quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Tarso Genro: de quem é a "culpa"?

Recentemente, o professor José Luis Fiori colocou o dedo na ferida: a responsabilidade das forças armadas, enquanto instituição, pelo governo Bolsonaro. E a coerência entre esta atitude e a história pregressa da instituição militar em nosso país.

 

O texto do professor Fiori pode ser lido aqui:

 

http://valterpomar.blogspot.com/2021/01/fiori-as-forcas-armadas-e-outras.html

 

Infelizmente, a posição do professor Fiori está longe de ser majoritária na esquerda brasileira. Um bom exemplo disso é o artigo do companheiro Tarso Genro, disponível no endereço abaixo:

 

http://www.ihu.unisinos.br/606373-governo-bolsonaro-atuou-para-disseminar-o-coronavirus-diz-estudo

 

No citado artigo, Tarso Genro afirma o seguinte: “Este artigo quer propor uma outra visão sobre a responsabilidade da instituição militar – não sobre os militares singularmente tomados – na matança que o Governo Federal proporciona com a sua política sanitária genocida”.

 

Segundo ele, “os militares do país – na sua ampla maioria – não querem que o país seja – no futuro – o que é o Rio de Janeiro hoje. Este é o meu ponto de partida. O golpe contra Dilma e a Constituição Federal pode ter tido a simpatia de uma parte das forças militares do país, mas não foi promovido por nenhuma delas”.

 

A pergunta que faço é: sem o apoio da cúpula das forças armadas, o golpe contra Dilma teria ocorrido? A prisão de Lula teria ocorrido? A candidatura Bolsonaro teria sido o que foi?

 

Não se tratou apenas de “simpatia”, mas de interferência aberta e direta, totalmente inconstitucional e ilegal. Os fatos são conhecidos. Negá-los é mais ou menos como negar a responsabilidade da cúpula da ditadura na prática de torturas, que eram uma política de Estado, não um assunto dos “porões”.

 

Por qual motivo Tarso nega aquilo que é público? Na minha interpretação, porque ele considera que “não é correto – nem tática nem estrategicamente – colocar todas as instituições no mesmo saco”. 


Dito de outra forma: por acreditar que não é possível derrotar ao mesmo tempo Bolsonaro e as Forças Armadas, ele dissocia artificialmente ambos, reduzindo demasiado os vínculos e as responsabilidades.

 

Sobre a pandemia, Tarso vai além. Diz que não ser “

correto, igualmente, outorgar responsabilidades “concentradas” sobre os militares, na mortandade em curso”. 


Claro, a responsabilidade pode ser jogada sobre os negacionistas, sobre certos meios de comunicação, sobre o empresariado, sobre prefeitos, governadores, sobre o presidente...

 

Mas a questão concreta é: o presidente é militar, o vice é militar, o ministro da Saúde é militar. Portanto, existe uma responsabilidade “concentrada” neles, não por nós, mas por eles mesmos. 


Novamente, o que Tarso está dizendo, na minha interpretação, é que não seria conveniente enfatizar esta concentração de responsabilidades.

 

E não seria conveniente “porque (...) a identidade guiada por esta aparência imediata pode levar a equívocos graves. No caso, esta atribuição aos militares do Exército pode contribuir para dar maior opacidade à política, amortecendo as responsabilidades principais do que ocorre aqui, que não foi provocado pela instituição que, no fundamental, respeitou os protocolos mínimos republicanos da nação”.

 

Como é? A instituição (no caso, ele fala do Exército) “respeitou os protocolos mínimos republicanos da nação”? Quando mesmo??

 

Não é preciso ir muito atrás na história, basta lembrar das manifestações públicas de inúmeros generais, inclusive de Villas Boas, pedindo a condenação, prisão e interdição da candidatura de Lula, para se dar conta de que a afirmação de Tarso não corresponde a verdade.

 

O mais curioso é o argumento seguinte, a saber: “No caso de fixar-se esta culpa, ficaria mal resolvida uma questão de fundo: por que um presidente, precisamente por não trair a sua sórdida mensagem eleitoral depois da eleição, conseguiu sobreviver como governante de uma nação, sem qualquer respeito à moralidade republicana e se fez o projeto das suas classes dominantes, emprestando a sua face ao corpo político neoliberal do país?”

 

Uma das respostas, que Tarso não quer ver e que Fiori apontou com todas as letras, é: o apoio armado. Não só das Forças Armadas, mas também das polícias, milicianos e particulares.

