador tinha me chamado muito a atenção. (...)
UNE Volante. Então nós fomos para Manaus, Belém do Pará, Piauí”.
Ele destaca que naquela época conhecer vários estados do
país não era algo comum, nem mesmo para pessoas de “classe média”.
Além disso, há detalhes
interessantíssimos dos contatos que MAG manteve - na véspera da renúncia - com
o presidente Jânio Quadros, com o governador Leonel Brizola e com San Tiago Dantas,
quando este era cotado para ser primeiro-ministro.
Quando terminou sua gestão como
vice-presidente da UNE, MAG e outros foram participar do congresso da União
Internacional do Estudantes, em agosto de 1962, na cidade de Leningrado, hoje
renomeada de São Petersburgo. Foi também à Polonia, a Romenia, a Iugoslávia e a Tchecoeslovaquia.
De lá ele volta para o Brasil, onde se dedica a concluir sua formação
universitária e organizar o Partido Comunista. Além de ter sido eleito vereador
em Porto Alegre, de fato pelo PCB mas de direito pelo “Partido Republicano”. Em
seguida vem o golpe, a ruptura com o PCB e o exílio, “entre 1970 e 1979, quando
foi professor na Universidade do Chile (na Faculdade Latino-Americana de
Ciências Sociais) e nas Universidades de Paris 8 e Paris 10, da França”.
Como se vê, por essa breve
resenha, foi uma vida venturosa, de uma pessoa com qualidades humanas muito
interessantes, que são fortemente destacadas por todos os que escreverem no
Dossiê publicado recentemente pela revista Teoria e Debate, por ocasião
de seu aniversário de nascimento (junho de 1941).
#
Ao analisar a vida e
obra de MAG, percebo que suas posições sobre a política externa do Brasil foram
construídas a partir da reflexão acerca dos dilemas programáticos e estratégicos
da esquerda brasileira.
Embora esta reflexão envolva
outros momentos e outros aspectos, um ponto importante foi a coleção de textos escritos
por MAG acerca da esquerda brasileira.
Nas palavras do professor
Marcelo Ridenti: “em 1979, voltando do exílio após a anistia, Marco Aurélio
Garcia produziu uma série lendária de artigos para o jornal alternativo Em
Tempo sobre a história da esquerda brasileira de 1960 a 1979”, “antecedendo
em oito
“Em Tempo
iniciou a publicação da série Contribuição à História da Esquerda Brasileira em
agosto de 1979, chegando a um total de 29 artigos, 22 deles de Marco Aurélio,
autor também de mais duas matérias e respostas a várias cartas”.
Foram 34 as “organizações
elencadas, a partir de três eixos: o caráter da revolução brasileira (nacional-democrática
ou socialista), o tipo de organização revolucionária (partido ou grupo de
guerrilha), e as formas de luta para chegar ao poder (pacífica ou armada – insurrecional
ou guerrilheira – com ênfase no campo ou na cidade), com diversas posições híbridas
ou intermediárias entre cada alternativa. Essas três coordenadas analíticas
tornaram-se tão correntes em estudos posteriores que muitas vezes se esquece
sua origem na obra de Marco Aurélio”.
Não cabe aqui fazer uma
análise propriamente historiográfica deste tour de force, nem tampouco
de suas referências intelectuais, entre os quais Ridenti cita E. P. Thompson,
Claude Lefort e Cornelius Castoriadis.
No contexto desta
aula-debate, o que me parece ser necessário destacar é que este balanço da
trajetória da esquerda brasileira contribuiu muito para MAG construir sua “visão”
pessoal acerca de qual deveria ser a “linha” adotada pela esquerda brasileira a
partir dos anos 1980. Esta visão/linha é o “núcleo duro” a partir do qual MAG foi
construindo sua abordagem acerca da política internacional do PT e da política
externa do Brasil.
Segundo Ridenti, “havia
nas entrelinhas a esperança de que o novo partido que se gestava [Ridenti se
refere aqui ao Partido dos Trabalhadores] pudesse ser a superação das tradições
anteriores, notadamente a bolchevique e a social-democrata, indo além também do
anarquismo, do trotskismo, da esquerda cristã, do trabalhismo, identificando-se
com propostas autonomistas”.
Mais adiante MAG se
concentrará no objetivo de superar apenas duas destas tradições: a comunista e a
social-democrata. Ressalto que a relativa desatenção concedida ao trabalhismo e
ao desenvolvimentismo ajudam a compreender alguns dos dilemas intelectuais e
políticos que ele enfrentou, não apenas no período em que foi assessor da
presidência da República (2003-2016), mas principalmente depois do impeachment
da presidenta Dilma Rousseff.
Selecionei
três textos – de 1990, 2003 e 2015 – para exemplificar o que foi dito acima.
O primeiro
deles é o artigo intitulado “Terceira
via: a social-democracia e o PT”, publicado pela revista Teoria e Debate nº 12, em novembro de 1990.
O segundo texto intitula-se
“Pensar a terceira geração da esquerda” e corresponde a uma palestra feita por
MAG no seminário internacional “História e perspectivas da esquerda”, realizado
na USP entre os dias 13 e 15 de agosto de 2003.
O terceiro texto, por sua vez, corresponde
a participação de Marco Aurélio Garcia no Colóquio Internacional "Claude
Lefort: a invenção democrática hoje", na Universidade de São Paulo, em 14
de outubro de 2015.
No artigo
de 1990, Marco Aurélio afirma que seria “óbvio” que “o socialismo não era o
objetivo imediato do partido”: “somente cabeças muito acaloradas poderiam imaginar
que o socialismo se colocava como questão de atualidade imediata”, deixando claro
que nisto “o PT não se diferenciava dos partidos comunistas”.
Registro
que nessa fórmula sintética podem se confundir – ou melhor, pode não se distinguir
- duas questões diferentes: uma é saber se a conquista do poder e a construção
de uma sociedade socialista eram os objetivos táticos imediatos do PT; outra é
saber se o socialismo era o objetivo estratégico ou se antes dele se pretendia
alcançar um objetivo intermediário (uma etapa de desenvolvimento capitalista,
uma revolução democrático-burguesa, uma fase de libertação nacional etc.).
Poucos anos
antes do texto de MAG ser escrito, o PT realizara um congresso (denominado 5º Encontro
Nacional, de 1987) onde foi aprovada uma resolução que afirmava o socialismo
como objetivo e recusava explicita e nominalmente “uma nova teoria das etapas”.
Portanto,
quando MAG fala que “nisto” o PT não se diferenciava dos partidos comunistas,
ele deve estar se referindo a atualidade imediata, no sentido de atualidade “tática”
do socialismo. Mas o que de fato começou a ocorrer, da parte de alguns setores
do PT ao longo dos anos 1990, foi o deslizamento para uma nova “teoria das
etapas”, a saber: primeiro caberia lutar contra o neoliberalismo e depois lutar
contra o capitalismo/diretamente pelo socialismo.
Voltando
ao texto de 1990: nele MAG diz que a diferença entre comunistas e petistas estaria
na “forma” pela qual se “articulam a luta por este programa democrático-popular
com os objetivos socialistas”.
E neste ponto
ganharia “considerável importância” a “discussão com a social-democracia e a
pergunta sobre as perspectivas de sua vigência em países como o Brasil”.