 

Tarso considera “errado, do ponto de vista político, e injusto, do ponto de vista histórico, identificar o Exército Brasileiro com a chacina sanitária. É errado, porque ajuda a extrema direita militar a se reorganizar na ativa e é errado porque Bolsonaro não representa nem de longe a moralidade média das FFAA – nem sua vocação política que é positivista conservadora, mas não fascista -; e é errado, porque reduz a responsabilidade objetiva e subjetiva dos militares da reserva, dos políticos do entorno de Bolsonaro, das religiões do dinheiro que lhe dão sustentação e do consórcio midiático-empresarial que o elegeu presidente e ainda lhe mantém no poder. Este é consórcio responsável pela crise política em curso e pela mortandade em escancarar o seu terror”.

 

Vamos nos focar primeiro na injustiça “do ponto de vista histórico”.


Historicamente, temos não apenas um ministro militar, mas um conjunto de militares no ministério da Saúde e noutras repartições públicas, cometendo desatinos propositais. Isto são os chamados fatos históricos. Tudo bem que estamos em tempos negacionistas, mas tudo tem limite.

 

Agora vamos ao tema do erro “do ponto de vista político”. 


Segundo Tarso, “identificar o Exército Brasileiro com a chacina sanitária (...) ajuda a extrema direita militar a se reorganizar na ativa”. 


Há um problema de tempo verbal neste raciocínio: a extrema direita já está reorganizada e controla a ativa. A questão, portanto, é oposta: para desmontar a extrema-direita, precisamos “colocar o dedo na ferida”.Entre outros motivos, pelo seguinte: se eles puderem fazer tudo o que estão fazendo e a instituição conseguir sobreviver incólume, que estímulo terão os setores hoje minoritários nas FFAA para lutar contra o predomínio da direita?

 

Tarso afirma, também, ser errado politicamente porque “Bolsonaro não representa nem de longe a moralidade média das FFAA – nem sua vocação política que é positivista conservadora, mas não fascista”. 


Não quero entrar em batalhas acerca do significado do fascismo, até porque não acho que o governo Bolsonaro seja propriamente fascista; se fosse o mais provável é que (na melhor das hipóteses) Tarso e eu estivéssemos usando pseudônimos. 


Mas considero autoengano dizer que “Bolsonaro não representa nem de longe a moralidade média das FFAA”. Quem tem contato com os militares sabe o quão entranhado está o bolsonarismo nos quartéis.


Ademais, ser “positivista conservador” não significa ser contrário à tortura, aos golpes, as ditaduras, a LSN e assim por diante. 

 

Isto posto, Tarso tem razão no seguinte: os militares não estão sozinhos nessa. Como não estiveram sozinhos na ditadura militar.


Tanto lá quanto agora, não se pode nem se deve reduzir a “responsabilidade objetiva e subjetiva dos militares da reserva, dos políticos do entorno de Bolsonaro, das religiões do dinheiro que lhe dão sustentação e do consórcio midiático-empresarial que o elegeu presidente”. 


Isto tudo é verdade. Mas tampouco se deve reduzir a “responsabilidade objetiva e subjetiva” da instituição enquanto tal.

 

A rigor, Tarso sabe disso tudo. A questão é que ele considera “impossível construir República e Democracia no Brasil, sem que a maioria das Forças Armadas seja conquistada para um projeto de nação, cuja soberania estará depositada – em grande parte – nas mãos destas instituições (...)”.

 

Se eu entendi direito o que está escrito, Tarso afirma que a soberania da nação estaria depositada “em grande parte” nas mãos dos Forças Armadas. Se for isso mesmo, discordo frontalmente. Uma república e uma democracia que dependam “em grande parte” das forças armadas é algo muito distante daquilo pelo que lutamos. Mas quem sabe eu tenha entendido errado o que li e Tarso tenha querido dizer outra coisa.

 

Seja como for, penso que será impossível construir uma República e uma Democracia sem que a maioria do povo esteja convencido de que com estas Forças Armadas que temos hoje, não será possível construir uma República e uma Democracia que mereçam o nome. 


Claro, espero que também convençamos a maior parte dos integrantes das forças armadas disto (1). Mas para “conquistar” a maioria das Forças Armadas “para um projeto de nação” diferente do atualmente perseguido por elas, é preciso entre outras coisas demarcar as diferenças. 


A posição de Tarso, na minha opinião, passa o pano onde não deve.



Nota

(1) a esse respeito, vale citar o comentário de um companheiro: "no Nordeste, tem militar do Exército morrendo por Covid - oficiais inclusive - por estar atendendo a população pobre, dando assistência etc. Além disso, na minha conta já são 3 os generais mortos por Covid. Esses caras estão morrendo em grande medida pela conduta criminosa do Bolsonaro. Mas isso não livra a cara da corporação Exército. Até agrava em certo sentido". Ao que eu acrescento: falar a verdade, atribuir as responsabilidades a todos que são responsáveis, a começar pela instituição, ajuda a dividir as águas, a separar quem pode estar conosco daqueles que nunca estarão conosco.  