A esse
respeito, Marco Aurélio registra que existiriam duas posições: numa “as
reformas teriam um caráter cumulativo e terminariam levando ao socialismo,
pensado como regime qualitativamente distinto”; noutra “não havia uma diferença
qualitativa entre capitalismo e socialismo. O socialismo passava a ser o
próprio movimento pelas reformas”. Destacando que se trata de uma questão
“fundamental para a discussão estratégica da esquerda”, MAG defende que ela
deveria ser respondida não “discutindo a tese geral, em abstrato, mas
examinando no contexto brasileiro”, no qual o caminho para as “reformas”
exigiria um “agudo processo de lutas sociais”, uma “rearticulação da luta pela
democracia política com a democracia social e destas duas com o socialismo”,
com a luta pelo socialismo tendo “que levar em conta o potencial político-revolucionário
das reformas sociais e tirar as consequências disto no plano da luta pelo poder”.
A esse
respeito, Marco Aurélio afirma que “um dos avanços do PT é abandonar a ideia do
poder como um lugar a ser tomado e reformado (proposta social-democrata) ou tomado,
destruído e reconstruído (proposta revolucionária clássica)”.
MAG alerta
que “esta inovação, pelo menos para o debate político brasileiro, tem de ser
aprofundada, sob pena de, aí sim, o PT sucumbir a uma das teses mencionadas e
das quais se distanciou”.
O texto de
1990, ao apresentar as coisas desta maneira, releva:
*uma tradição
que se construíra no próprio movimento comunista – o denominado eurocomunismo -
sem falar nas reflexões do professor Carlos Nelson Coutinho e outros militantes
destacados do comunismo brasileiro;
*a experiência
latino-americana que buscou escapar do dilema exposto por MAG: o Chile da Unidade
Popular (1970-1973). MAG esteve no Chile neste período e tinha opiniões fortes
a respeito, mas o tema não comparece no texto de 1990;
*as
experiências e os dilemas do trabalhismo e do desenvolvimentismo de esquerda, especialmente
no período anterior ao golpe de 1964 (dilemas que voltariam com força no
período dos governos Lula e Dilma).
Obviamente
MAG não desconhecia nada disso. Por isso mesmo cabe perguntar: por qual motivo
não incluiu (nem mesmo citou) estas três questões na equação?
Há vários motivos
possíveis, mas me concentrarei naquele motivo que parece óbvio para quem assistiu
Dark: frente ao iminente colapso da URSS, muitos militantes de esquerda
buscavam descobrir o ponto na história a partir do qual a tragédia se tornara irreversível.
Alguns localizavam este ponto na eleição de Gorbachev para a secretaria geral
do Partido Comunista soviético (PCUS), outros no período Brejnev, outros no XX
Congresso do PCUS, outros na ascensão de Stálin...
Tenho a
impressão de que para MAG o “nó” estaria na trágica cisão ocorrida no movimento
socialista, especialmente entre 1914 e 1921. Neste sentido, a defesa de uma
esquerda pós-socialdemocrata e pós-comunista seria uma tentativa de (perdoem o
comentário vintage) “rebobinar e recomeçar”.
Esta maneira
de ver as coisas tem seus pontos fortes. Mas tem também seus pontos fracos. O
principal deles é que a cisão socialdemocracia/comunismo não foi produto de um
mal entendido; resultou de diferentes opções frente a situações históricas
determinadas. Portanto, não basta querer uma esquerda que seja pós-comunista e
pós-socialista. É preciso existir uma situação histórica em que esta esquerda
possa prosperar. O fracasso do eurocomunismo, a derrota da Unidade Popular e os
dilemas do trabalhismo e do petismo no Brasil demonstram – na minha opinião – que
as bases objetivas da cisão entre socialdemocracia e comunismo não foram
superadas; motivo pelo qual, no final das contas, mesmo que por caminhos
diferentes, as ideias, as pessoas e os partidos acabam voltando ao dilema
original. (Para os que assistiram Dark: até agora não se conseguiu voltar ao
momento do acidente na ponte.)
Sigamos a
análise do texto de 1990.
Defendendo
articular “a luta pela democracia política com a luta pela democracia social”,
articulação que se desdobraria “no plano social e no plano institucional”, MAG
propõe que o PT deveria assumir “uma postura republicana” que demonstraria
“como o Estado está a serviço das classes dominantes e não é um instrumento de
conciliação social, como pretende a ideologia dominante”.
Em resumo,
MAG defendia que “para construir seu projeto de transformação socialista do
Brasil”, o PT precisaria “escapar do dilema bolchevismo x social-democracia”, evitando
tanto a “defesa intransigente da ortodoxia” quanto o “abandono da noção de
socialismo em proveito de um (neo)liberalismo que nem mesmo os (neo)liberais
praticam”.
Desde 1990
até hoje, esta “inovação” pretendida por MAG segue carente de aprofundamento.
Por “inovação”
refiro-me à ideia de que “um dos avanços do PT é abandonar a ideia do poder
como um lugar a ser tomado e reformado (proposta social-democrata) ou tomado,
destruído e reconstruído (proposta revolucionária clássica)”.
O artigo
que analisamos anteriormente foi publicado em novembro de 1990. Uma década,
dois anos e alguns meses depois o PT chegaria ao governo federal.
Hoje,
parafraseando MAG, só “cabeças acaloradas” seriam capazes de sustentar que deu
tudo “certo” ou tudo “errado”. Afinal, o PT chegou onde a esquerda brasileira
nunca havia chegado, o que contribuiu para mudanças importantes do ponto de
vista da maioria do povo. Mas também é preciso dizer que o PT fez escolhas que,
ao fim e ao cabo, confirmaram esplendorosamente que o Estado está mesmo “a
serviço das classes dominantes”, cuja derrota dependeria de um “agudo processo
de lutas sociais” que não compareceram, nem (na minha opinião) foram
devidamente incentivadas por quem poderia e deveria fazê-lo.
Há muitos
motivos para o que ocorreu, bem como para as escolhas feitas pelo Partido dos
Trabalhadores, especialmente entre 2003 e 2016.
Uma delas
é que o PT não era social-democrata, mas tinha muitos candidatos a bolchevique.
Daí resulta que – ironia da história – na tentativa de escapar do dilema bolchevismo
x social-democracia, muita gente tenha deixado de ser “bolchevique” mas pouca
gente tenha deixado de ser “social-democrata”.
O que – misturado
com a influência do trabalhismo e do desenvolvimentismo - desembocou em um
equilíbrio ecológico-ideológico que certamente não correspondia ao que Marco
Aurélio defendia e pretendia.
Um dos efeitos disto
foram as opções políticas feitas, durante os governos Lula e Dilma, em nome do “republicanismo”,
mas numa direção oposta à desejada por MAG.
Aliás, a esse respeito vale
reler o que diz o próprio MAG acerca do golpe de 1964, na entrevista concedida
a Alexandre Fortes, sua crítica ao “despreparo, uma subestimação,
completamente, dos efeitos que uma mobilização da direita poderia ter. (...)
nessa época, o Estadão publicou uma
série de artigos do [jornalista] José Stacchini, que ele reuniu num livro primoroso,
extremamente inteligente, chamado “Março de 64: Mobilização da audácia”. Onde ele, como o título
diz, credita em grande medida o êxito do golpe a essa “mobilização da audácia”.
A “audácia” que faltou a
esquerda, compareceu de sobra na direita, tanto em 1964 quanto em datas mais
recentes.
Lendo os textos de MAG,
não tenho dúvida de que ele tinha consciência plena destes problemas e limites.
Mas frente a estes problemas e limites, ao menos nos textos e nos espaços
públicos, predominava nele a tendência a apontar que o “copo” estaria “meio cheio”.
Acredito que isto se deva, entre outros motivos, a algo simples: outra atitude
colocaria em questão as premissas teóricas, programáticas e estratégicas a que
nos referimos anteriormente. Mas seria subestimar a inteligência de MAG achar
que este seria o motivo principal. Há pelos menos dois outros motivos que pesaram
mais: as conquistas reais obtidas pela classe trabalhadora e os êxitos reais da
política externa.
Hoje sabemos que estes
êxitos não sobreviveram à contraofensiva reacionária. Mas eles não são menos
reais por isso e – na minha opinião – são aqueles êxitos que explicam o fundamental
da dificuldade que MAG tinha em perceber o “lado B” de sua aposta programática
e estratégica.
Aqui é preciso explicitar
o seguinte: no terreno da política geral do PT e do governo, a influência de
MAG foi relativamente menor, embora em alguns momentos pontuais possa ter sido muito
expressiva (por exemplo, no final de 2006). Mas no terreno da política internacional
do PT e no terreno da política externa do governo, MAG sempre exerceu grande
influência.
A esse respeito, o já
citado texto de 1990 diz que a escolha dos interlocutores internacionais do PT
“está vinculada a esta preocupação de construir um projeto socialista para o
Brasil levando em conta as ricas, e às vezes dramáticas, experiências do socialismo
internacional. Abre-se fundamentalmente para uma nova esquerda que se constitui
(ou se reconstrói) politicamente na América Latina e que enfrenta vicissitudes
semelhantes às nossas”. “Dialoga, sem preconceitos, com a social-democracia, e
com as expressões do comunismo renovado que se manifestam em países como a Itália
ou mesmo no Leste Europeu”. “Colabora, ainda, com forças alternativas, como os
verdes alemães, o SOS Racisme da França e outros movimentos que buscam saídas
originais para a crise da esquerda”.
MAG prevê
que a "reconstrução" do Leste Europeu “se dará em meio a duros embates
sociais e políticos, desmentindo a tese de que a luta de classes acabou”. Diz
que a social-democracia “será confrontada com a necessidade de impulsionar lutas
sociais e políticas nesta região ou perder o controle do processo para os conservadores,
como já ocorreu”. E que a “aplicação dos programas de ajuste em quase toda a
América Latina colocará a esquerda mundial (sic) diante do desafio de oferecer um programa de reformas que
compatibilize o combate a problemas emergenciais (...) com a necessidade inadiável
de resolver questões estruturais”. O “mundo não assiste ao fim da história
hoje, como pretendem alguns, mas, ao contrário, a uma aceleração sem precedentes
desta”.
Além
disso, naquele texto de 1990, MAG considerava possível que se estivesse
“assistindo ao fim de um ciclo na história do socialismo, que tem seu início
com a formação da social-democracia e que em boa parte deste século foi dominado
pelo conflito entre socialistas e comunistas”. Para ele, o PT seria parte
integrante “deste processo de transição da esquerda mundial. Neste sentido, é
um partido pós-social-democrata e pós-comunista. Constrói sua identidade não
combatendo estas correntes, mas dialogando criticamente com elas”.
Podemos
discordar de parte desta análise – entre outros motivos por fazer mais sentido
na Europa do que no resto do mundo, onde a tradição social-democrata original
não vigorou e onde o comunismo se confundia com o anti-imperialismo. Por sinal,
não é de se admirar que em todos os textos de MAG publicados pela FPA, a China não
mereça a devida atenção. Mas, justiça seja feita, MAG não estava sozinho isso: especialmente
na década dos noventa, 9 em cada 10 “especialistas” cometeram este mesmo erro.
Isto posto,
é preciso reconhecer que daquela chave de análise, mesmo com as limitações
citadas e outras, MAG extraiu uma orientação laica, ecumênica e fortemente
latino-americanista para a política de relações internacionais do PT.
E foi com
esta abordagem que Marco Aurélio integrou aquele já citado grupo restrito de quadros
– composto também por Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães, Lula e Dilma
Rousseff, entre outros e outras – que, sem pensar o mesmo a respeito de
inúmeros temas, foram coletivamente responsáveis por formular a política
externa do governo brasileiro entre 2003 e 2016. Neste coletivo mais ou menos
informal, MAG era a principal expressão do que podemos chamar de internacionalismo
petista.
#
Passemos agora
ao que MAG diz em outro texto, intitulado “Pensar a terceira geração da esquerda”
e corresponde a uma palestra feita por ele no seminário internacional “História
e perspectivas da esquerda”, realizado na USP entre os dias 13 e 15 de agosto
de 2003. Portanto, já durante o primeiro mandato de Lula.
Diz que “entre 1989 e
os dias de hoje assistimos fundamentalmente a duas grandes transformações no
que diz respeito aos paradigmas que dominaram a esquerda no século XX. A primeira
transformação foi, sem dúvida nenhuma, a crise do modelo comunista, que teve
como acontecimentos emblemáticos a queda do muro de Berlim, de um lado, e a autodissolução
da União Soviética, de outro, arrastando com ela quase todos os partidos que,
de alguma maneira, se vinculavam a estes paradigmas, mesmo aqueles que tentavam
fazer um aggiornamento de suas posições. Por outro lado, também assistimos a
uma crise, talvez não tão dramática, mas nem por isso menos importante, dos
paradigmas social-democratas, não tanto pelas derrotas que sofreram em algumas
eleições, talvez compensadas por vitórias em outras, mas muito mais pela
desconfiguração do ideário social-democrata, em certa medida explicitada aqui
nas três intervenções que me antecederam”.
Notem que 13 anos
depois do artigo publicado na revista Teoria e Debate, a “chave de leitura”
continua a mesma: o dilema socialdemocracia versus comunismo.
No mesmo texto, MAG pergunta
(lembro de novo a data, 2003):
“É possível uma
experiência de esquerda na periferia do capitalismo, como é o caso do Brasil e
de outros países? Essa experiência está condenada de antemão a ser
inviabilizada e um governo de esquerda que se constituir vai terminar como
terminou o governo Allende ou como terminaram outros governos de esquerda na
América Latina? Ou ele vai necessariamente trair o seu ideário? Não vou dar a
resposta. Sem dúvida tenho convicções muito profundas sobre qual é a resposta,
mas quero dizer que esse é um debate político e, mais do que isso, é um debate
intelectual. Há intelectuais brasileiros que defendem a inviabilidade de um
projeto de esquerda efetivo, radical, na periferia do capitalismo”.