 

 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Esta história também nos diz respeito


 

Sobre "O alfaiate de Ulm"

Esta história também nos diz respeito
(texto publicado na Revista Brasileira de História

O alfaiate de Ulm (Boitempo, 2014) é a última obra de Lúcio Magri (1932-2011), intelectual comunista italiano e um dos responsáveis pela criação de Il Manifesto, periódico lançado em 1969 e que segue sendo publicado (http://ilmanifesto.info/).

O alfaiate de Ulm pode ser lido em várias claves: relato autobiográfico e testamento político, panorama do século XX, ensaio sobre a história e as perspectivas do movimento comunista italiano (especialmente o apêndice, um documento de 1987 intitulado Uma nova identidade comunista).

O movimento comunista da Itália possui uma gênese histórica distinta, onde confluem as características próprias daquele país, o impacto da revolução russa de 1917, a luta contra o fascismo e as batalhas da Guerra Fria.

Neste contexto, o Partido Comunista não foi apenas uma organização política: foi também uma instituição cultural com imenso enraizamento na classe trabalhadora, na juventude e na intelectualidade, que teve na obra de Antonio Gramsci sua feição teórica mais conhecida e reconhecida.
Apesar disto tudo – ou por causa disto tudo, como fica claro da leitura de O alfaite de Ulm — o Partido Comunista Italiano cometeu suicídio em 1989.

Diferente das pequenas seitas militantes, que conseguem sobreviver em condições variadas e inóspitas, os partidos de massa parecem sobreviver apenas em determinadas condições. E como demonstra Lúcio Magri, várias das condições que tornaram possível a existência de um forte comunismo reformista italiano e europeu desapareceram junto com a União Soviética e com a reestruturação capitalista simultânea à ofensiva neoliberal.

Dito de outra forma, a força das duas grandes famílias da esquerda europeia (o reformismo social-democrata e o reformismo comunista), assim como o brilho dos grupos de ultra-esquerda que viviam à sombra daquele duplo reformismo, dependiam das condições “político-ecológicas” existentes na Europa enquanto durou a chamada bipolaridade entre União Soviética e Estados Unidos.

Quando este conflito cessou, com a vitória dos Estados Unidos, a socialdemocracia experimentou uma deriva neoliberal; e o reformismo comunista, uma deriva social-democratizante.

Claro que isto não foi um processo uniforme. Uma das qualidades de O alfaiate de Ulm é apresentar uma interpretação do que teria ocorrido no caso italiano. Vale destacar esta palavra: interpretação. Há muitas outras interpretações e sempre haverá o que estudar acerca das desventuras em série que atingiram o movimento comunista, o conjunto da esquerda e da classe trabalhadora, especialmente na Europa dos anos 1980 e 1990. A Itália constitui um caso destacado, em boa medida devido ao fato de lá estar baseado o tantas vezes denominado de maior partido comunista do Ocidente.

O alfaiate de Ulm pode ser lido com muito proveito por quem tem interesse em compreender os dilemas da classe trabalhadora, da esquerda brasileira e especialmente do Partido dos Trabalhadores.

Época e circunstâncias muito diferentes, obviamente. A começar pelo fato de que as variáveis internacionais que fortaleciam o reformismo socialdemocrata e comunista na Europa, produziam efeitos muito distintos na América Latina e Caribe, Brasil inclusive.

Isto ajuda a entender porque, na mesma época em que o PCI cometia suicídio, abandonando suas tradições e inclusive seu nome, o Partido dos Trabalhadores estava convertendo-se em força hegemônica na esquerda brasileira.

Guardadas estas diferenças, é impossível não enxergar certas semelhanças entre os dilemas vividos pelo Partido Comunista Italiano nos anos 1970 e 1980 e os impasses vividos mais de vinte anos depois pelo Partido dos Trabalhadores brasileiro.

Os dilemas do PCI são descritos detalhadamente em O alfaiate de Ulm. Segundo Lúcio Magri, a peculiaridade do PCI (...) era a de ser um “partido de massas” que “fazia política” e agia no país, mas também se instalava nas instituições e as usava para conseguir resultados e construir alianças (p.333).

Magri demonstra que a atuação na institucionalidade não foi apenas uma estratégia. Mais do que isto, converteu o PCI em parte estrutural do Estado italiano, naquilo que Magri chama de um elemento constitutivo de uma via democrática. Uma medalha que, no entanto, tinha um reverso (p333).