E conclui sua
intervenção dizendo que a “na América do Sul, ou
na América Latina, temos uma história que, de certa forma, manteve conexão com
a história das grandes alternativas do socialismo no mundo. No entanto,
detecto, e escrevi sobre isso, que vivemos uma espécie de terceira onda, uma
terceira geração de esquerda que, em certa medida, contém alguns elementos
estruturantes que eu chamaria de pós-comunistas e pós-social-democratas. O
grande problema é que essa novidade, que é uma novidade social, uma novidade
política, não necessariamente se expressou em termos teóricos, não
necessariamente foi capaz de produzir efetivamente uma referência teórica”.
Vejam que ele termina sua
exposição de 2003 repetindo, de certa forma, o que já há havia dito em 1990: existiria
uma novidade política, mesmo que potencial, mas que ainda não havia sido capaz
de “produzir efetivamente uma referência teórica”.
Que esta “referência teórica”
faz falta, estou totalmente de acordo. Mas por qual motivo fazia falta em 1990,
continuou assim em 2003 e - acrescento - segue fazendo falta em 2021?
Por qual motivo os defensores
daquela “chave de leitura” não conseguiram produzir a “referência teórica” reivindicada
pelo próprio Marco Aurélio?
Qualquer um que tenha convivido
com MAG ou lido seus textos sabe muito bem que não foi por falta de capacidade.
Nem dele, nem da coorte de intelectuais que tinham MAG como “irmão em armas”.
Claro, pode-se argumentar
que a coruja de Minerva alça voo no “cair do crepúsculo”; mas já se passaram 5
anos do impeachment, as pesquisas apontam que Lula tem chances de ser eleito nas
próximas eleições presidenciais e até agora os partidários daquela visão
defendida por MAG não produziram a tal “referência teórica” a qual ele se referia.
Por quê?
Uma possível explicação
(ainda que indireta) está contida, na minha opinião, em um dos textos do Dossiê
publicado pela Teoria e Debate em julho de 2021, mais precisamente no
texto do professor André Singer.
Neste texto, intitulado
“Marco Aurélio, lulismo e sonho rooseveltiano”, André Singer relata ter sabido
de MAG como “parte de um grupo de companheiros e companheiras que haviam tomado
uma orientação autonomista na França”.
Depois relata três conversas
tidas por ele, Singer, com Marco Aurélio:
“A primeira conversa,
creio, ocorreu na sede do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores,
perto da Praça da Sé, no primeiro semestre de 2002. Falávamos sobre o programa
do PT para o pleito, cuja confecção ele coordenou inúmeras vezes. No meio de um
raciocínio, virou-se para mim e disse: “Escuta, tem um aspecto que você precisa
entender. Existe o petismo, mas hoje em dia existe uma outra coisa, independente,
que é o lulismo” (...) Não se tratava de aumentar ou diminuir o partido, mas de
dar a César o que é de César (passe o trocadilho)”.
“(...) foi, talvez, no
início do mandato que ocorreu a segunda conversa chave. Nela, o tema eram os
planos referentes ao Nordeste. É provável que eu buscasse encaixar o assunto
nos esquemas da luta de classes, quando Marco, de novo, surgiu com o inesperado.
“Olha, existe uma componente rooseveltiana na concepção deste governo”.
“(...) Tal como fora
surpreendido pela existência do lulismo, nunca tinha me passado pela cabeça que
o modelo reformista em curso pudesse passar não pela experiência socialista europeia,
mas pela democrata norte-americana. Com o tempo percebi que ele estava certo.
Uma noção de capitalismo popular, com raízes nos EUA, explicaria diversas
iniciativas governamentais como, por exemplo, a do crédito consignado”.
“Na última vez que nos
vimos, penso que seis meses antes de sua morte, outra vez o cenário era o do
Diretório Nacional do PT no centro da cidade. (....) Estava claro, para mim, e
creio que para ele, que o sonho rooseveltiano se quebrara. Já tínhamos entrado
nesta conjuntura regressiva que, quatro anos depois, ainda nos envolve. Ao me
despedir, não sabia que precisaríamos sair dela sem as ideias e o humor do MAG”.
Considero este relato de
Singer absolutamente genial, pois de maneira totalmente imprevista ele descortina
os – na minha opinião – descaminhos da teoria e prática baseada na “chave de
leitura” construída por MAG desde seu regresso do exílio.
Focado em superar as tradições
comunista e socialdemocrata, MAG foi sendo arrastado (e, mais do que isso,
ajudando a construir) desdobramentos imprevistos do ponto de vista daquele
suposto dilema socialdemocracia/comunismo. Alguns destes desdobramentos aparecem
no relato de Singer: do “autonomismo” ao lulismo, do “socialismo democrático”
ao “sonho rooseveltiano”, da derrota de 1964 à derrota de 2016.
Dizendo de outro modo:
MAG fez parte de uma geração que fez a crítica da política predominante na
esquerda hegemônica no período pré1964. Quatro décadas depois, parte daquela
geração se viu diante de dilemas para os quais apresentou soluções teoricamente
aparentadas com as posições daquela mesma esquerda pré1964.
A esse respeito, lembro
de MAG comentando comigo que a política do PC chinês nos anos 2000 lembrava a
política do PC soviético nos anos 1950, época em que o PC chinês proferia as
maiores acusações contra o PC soviético. MAG tinha razão no comentário; mas em
certa medida o mesmo poderia ser dito acerca de algumas posições existentes no
PT e no antigo PCB pré 64.
Essas analogias não constituem
nenhum mistério para quem acompanhou a trajetória de parte da esquerda chilena,
por exemplo aqueles que integraram a esquerda do PS chileno e o MIR na época do
governo da Unidade Popular (1970-1973). Muitos dos que criticavam Allende e defendiam
“avanzar sem transar” (o que em português é algo do tipo avançar sem
conciliar), tornaram-se defensores acérrimos das supostas virtudes da Concertación.
Aliás, como me lembrou outro
dos alunos de MAG, “o governo Lula é muito herdeiro de uma certa leitura dos
"erros chilenos" e da necessidade vital de fazer diferente, em geral
numa chave fortemente não confrontacionista e de alianças amplíssimas”. E o que
ocorreu em 2013 e o golpe de 2016 “desnorteiam muito essa visão”.
Ou, para citar um ex-ministro
do governo Lula, em palestra feita no campus de Santo André da UFABC, “achávamos
que se fizéssemos um governo moderado, isso estimularia o outro lado a também
ser moderado”. Como sabemos, não foi exatamente isto o que aconteceu.
#
O terceiro texto que vou comentar – texto
inédito até sua publicação no já citado Dossiê - é o roteiro utilizado
por Marco Aurélio Garcia em sua participação no Colóquio Internacional
"Claude Lefort: a invenção democrática hoje", na Universidade de São
Paulo, em 14 de outubro de 2015.
Segundo
MAG:
“Todos os
segmentos da esquerda brasileira – da tradicional até os grupos armados –
haviam sofrido uma terrível derrota política e militar durante os anos 1970. Essa
derrota era sobredeterminada pela crise dos paradigmas ortodoxos que haviam,
por décadas, informado as esquerdas no Brasil, na América Latina e no mundo. Antes
mesmo da queda do Muro de Berlim (em 1989) e da autodissolução da União
Soviética (em 1991) a crise polonesa e a emergência do sindicato Solidariedade,
apontavam internacionalmente para a possibilidade (ou, ao menos, para a
necessidade) de uma alternativa pós-comunista, que seria também pós-social-democrata,
tendo em vista os descaminhos da socialdemocracia europeia naquele momento”.