Este “reverso”, que soa tão familiar ao que acompanham as vicissitudes atuais da esquerda brasileira, é assim apresentado por Lúcio Magri: Não me refiro apenas ou sobretudo às tentações do parlamentarismo, à obsessão de chegar a todo custo ao governo, mas a um processo mais lento. No decorrer das décadas, e em particular em uma fase de grande transformação social e cultural, um partido de massas é mais do que necessário, assim como sua capacidade de se colocar problemas de governo. Mas, por essa mesma transformação, ele é molecularmente modificado em sua própria composição material (p.333).
Talvez esteja nisto a maior contribuição de O alfaiate de Ulm: esta abordagem profundamente histórica da vida de um partido político, ou seja, a compreensão de que a história de um Partido só pode ser adequadamente compreendida como parte da história de uma sociedade, enquanto processo integrado entre as opções estritamente políticas, as tradições culturais e as relações sociais mais profundas, num ambiente nacional e internacional determinado.

A descrição que Lúcio Magri faz do processo de seleção e promoção dos dirigentes partidários fala por si: a formação de novas gerações, mesmo entre as classes subalternas, ocorria sobretudo na escola de massas e mais ainda por intermédio da indústria cultural; os estilos de vida e os consumos envolviam toda a sociedade, inclusive os que não tinham acesso a eles, mas alimentam a esperança de tê-lo; as “casamatas” do poder político cresciam em importância, mas descentralizavam-se e favoreciam aqueles que ocupavam as sedes; a classe política, mesmo quando permanecia na oposição e incorrupta, à medida que a histeria anticomunista diminuía, criava relações cotidianas de amizade, amálgama, hábitos e linguagem com a classe dirigente (p333).

Esta “mescla de costumes” da “classe política” com a “classe dirigente”, como sabemos, não é uma peculiaridade italiana. Tampouco seus efeitos organizativos, assim descritos por Magri: as seções não estavam mais acostumadas a funcionar como sede de trabalho das massas, de formação cotidiana de quadros; eram extraordinariamente ativas apenas na organização das festas do Unitá, e mais ainda nos períodos de eleição nacional e local; as células nos locais de trabalho eram poucas e delegavam quase tudo ao sindicato. Nos grupos dirigentes, a distribuição dos papeis havia mudado muito: o maior peso e a seleção dos melhores haviam se transferido das funções políticas para as funções administrativas (municípios, regiões e organizações paralelas, como as cooperativas). Portanto, mais competência e menos paixão política, mais pragmatismo e horizonte político mais limitado. Os intelectuais sentiam-se estimulados para o debate, mas sua participação na organização política havia declinado e o próprio debate entre eles era frequentemente eclético. A exceção era o setor feminino, em que um vínculo direto entre cúpula e base criava uma agitação fecunda (p.334).

Noutras palavras, Lúcio Magri descreve como as transformações “moleculares” causaram uma metamorfose no Partido Comunista: pouco a pouco foi deixando de ser um fator de subversão, transformando-se em peça importante na engrenagem do Estado e da política italiana. Uma peça diferente das outras, como demonstraria a Operação Mãos Limpas, que confirmaria que o PCI soubera resistir à corrupção sistêmica. Mas uma peça da engrenagem, como demonstra o fato do PCI não ter sobrevivido ao colapso da estrutura política italiana.
Neste sentido, a interpretação feita por Lúcio Magri parece demonstrar que o Partido Comunista Italiano não foi vítima do fracasso, mas sim uma vítima do sucesso da “estratégia” que alguns denominaram, na Itália e aqui no Brasil, de “melhorista”.

Esta estratégia não apenas melhorou a vida da classe trabalhadora italiana, como converteu o comunismo numa força influente e vista como ameaçadora pela classe dominante e pelos Estados Unidos, que atuaram tanto aberta quanto secretamente para evitar o êxito da aliança entre o PCI e a Democracia Cristã. Lúcio Magri trata destas operações, especialmente visíveis no caso Aldo Moro.

Bloqueado pela direita, o PCI tentou – sob a direção de Berlinguer – uma saída pela esquerda. Os capítulos que tratam desta fase são talvez os mais interessantes de O alfaiate de Ulm, em parte por discutirem se a história poderia ter seguido um caminho diferente.

Como sabemos, entretanto, não foi isto o que ocorreu. Ao longo dos anos 1970 e 1980, alteraram-se profundamente os parâmetros dentro dos quais se movera a política no pós-Segunda Guerra, tanto na Itália quanto no mundo. O PCI não conseguiria chegar ao poder nos marcos daqueles parâmetros em vias de desaparecimento. Não conseguiria tampouco defendê-los frente à ofensiva neoliberal e à crise do socialismo. Nem conseguiria sobreviver para atuar nas novas condições.
Lúcio Magri descreve, num tom profundamente autocrítico e em certo momento impiedoso consigo mesmo, as opções feitas pela maioria dirigente do PCI, que levaram à mudança do nome e das tradições políticas e culturais do Partido. Mostra como havia energias vivas na base militante do comunismo italiano, energias que não foram suficientes para dar vida ao projeto da Refundação Comunista.

Enfim, pelo que descreve, pelas conclusões a que chega e pelas perguntas que deixa, O alfaiate de Ulm de Lucio Magri é leitura mais do que relevante para os que têm interesse em compreender os dilemas atuais do Partido dos Trabalhadores, do conjunto da esquerda e os rumos da política brasileira neste terceiro milênio.


O alfaiate de Ulm
Uma possível história do Partido Comunista Italiano
Lucio Magri
Título original
Il Sarto di Ulm: Una Possibile Storia del PCI
415 páginas
Boitempo: São Paulo, 2014
isbn
978-857-559-356-1

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

O PSOL e a baleia (parte 2)

Na parte 1 deste texto, analisamos a posição do deputado Marcelo Freixo. A parte 1 pode ser lida aqui:

http://valterpomar.blogspot.com/2021/01/o-psol-e-baleia-parte-1.html

Nesta parte 2, analisaremos a posição do deputado David Miranda PSOL/RJ) e das deputadas Fernanda Melchionna (PSOL/RS), Sâmia Bomfim (PSOL/SP) e Vivi Reis (PSOL/PA). A posição desses quatro parlamentares do PSOL está aqui:

https://movimentorevista.com.br/2021/01/eleicao-na-camara-dos-deputados-a-principal-tarefa-do-psol-e-derrotar-bolsonaro/

 O ponto de partida dos parlamentares acima citados é o mesmo de Freixo: é preciso derrotar Bolsonaro. E isso seria ainda mais urgente neste momento, em que “Bolsonaro trama o fechamento do regime político e o ataque às liberdades democráticas”.

Sem dúvida é preciso derrotar Bolsonaro; sem dúvida ele é uma ameaça permanente contra as liberdades democráticas; mas será mesmo verdade que nesse exato momento estaria em curso uma “trama” que visa o “fechamento do regime político”?

 

Este é um assunto que tem várias camadas, que precisam ser removidas uma a uma.

 O regime político em questão é o da Constituição de 1988. Foi nos marcos desse regime que Lula e Dilma foram eleitos. Foram as instituições deste regime que promoveram o golpe contra Dilma. Ao fazê-lo, como em qualquer golpe de Estado, interpretaram criativamente as afirmações da Constituição de 1988. A interpretação foi tão criativa que nós, da esquerda, costumamos afirmar que os golpistas rasgaram a Constituição de 1988. Mas atenção: se temos razão, este crime contra a Constituição não foi praticado única nem principalmente por Bolsonaro, mas sim pelo “bloco democrático” composto por DEM, PSDB e MDB. Que agora alguns defendem apoiar para... defender a Constituição!

 O fato é que, para a classe dominante e para a maior parte de seus instrumentos políticos (como os três partidos acima listados), o “regime político” da Constituição de 1988 é flexível o suficiente e não os impede de (des)governar o país em prejuízo da maioria do povo. Não lhes impede, nem mesmo, de olhar para outro lado e não tomar medidas contra os seguidos crimes que vem sendo cometidos por Bolsonaro.

Se o bloco encabeçado por Maia fosse mesmo um anteparo seguro em defesa das liberdades democráticas, os mais de 50 pedidos de impeachment não estariam na gaveta de Maia. Mas o que interessa a esse bloco não são as liberdades democráticas, mas a tal "flexibilidade" do "regime político". 

 Mas voltemos a Bolsonaro: ele quer mesmo o “fechamento do regime político”? E o que isso significaria exatamente?

Convenhamos, Bolsonaro não precisa de um golpe militar clássico, pois as Forças Armadas como instituição já são o sustentáculo deste governo. O que Bolsonaro parece querer é ter controle sobre as demais instituições do Estado (Congresso, sistema judiciário, órgãos de segurança pública...). Essas instituições são parcialmente controladas, hoje, por outros integrantes da coalizão golpista. Que publicamente pedem ajuda da esquerda (da mesma esquerda a que golpearam em 2016) para derrotar Bolsonaro. A questão é: querem nossa ajuda em troca do quê?

 Do impeachment de Bolsonaro? Não! O cavernícola é pintado como Mussolini apenas na hora de assustar a esquerda, mas na hora de fazer andar o impeachment são outros quinhentos.

Da mudança da política econômica e social? Não! Maia e seus aliados deixam claro, de manhã, de tarde e de noite, sua postura pró-liberal.

O máximo que a turma de Maia nos promete é deter os retrocessos. Isto é importante? Se fosse mesmo verdade, seria importante. Mas será mesmo verdade que os cúmplices de todos os retrocessos vividos desde 2016 serão aliados idôneos nesta tarefa?