Como se vê,
25 anos depois do primeiro texto citado, a tese básica segue a mesma.
No texto
de 2015, fala-se de projetos de mudança, de novas políticas econômicas e de uma
“revolução democrática”. Critica-se o pragmatismo. Mas não se fala do
socialismo.
Lembro que
em 1990 a questão se colocava assim: “para construir seu projeto de
transformação socialista do Brasil”, o PT precisaria “escapar do dilema bolchevismo
x social-democracia”, evitando tanto a “defesa intransigente da ortodoxia”
quanto o “abandono da noção de socialismo em proveito de um (neo)liberalismo
que nem mesmo os (neo)liberais praticam”.
Quando
lemos este texto de 2015, não fica clara a relação entre o projeto socialista e
a alternativa realmente existente, que veio sendo construída desde 1990 até 2015.
Claro que
não se deve exagerar neste argumento, pois há outros textos em que a questão é
mencionada (por exemplo, num texto de 2005 sobre os 25 anos do Partido, quando
ele fala da “possibilidade de uma alternativa nacional, democrática, popular e
socialista para o Brasil”).
Ressalto,
neste texto de 2015, a maneira como MAG critica os que apresentam os processos
da região como sendo algo que não são. Vejamos o trecho:
“A maioria
dos processos democráticos em curso na América do Sul carece de uma narrativa, aí
incluído o que ocorre no Brasil”.
“No que
vem ocorrendo na América do Sul nesta última década, onde há claros indícios de
um processo de revolução democrática em curso, há, o risco de revestir essas
transformações de um conteúdo que não lhe é próprio e até mesmo oposto”.
“Um
discurso fundado em experiências revolucionárias passadas e fracassadas
não será capaz de ocupar o vazio que a ausência de uma narrativa original sobre
o processo de invenção democrática em curso deixa.
E é nesse ponto
e dessa forma que o tema do socialismo aparece: como desdobramento da
democracia.
“Uma das
contribuições que Lefort nos deixou foi a de associar o destino do
socialismo às perspectivas da revolução democrática. Por isso ele abre
sua reflexão sobre a experiência soviética – no La Complication – com a frase aparentemente paradoxal: “O comunismo pertence
ao passado; por outro lado, a questão do comunismo permanece no coração de
nosso tempo.”
O
comunismo permanece no coração. Mas a “equação” que conduz da revolução democrática
ao socialismo não deixa de ser uma atualização customizada da fórmula socialdemocrata
citada por MAG no texto de 1990, a saber: “O socialismo passava a ser o próprio
movimento pelas reformas”. A fórmula reformista é radicalizada no último texto
de MAG (de 2017), como foi destacado, com propósitos distintos, pelo professor
Victor Marques.
MAG termina
o texto de 2015 conclamando a democracia, não o socialismo. É sintomático que uma
tradição teórica que insistiu tanto em não dissociar socialismo e democracia,
termine inúmeras vezes cometendo - com sinais trocados - a justamente criticada
atitude daqueles que diziam que primeiro o socialismo, depois a democracia.
#
Já comentamos que no
terreno da política geral do PT e do governo, a influência foi relativamente menor.
Isso fica claro no
balanço que MAG fez em 2005, no aniversário de 25 anos do Partido, seja no que diz
acerca do “interregno do governo Itamar, que o PT equivocadamente decidiu não
integrar”, seja quando ele diz que “o Plano Real e o governo FHC não eram um
plano/governo “de direita”, mas se transformaram na alternativa “da direita”.
Por outro lado, nesse
mesmo texto MAG diz que o “discurso sobre a política econômica apresentou dois
graves problemas. Primeiro, coincide com o dos conservadores, quando celebra
unilateralmente alguns aspectos – metas de inflação, superávit primário, risco
país – e silencia ou é parcimonioso sobre questões-chave como a forte diminuição
de nossa vulnerabilidade externa. Segundo, não tem sido capaz de explicitar um
projeto estratégico de desenvolvimento que aponte mais além do nacional-desenvolvimentismo
e do receituário do Consenso de Washington”.
Tive a oportunidade de
ver MAG defendendo esta abordagem, que usando minhas palavras resumo assim:
nossa prática seria melhor do que nossa teoria; cabe-nos mudar a “narrativa”. Deixo
para outra ocasião polemizar com esta abordagem “narrativa”, que virou moda em
alguns meios; mas no terreno fático, o discurso sobre a política econômica não
era apenas um discurso, correspondia a hegemonia de um setor – liderado por
Palocci – que deu continuidade à parte das políticas adotadas no período FHC.
MAG adotava – nos textos
e nas aparições públicas – uma atitude crítica, mas muito cautelosa, o que é
compreensível dado seu papel no governo e sua opção na “luta interna”. A
questão é saber se esta cautela – politicamente compreensível – afetou a qualidade
de sua análise.
Por estes e outros motivos,
é preciso saber como lidar com a análise histórica e com o debate teórico. Discutir
a influência efetiva de MAG e de suas propostas em determinados acontecimentos
é diferente de interpretar determinados acontecimentos à luz das opções
programáticas e estratégicas propostas por MAG.
Para exemplificar com
um tema que foi abordado por Victor Marques na aula-debate: uma coisa é analisar
as condições históricas em que uma ditadura revolucionária se impõe; outra
coisa é formular uma teoria acerca da ditadura do proletariado. Quaisquer que
sejam as posições que se tenha, são âmbitos diferentes.
Neste sentido, mesmo
que possamos concluir que a posição de MAG foi, em um caso concreto, a “politicamente
correta”, isto não se estende necessariamente à suas premissas teóricas; e vice-versa:
uma derrota não invalida necessariamente as premissas dos derrotados.
Os três livros publicados
pela FPA contribuem para que se possa fazer esta discussão, embora de maneira
insuficiente, primeiro porque muitos dos textos são fortemente marcados pela
retórica oficial, segundo porque constituem apenas pequena parte dos textos de
MAG. É líquido e certo que seus arquivos revelarão muita coisa interessante.
Feitas estas ressalvas,
os textos publicados no livro A opção Sul-americana confirmam os pontos
fortes e os pontos fracos do programa e da estratégia defendidas por Marco Aurélio.
Quanto aos pontos fortes,
me concentro naquilo que é citado no artigo de Maria Regina Soares de Lima no
Dossiê: “a heterogeneidade política e ideológica da América do Sul”; “a unidade
regional constitui imperativo estratégico”; “a tarefa da política externa
altiva e ativa é impedir que a heterogeneidade se transforme em divisão e polarização,
condições que nos colocaria em extrema fragilidade diante da ameaça de intervenção
externa”; “escrevendo em 2005, divergia das raquíticas análises correntes que
identificavam uma esquerda populista, do mal, e uma socialdemocrata, do bem”.
Já os pontos fracos - que na minha opinião decorrem direta
e indiretamente da “chave de leitura” já citada – dizem respeito a ausência de
uma reflexão de fundo: 1/ sobre as tendências do capitalismo e do imperialismo;
2/ sobre as possibilidades do desenvolvimento capitalista na região; 3/sobre a
China.