 Os parlamentares do PSOL acreditam que sim. Dizem explicitamente que o bloco do Maia, “não está disposta a levar a cabo a pauta de ataque e restrição às liberdades democráticas tal como pretende Bolsonaro”.

 Ou seja: a turma do golpe de 2016 não estaria “disposta” a fazer “tal como pretende Bolsonaro”. 

Mesmo que isso fosse verdade, este raciocínio desvincula a política da economia. Quanto tempo as “liberdades democráticas” vão sobreviver em um país que está sendo devastado do ponto de vista econômico-social? Temos que lembrar que existe um vínculo direto entre a “agenda econômica” (defendida conjuntamente pelo bloco de Bolsonaro e pelo bloco de Maia) e a degeneração política e cultural do país.

 Não basta, portanto, “lutar contra a restrição das liberdades democráticas sem nutrir ilusões nas instituições do regime”. É preciso levar em conta que a maior ameaça às liberdades democráticas não vem do bolsonarismo, mas da agenda neoliberal. Repito: foi o bloco do Maia que deu o golpe de 2016 e prendeu Lula. 

 É verdade que “a vitória de Bolsonaro na Câmara, embora não signifique necessariamente um golpe final da extrema-direita, certamente contribuirá para o avanço de pautas como a federalização das polícias, o excludente de ilicitude e até o voto impresso para colocar suspeitas no sistema eleitoral”. E é verdade que devemos lutar contra isso. Mas a depender de como lutarmos contra isso, estaremos mesmo sem querer contribuindo para o fortalecimento das bases econômicas e sociais daquilo que chamamos de “neofascismo”.

 Os parlamentares do PSOL dizem que devemos “debater se o comando da presidência da Câmara ser exercido por um aliado de primeira ordem do Palácio do Planalto ajuda ou atrapalha a relação de forças para os interesses dos de baixo”. 

Supondo que a prática siga sendo o critério da verdade, perguntamos: durante dois anos, Maia comandou a Câmara dos Deputados. Ele não era um “aliado de primeira ordem” de Bolsonaro. Mas isto não impediu que nesses dois anos, o desgoverno de Bolsonaro corresse solto. Poderia ser pior? Claro que poderia. Mas não há base nenhuma para acreditar que Baleia Rossi possa ser melhor do que Maia, do ponto de vista dos interesses do povo. E, portanto, tudo indica que podemos chegar em 2022 piores do que estamos.

A esquerda não tem força para impedir isso. Um dos dois, Baleia Rossi ou Arthur Lira, presidirá a Câmara. A questão é: sem ter candidatura própria, sem demarcar com os dois, limitando-se a apoiar um deles já no primeiro turno, é pura demagogia de esquerda dizer que estaríamos “alertando o povo de que as transformações ocorrerão com a alteração da correlação de forças, na luta nas ruas”. Pois ao difundir ilusões em Baleia, estamos fazendo o contrário de alertar o povo!

Entretanto, vale repetir: os parlamentares do PSOL têm razão quando alertam para a força de Bolsonaro e, portanto, suas chances de vitória em 2022. 

Mas atenção: alguma das premissas do texto dos parlamentares servem como uma luva para quem acha possível, em 2022, apoiar um Dória da vida contra Bolsonaro. 

Pior ainda: ao abrir mão de travar o combate no parlamento, mesmo que só no primeiro turno, podemos estar mandando um sinal para as parcelas mais politizadas do povo de que o nosso caminho é de uma aliança da esquerda com parte da direita. Evidentemente, os parlamentares do PSOL não defendem isto. Mas quem imaginaria, há dois anos, que hoje eles estariam defendendo votar em Baleia Rossi?

O nó em que estamos todos nós, o nó em que está o PT e o PSOL, decorre em parte da seguinte ideia: “o centro é derrotar Bolsonaro”. 

Com base nesta fórmula simplificadora, ao longo de 2019 e 2020 vimos, por exemplo, pessoas defenderem Mourão como alternativa. 

Óbvio que Bolsonaro é nosso inimigo, óbvio que devemos derrotar Bolsonaro, mas também é preciso derrotar o bolsonarismo e sua agenda econômica e social, agenda que não é apenas de Bolsonaro.

Bolsonaro é um bode numa sala apertada e sem ar. Queremos tirar o bode, mas não queremos continuar vivendo na sala apertada e sem ar. E só conseguiremos isso se a esquerda não se subordinar aos interesses e movimentos da direita-que-não-é-bolsonarista-raiz, se entre outras coisas nos diferenciarmos.

Os parlamentares do PSOL alertam que não devemos transformar “uma discussão tática em estratégica”. 

Rapaz, quantas vezes ouvimos isso dentro do PT e quantas vezes tivemos que explicar que concordamos com isso, mas também concordamos que não se deve adotar uma tática desvinculada da estratégia.

A esse respeito, o ponto 2 do texto dos parlamentares do PSOL reafirma que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, como diria um conhecido filósofo. Segundo eles, “transpor o debate sobre a tática para a eleição da presidência da Câmara para a política do PSOL em 2022 é esquemático e absolutamente equivocado”.

Pode ser. 

Mas vejamos: se “o centro” é derrotar Bolsonaro, por qual motivo isto não seria válido também nas eleições de 2022? 

Em segundo lugar, se a eleição da Mesa pode significar “um acúmulo de forças para Bolsonaro”, então também pode significar um “acúmulo de forças” para o bloco do Maia, certo? Logo, existe uma relação entre o que está ocorrendo agora e 2022. 

Tanto existe uma relação que os parlamentares afirmam que “não existe hipótese de um apoio do PSOL a uma frente encabeçada pela direita no primeiro turno da eleição de 2022. Para o MES, isto está absolutamente fora de debate”.

Notem: “no primeiro turno”! Dois anos antes, já sabemos que “no primeiro turno” não vai ter apoio. É quase um ato falho.

Voltando ao ponto, os parlamentares do PSOL afirmam que “com uma vitória de Lira, estaremos em condições mais desfavoráveis para o movimento de massas”. Cabe perguntar sobre o cenário oposto: com uma vitória de Baleia Rossi, estaríamos por acaso em condições “mais favoráveis”? Ou elas serão também desfavoráveis, ainda que de maneira diferente?

O tema é que os parlamentares do PSOL, assim como Freixo (ver parte 1 deste texto), acham que com Baleia será possível “não permitir que a Câmara seja correia de transmissão dos interesses do Planalto”. Com base no que afirmam isso? Na experiência com Maia? Nos votos dados por Baleia? Na corajosa defesa que ele faz do impeachment?

Chamo a atenção para o seguinte trecho: “a eleição da presidência da Câmara medirá qual setor burguês é vitorioso: o disposto a flertar com o fascismo ou o que, mesmo vacilante nas tarefas democráticas e absolutamente burguês na agenda econômica, não está com ele”. 

Realmente, estamos na fase de memória curta. 

Os partidos e os políticos integrantes do bloco de Maia “flertam” com o “fascismo” há muito tempo. E não são “vacilantes nas tarefas democráticas”. Eles atacam as liberdades democráticas do povo. Vejam como age a polícia do Dória! Pode piorar? Sempre pode. Mas a maneira como os parlamentares descrevem o bloco do Maia é incorreta, passa o pano!

Os parlamentares do PSOL dizem que “é fundamental derrotar Bolsonaro antes de 2022 e retirá-lo da presidência”; e reclamam da “vacilação de Rodrigo Maia, e da oposição burguesa de direita, que não deu início ao processo de impeachment de Bolsonaro”. 

É curioso como os parlamentares do PSOL transpõem, para o terreno do Congresso e da análise da direita, termos que usamos na esquerda. 

É comum acusarmos alguém de nossos partidos de estar “vacilando”; mas acusar alguém da direita, como Maia, de estar vacilando é prova da mais absoluta ingenuidade. Pois para que isso fosse verdade, seria necessário que Maia fosse um democrata que vacila em lutar pela democracia. E a única coisa que o DEM tem de democrata é o nome.

Vou pular a parte em que os parlamentares do PSOL invocam o nome de Lênin para defender as manobras, os acordos e os compromissos com outros partidos, inclusive os partidos burgueses! Claro, é divertido ler isto num texto de quem muitas vezes não queria fazer aliança nem mesmo com o PT. Mas há um problema de método envolvido neste tipo de citação: a renúncia “de antemão a fazer zigue-zagues” não transforma o “zigue-zague” em modelo de política. Provar que uma determinada tática não fere os princípios, não prova que esta tática seja correta.

Tanto é assim que, logo em seguida, podemos ler no texto dos parlamentares o seguinte: “um princípio que sempre norteou os bolcheviques, assim como o MES, é o de não compor governos burgueses. Não compusemos nem mesmo os governos da Frente Popular, quando já tínhamos caracterização do curso de traição de classe do projeto petista já no início dos anos 2000. Ao invés de nos lançarmos em busca de cargos no governo Lula, lançamo-nos, junto com centenas de outros camaradas, a percorrer o Brasil para fundar o PSOL e construir uma ferramenta política que nos permitisse apontar uma alternativa socialista para o Brasil”.

Ou seja: manobras, acordos e compromissos não são questão de principio. Mas participar de governos (inclusive com o PT!!!) aí sim é uma questão de princípio!