No caso da China, a explicação me parece a seguinte: a sobrevivência
e fortalecimento do PC chinês mantinha algum nível de contradição com a opinião
de MAG sobre o esgotamento da tradição comunista. Já falei a respeito num texto
em que polemizo com artigo recente do professor Fiori, portanto não vou
insistir aqui.
Quanto aos outros dois pontos, penso que na prática se
caminhou no sentido de superestimar as possibilidades de uma “convivência
pacífica” com os Estados Unidos e, também, as possibilidades de desenvolver um “capitalismo
de novo tipo” na região.
Para exemplificar, cito alguns trechos extraídos dos textos publicados no
livro supracitado:
No texto “O melancólico fim de século da política externa”:
“O governo Lula definiu desde
2003 seus objetivos fundamentais: a retomada do crescimento econômico, capaz de
reverter a tendência de décadas de recessão ou crescimento medíocre; a
compatibilização desse crescimento com um processo de distribuição de renda,
alicerçado na construção de um mercado de bens de consumo de massas, por sua
vez ancorado na expansão do emprego e dos salários, na oferta ampliada de crédito
e nas políticas de transferência de renda; a conquista do equilíbrio
macroeconômico, que se encontrava ameaçado em 2002, e a redução da
vulnerabilidade externa, em grande medida lograda pela extraordinária ampliação
e diversificação do comércio exterior; o aprofundamento da democracia e a
inserção internacional soberana do país. A
todos esses elementos se somava a decisão de dar maior consistência à integração da
América do Sul”.
Notem que o tema da (re)industrialização não comparece nesta
síntese; e a redução a vulnerabilidade externa seria “em grande medida” lograda
pela via do comércio. Comércio de quê? Cito novamente MAG:
“Essa opção decorre da
percepção brasileira acerca das potencialidades da América do Sul no mundo de
hoje, mas, sobretudo, no de amanhã. O continente tem o maior e mais
diversificado potencial energético do planeta – se levarmos em conta suas
reservas hidrelétricas, de gás e de petróleo, além de sua capacidade de
produção de biocombustíveis. A América do Sul possui a maior reserva de água
doce do mundo. Sua agricultura ocupa lugar de destaque, não só pela extensão e
fertilidade de suas terras como pelos avanços científicos e tecnológicos alcançados
nos últimos anos. Suas jazidas minerais são enormes e diversas. Para um mundo
que se mostra (e se mostrará mais ainda) ávido de energia, água, alimentos e minérios,
os fatores antes alinhados mostram quão relevante pode ser a contribuição da
região para o desenvolvimento da humanidade. Some-se a tudo isso a rica
biodiversidade do continente, o tamanho de sua população, a extensão e a
diversidade de seu território e clima”.
E só depois deste desfile primário-exportador
vem o complemento:
“A América do Sul tem um
parque industrial de porte, ainda que concentrado em poucos países. Abriga
universidades e centros de pesquisa científica e tecnológica de alta qualidade.
Possui
uma exuberante cultura”.
Como foi ressaltado
anteriormente, o texto glosado é em certa medida “oficial”. Mas o que está escrito
está escrito. E não admira que, por este caminho, MAG logo se veja na obrigação
de defender o “populismo” contra as críticas de direita.
A esse respeito, ele diz
assim:
“Muitos analistas não hesitam
em caracterizar o fenômeno como “renascimento do nacionalismo-populista” –
qualificado como “arcaísmo”, posto que remeteria às problemáticas dos anos 1950
na região”.
“A denúncia do “nacionalismo
populista” como “arcaísmo” é ela mesma “arcaica”, política e conceitualmente.
Reflete, em versão atualizada, os mesmos preconceitos que marcaram a avaliação
de fenômenos como o peronismo na Argentina, ao qual se procurou, muitas vezes,
colar a etiqueta “fascista”.
Noutro texto, intitulado “Dez
anos de política externa” (2003), MAG chega a dizer o seguinte:
“É importante destacar, entretanto,
que essa vocação para celeiro do mundo da região não depende exclusivamente de
fatores naturais ou mesmo de uma força de trabalho barata, como no velho modelo
agroexportador. A agricultura da região – em particular a brasileira – ganhou altos
níveis de produtividade em função da pesquisa científica e tecnológica, da qual
uma entidade como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) é paradigmática. A América do
Sul possui grandes florestas e uma opulenta (e inexplorada) biodiversidade,
além de um rico e diversificado acervo mineral”.
“Nos últimos anos, conflitos
em torno de impactos ambientais e/ou sociais de grandes projetos energéticos,
de logística ou mineiros, ganharam visibilidade e testemunharam o avanço da
democracia. Reduziu-se o espaço para ações predatórias contra a natureza ou em
detrimento de povos originários”.
“O parque industrial da região
é relevante, a despeito de problemas conjunturais. Materializando-se a preocupação
de muitos governos da América do Sul de levar adiante amplos programas de
formação de mão de obra e de inovação tecnológica, a indústria poderá atingir
um novo patamar, comparável ao das economias emergentes mais competitivas”.
“Um dado demográfico é
essencial: 400 milhões de sul-americanos formam parte do mercado de consumo,
beneficiados em grande medida por políticas de inclusão social. A relevância
desse mercado de bens de consumo de massa pôde ser constatada quando da
irrupção da crise econômica mundial a partir de 2008. O retraimento dos fluxos
comerciais internacionais foi compensado pelo vigor do mercado interno”.
Aqui faço um parêntesis: Há
alguns anos, tive a oportunidade de assistir a uma palestra de um chanceler de
outro país, pessoa que cumpriu um belíssimo papel em Mar del Plata no enterro
da ALCA. E o que ouvi foi mais ou menos o seguinte: que a experiência dos
governos progressistas da região havia demostrado que certas ideias dos anos
1950 – por exemplo, a crítica a troca desigual, a maldição do primário-exportador
etc., as palavras são minhas mas o sentido era esse – não teriam mais a mesma
vigência.
Na minha opinião, a experiência
dos chamados governos progressistas e de esquerda demonstrou o contrário: que o
tipo de desenvolvimento possível com base numa economia primário exportadora será
sempre limitado. E o “vigor do mercado interno” nem de longe dá conta do
problema – que na minha opinião depende um imenso investimento estatal,
concentrado em bens duráveis de consumo público (ferrovias, hidrovias,
reconstrução das cidades etc.).
Voltando ao texto de MAG de 2013:
nele fica explícito o quanto se subestimou a crise de 2008 e seus
desdobramentos. Lá se pode ler o seguinte:
“Essa crise teve consequências
muito distintas daquela que abalou o mundo em 1929, quando o continente
enfrentou grave depressão econômica e social e aguda instabilidade política. A
última década tem mostrado a América do Sul como uma região estável, onde se
fortalece a democracia. Com exceção do episódio da destituição arbitrária de
Fernando Lugo no Paraguai – pronta e unanimemente condenada pelo Mercosul e pela Unasul –, os presidentes de todos os demais países da região
foram eleitos em pleitos limpos e com forte participação popular”.
Parte da subestimação tinha raízes
na análise econômica, parte tinha raízes na análise política. E esta última incluía
subestimar de um lado o imperialismo e, de outro subestimar a direita brasileira,
em particular as forças armadas.
Sobre a subestimação do
imperialismo, destaco o seguinte trecho:
“A
transformação de um até então anódino G20 financeiro em uma instância de maior
peso, revelou que as grandes potências passavam a reconhecer – ainda que sem
tirar todas as consequências – não ser mais possível enfrentar o grave momento
que vivia a humanidade com o mesmo grupo de países, sobretudo, porque eles tinham
responsabilidade central na catástrofe que se desenhava”.
Quanto às forças armadas, infelizmente
a política externa deu sua dose de contribuição ao que ocorreria a partir de
2016, ao não enxergar certos efeitos colaterais da participação na MINUSTAH. A
esse respeito, MAG diz o seguinte:
“Quando o Brasil integra e
comanda a Minustah, no Haiti, ao
abrigo das Nações Unidas e do Direito Internacional, ele está não apenas
participando de uma iniciativa multilateral, mas dando sentido próprio a esse
tipo de missão, distinto das intervenções internacionais passadas em países
demandantes de estabilização”.
Em 2014,
no texto “As novas faces da integração regional”, MAG diz o seguinte:
“Todos os elementos expostos
até aqui esboçam uma explicação de por que a região – apesar de viver os problemas
da crise de 2008 – pôde resistir, melhor que outras partes do mundo, às turbulências
externas, ao mesmo tempo que atraía um significativo número de investimentos
internacionais e mantinha suas conquistas sociais, necessárias para reduzir as
desmesuradas iniquidades ainda latentes”.
“A
realidade é que hoje a América Latina e o Caribe têm pouca importância na política
externa dos EUA, como ocorrera em outras décadas. Entretanto, já em algumas
ocasiões os EUA voltaram seus olhos, em termos diplomáticos, para a América
Latina, no momento em que sentiram sua hegemonia ameaçada na região. Foi assim durante
a Segunda Guerra Mundial, quando formularam a política de "boa vizinhança.
(...) Dito isso, a relação com os EUA tem que se assentar sobre novas bases.
Não se pode persistir em um antiamericanismo – que tem justificativas
prescritas em outros tempos – nem em um alinhamento incondicional, também
obsoleto”.
Depois do impeachment, num texto
de 2017, publicado numa coletânea organizada por mim, intitulada Uma política
externa altiva e ativa, MAG diz o seguinte:
“São muitos os sinais de
involução da situação sul-americana: a prolongada crise venezuelana, as
pressões da direita no Equador, a derrota de Evo Morales no plebiscito
boliviano, a vitória de Macri na Argentina, as dificuldades do governo de
Michelle Bachelet no Chile, a exclusão da esquerda no segundo turno da eleição
presidencial peruana, a derrota da proposta de paz no referendo da Colômbia,
para citar os exemplos mais relevantes.”
Mesmo assim MAG afirma que a
política externa brasileira, política “que
alguns tentaram qualificar depreciativamente como “terceiro mundista” – não nos
tenha afastado das grandes potências. Se assim fosse, como explicar as boas
relações que mantivemos com os Estados Unidos, a despeito de inevitáveis
contenciosos, ou o fato de haver sido o Brasil considerado como “aliado estratégico”
da União Europeia, logo após a China? Como
explicar, igualmente, nossa presença como convidado às reuniões do G8 e,
posteriormente, nossa presença destacada nas negociações da Rodada Doha (da
OMC) e no G20 financeiro, que teve destacado papel para evitar que a crise de
2008 se transformasse rapidamente em catástrofe?”
MAG conclui seu texto dizendo
que “será
fundamental avançar (nacional e regionalmente) na (auto)crítica desses 15 anos
de emergência de movimentos sociais, de transformações governamentais e de
surgimento de uma nova cultura política. Não há boas políticas sem um forte
debate de ideias. Constrangidos pelos desafios do exercício das tarefas governamentais,
fomos frequentemente negligentes em realizar uma reflexão crítica sobre a
herança passada e sobre os desafios futuros. Essa reflexão não é condição
suficiente, mas necessária, para nossa ação. (...) É fundamental entender que
está em curso uma grande mudança geopolítica no mundo. Não só entender, mas
revertê-la”.
O que talvez seja o último
texto publicado em vida por MAG saiu no LMD, em junho de 2017 e se
intitula exatamente “Retomar o ciclo progressista”:
“não era o socialismo que
estava em jogo. As transições colocavam na ordem do dia reivindicações de democracia
política, econômica e social no marco do capitalismo”.
“Para tanto, em vez de uma
hoje improvável revolução permanente, ou de uma recaída social liberal, abre-se
o espaço para a invenção de um processo permanente de reformas, com as quais o próprio
capitalismo realmente existente tenha dificuldades de conviver e, por essa
razão, possa ser desestabilizado, abrindo espaço para mudanças importantes”.
“Tendo claro que a revolução
dos anos 1960 não mais estava na ordem do dia, os governos e partidos
progressistas seguiram o caminho de reformas inclusivas. Mas não foram capazes,
na maioria dos casos, de impulsionar um reformismo forte, para retomar uma
expressão cara à esquerda italiana, capaz de dar perenidade e sustentabilidade
política às importantes transformações em curso”.
“O mal não está em fazer
reformas e deixar de “fazer a revolução” ou por ela esperar uma eternidade, limitando-se
ao exercício crítico do capitalismo ou dos desvios das esquerdas. O problema
está em não inserir um processo de reformas em uma visão de longo prazo de
mudança social, política e cultural, capaz de mobilizar uma sociedade que não
pode ser reduzida ao papel de espectador. É a ligação constante de governos e
partidos com a sociedade que impede uma leitura individualista e conservadora
das transformações em curso, como tem aparecido em muitas pesquisas”.
A lógica embutida neste raciocínio,
feito em 2017, pode ser melhor compreendida a partir do que está num texto de
1997, sobre o Manifesto Comunista. Citemos:
“Rompendo com o pensamento
único, este mundo do fim de século aparece não só como um campo de constrangimentos
econômicos, sociais e políticos, mas também como um espaço de enormes oportunidades
para o progresso e bem-estar humanos, que não se realizarão nos marcos de uma
sociedade capitalista, ainda que reformada”.
“Abre-se, assim, claramente a
problemática de um mundo pós-capitalista. Mas, ao invés de construir a utopia
de uma sociedade alternativa que os progressos materiais de hoje podem
viabilizar facilmente, melhor é concentrar a reflexão sobre os meios de
enfrentar a barbárie capitalista na sua versão neoliberal e de construir os instrumentos
de sua superação”.
Porque seria “melhor”
concentrar esforços contra a “versão neoliberal”?
Uma possível resposta está em um
texto posterior, de 2001, onde afirma-se o seguinte:
“Um programa socialista para o
século XXI, diferentemente de outros no passado, não parte de uma meta
construída a partir da qual se desenhará um caminho para atingi-la. Não se
trata de um movimento teleológico. Sua única premissa: o capitalismo não é o
fim da história e, portanto, coloca-se no horizonte, ainda que em forma imprecisa,
uma sociedade pós-capitalista. A diferença está em que o processo que conduz a
essa sociedade é tão importante quanto o resultado. Este não pode ser separado
daquele. Movimento (meios) e fins se articulam mutuamente. Vou, então, alinhar
alguns temas que me parecem importantes para essa agenda do socialismo no
século XXI”.
Os temas abordados por MAG neste
texto de 2001 são: INTERNACIONALISMO E NAÇÃO; PROPRIEDADE, MERCADO, PLANEJAMENTO,
REGULAÇÃO; A IGUALDADE SOCIAL; O MUNDO DO TRABALHO; NOVOS PARADIGMAS DE
DESENVOLVIMENTO; A SOCIALIZAÇÃO DA POLÍTICA; EXPLORAÇÃO E OPRESSÃO; SOCIALISMO,
CULTURA E CONHECIMENTO; SUJEITOS SOCIAIS; PARTIDO E MOVIMENTO.
Mas para os fins que estamos
debatendo aqui, o tema mais importante é intitulado “O processo”, onde MAG diz
o seguinte:
“A luta pelo socialismo envolve
em muitos países, e este é o caso brasileiro, uma curiosa relação com o capitalismo
realmente existente no país. Um programa de transformações centrado em
reformas econômicas de cunho fortemente redistributivista, que exija uma reorientação
importante do modelo de desenvolvimento, associadas a um processo de
radicalização da democracia e de defesa da soberania nacional com a
correspondente designação de um novo lugar para o Brasil no mundo, pode ter
pouco a ver com o socialismo e ser até entendido como um projeto de
fortalecimento do capitalismo brasileiro. Essas reformas, consolidando abstratamente
o capitalismo no Brasil, desestabilizam-no concretamente, sempre e quando as
mudanças forem resultado de intensa mobilização social”.
“Abre-se, então, um processo
continuado de transformações em que as conquistas parciais preparam novas conquistas
e sinalizam que as possibilidades de reformas profundas deixam o terreno das
possibilidades para transformar-se em viabilidades”.
“Para tanto, e especialmente no
plano das transformações internacionais, deve-se estabelecer uma dialética
entre a consciência dos constrangimentos e a vontade política de vencê-los.
Política é ação, e por maiores que sejam suas exigências de racionalidade há
uma margem para decisão e ação transformadoras da vontade humana”.
Como se pode ver pelos textos
acima, as já apontadas limitações dos textos publicados no livro A opção
Sul-americana devem ser lidas em diálogo com os textos que integram o livro
Construir o amanhã. Reflexões sobre a esquerda (1983-2017).
#
Para concluir, quero destacar
o texto apresentado por MAG em um encontro das fundações Maurício Grabois
(PCdoB), Perseu Abramo (PT) e Leonel Brizola – Alberto Pasqualini (PDT). O
encontro ocorreu no dia 14 de julho de 2017, portanto seis dias antes da
partida de MAG.
O texto se intitula “CONSTRUIR
O AMANHÔ. O professor Victor Marques fez vários elogios a este texto, a
começar pelo título, que ele considera “poético”. Óbvio que o texto tem muitas
qualidades, mas o que me chamou a atenção é o fato de que o “amanhã” não inclui
nenhuma referência, nem mesmo ritual, ao tema do socialismo.
Considero isto uma
lacuna espantosa, entre outros motivos porque não tenho dúvida alguma de que
MAG foi um socialista convicto e militante até o último segundo de sua vida. E
o referido texto foi lido em um espaço de fundações de partidos que, em maior
ou menor medida, tem relação com a tradição socialista. Portanto, a ausência de
qualquer referência à “palavra maldita” não é um detalhe menor.
Como para mim fica
claro da leitura do parágrafo a seguir, trata-se do efeito colateral de uma
linha política, que nos dias que correm convencionou-se chamar de “frente ampla”:
“As forças
progressistas aqui reunidas sabem que têm um caminho complexo e árduo a
percorrer. Que exige derrotar os atuais donos do poder e que supõe entender
criticamente as razões da grande derrota que sofremos. Mas que depende, também,
e essencialmente, de nossa capacidade de formar uma grande coalizão social e
política capaz de construir um novo amanhã para o Brasil. Essa coalizão tem de
ser mais ampla que o espaço das esquerdas. Aos setores progressistas,
representados por partidos de esquerda e movimentos sociais hoje agrupados em
Frentes de intervenção política, compete conduzir um movimento, que se faz cada
vez maior e mais combativo. Compete fundamentalmente atrair amplos setores democráticos
em todas as esferas da sociedade brasileira, inclusive aqueles que,
equivocados, participaram da aventura golpista”.
A ausência de referência
explicita ao socialismo enquanto parte integrante do “amanhã” a ser construído tem
implicações práticas sobre a potência de nossa ação, aqui e agora. Não se trata
apenas da discussão programática, tática e estratégica. Há um elemento mais de
fundo: uma das causas da derrota sofrida em 2016 é a ausência de uma permanente
batalha ideológica em favor de uma cultura de massas de novo tipo. E é
impossível para nós travar esta batalha abrindo mão da defesa explícita do
socialismo, pois é esta defesa que “dá liga” e “sentido” ao conjunto da obra. A
não ser, é claro, que se aceite que o movimento (cego) é tudo, o fim nada.
Não quero exagerar
estas conclusões e estou certo que os que tiveram contato mais próximo com MAG e
compartilham suas posições vão corrigir várias afirmações aqui feitas e várias
injustiças que possam ter sido cometidas. Mas estou seguro de que MAG apreciaria
este tipo de debate.
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Para concluir, como relato
pessoal, posso dizer que nas últimas vezes em que estive com MAG, o encontrei
cada vez mais preocupado, não apenas com a situação em si mesma, mas também com
a nossa dificuldade de compreender o que estava ocorrendo e o que poderia vir a
ocorrer no mundo, na região e no Brasil.
Aliás, uma de suas últimas
participações destacadas na vida interna do PT foi integrar a comissão de teses
do 6º Congresso Nacional do PT (junho de 2017), composta por outras vinte
pessoas. Naquela ocasião, MAG contribuiu ativamente para a tentativa de uma
reformulação global da estratégia e do funcionamento partidários, tentativa que
terminou frustrada e com ele fora do Diretório Nacional, como já expliquei
noutro texto.
Seja como for, estou
seguro de que nos próximos anos e décadas muitos “cientistas” políticos,
historiadores e especialistas em política de relações internacionais escreverão
a respeito de sua vida e obra.
Para os que tivemos a
chance de conhecer e conviver com Marco Aurélio – e também, pelo menos no meu
caso, disputar duramente contra ele e várias de suas posições – fica a
lembrança e saudade carinhosa por alguém divertido, culto, ateu irredutível, um
camarada que não tinha vergonha de ser gauche na vida. Faz e seguirá fazendo
muita falta.
ps. na aula debate de 20 de julho, a professora falou sobre a importância de estudarmos não apenas a "vida", mas também a obra intelectual de MAG. Isto é particularmente verdadeiro para os "internacionalistas, especialmente para os que estudam a política externa no período dos governos Lula e Dilma; mas também para os que estudam a América Latina e Caribe entre 1989 e 2016. Espero que os cursos de graduação e pós em RRII incluam (ou reforcem a presença) de MAG na sua bibliografia obrigatória. A Universidade ganhará com isto.
ESTE TEXTO NÃO FOI
REVISADO.