Naqueles tempos, claro, o centro não era derrotar Bolsonaro e o fascismo. O centro era derrotar o PT. Que da derrota do PT tenha emergido Bolsonaro é um detalhe sobre o qual nossos amigos do MES parecem ter refletido pouco. E por isso mesmo estão, talvez sem perceber, sofrendo uma mutação que sabemos como começa, mas não sabemos como vai terminar.

Seja como for, estamos de acordo em que é preciso derrotar Bolsonaro. Mas temos dois problemas. O primeiro problema: os dois candidatos representam uma agenda econômica pró-burguesa e antipovo, que significou o aprofundamento das reformas neoliberais como as da previdência, “teto” de gastos e trabalhista”. O segundo problema, do qual os parlamentares do PSOL não tiram as devidas consequências, é que ambos são golpistas.

É uma ilusão afirmar que Baleia Rossi, mesmo que de forma “vacilante e insuficiente, apresenta disposição de contrapor-se às investidas bolsonaristas na defesa das liberdades democráticas”. Se isto fosse verdade, repetimos, o impeachment teria andado. 

O mais assustador na posição dos que defendem votar em Baleia Rossi não é o voto em si (absolutamente defensável com base em argumentos pragmáticos), mas os argumentos que apresentam Baleia Rossi e a turma de Maia como defensores da democracia. Não são, não são, lembrem de 2016, lembrem da prisão de Lula! Sem falar em que a agenda neoliberal é a maior ameaça contra a democracia, porque corrompe as condições materiais de vida do povo.

Os parlamentares do PSOL perguntam se “não existem elementos que nos permitam diferenciar defesa da ciência ou negacionismo, direitos das minorias ou retrocessos nas conquistas democráticas, civilização ou barbárie?” 

Claro que sim. 

Mas é preciso sempre lembrar que barbárie também é e se nutre de 40 milhões de desempregados, salários que não chegam ao final do mês, cada vez mais gente passando fome e vivendo em condições desumanas, polícia matando nas periferias e a lista pode prosseguir. E na origem disto tudo está uma agenda econômica e social defendida também por Baleia Rossi.

O caso é que a esquerda na Câmara poderia ter escolhido outra tática: ter candidatura própria no primeiro turno, aproveitar esta plataforma para fazer um debate nacional sobre as vacinas, o emprego, o auxílio emergencial, o impeachment e tantas outras questões absolutamente transcendentes. E, no segundo turno, votar contra a candidatura mais próxima de Bolsonaro. 

Mas prevaleceu outra tática: em nome de derrotar a “fração burguesa bolsonarista”, aliança já no primeiro turno com a outra fração burguesa, que prefiro chamar de “bolsonarista eventual” ou centrão gourmet.

Mas os parlamentares do PSOL, repetindo argumento similar ao que ouvimos no PT, dizem que esta tática serviria apenas para deixar “os militantes mais tranquilos com as suas convicções”. Ou seja: travar um debate público, durante dois meses, contra as duas “facções burguesas” é reduzido a tranquilizar militantes. Aliás, dois meses não: segundo os parlamentares do PSOL, seriam “dez minutos para falar na tribuna no dia da votação” e “alguns dias”.

Afirmam ainda que “a pressão real sobre o PSOL é ser parte de um movimento democrático anti-Bolsonaro, de uma vanguarda ampliada, embora seja verdade que não ainda da totalidade do movimento de massas que, infelizmente, acompanha pouco as movimentações do Congresso Nacional”.

Como já foi dito, chamar o bloco de Maia de “movimento democrático” é falsificar a realidade. Mas é correto dizer que há uma “pressão real” sobre o conjunto da esquerda, a mesma que houve no sentido de atrair o PT para uma frente ampla com Temer e FHC. Naquela época também se falava em deter Bolsonaro. Mas depois o papo mudou e virou “tolerância” com o cavernícola. Esta "pressão" não vem da esquerda, esta pressão vem dos setores burgueses que querem a esquerda caudatária, subalterna e submissa a seus interesses.

Por fim: tanto Freixo quanto os parlamentares autores do texto que estamos comentando afirmam que “há um risco real de que a eleição defina-se em um turno” e que Lira ganhe.

Se isto é verdade, então é pior ainda. Por um lado, porque se for verdadeira a descrição que se faz, a esquerda será derrotada e sem ter tido voz própria. Por outro lado, porque se for verdadeira a descrição que se faz, os votos da esquerda são tão decisivos que se poderia exigir mais do que compromissos que já estão sendo rasgados antes mesmo da votação.

Enfim, o debate no interior do PSOL é uma demonstração a mais de que os problemas do PT não são apenas do PT, são do conjunto da esquerda brasileira. E o fato da “esquerda do PSOL” defender o voto no Baleia, com argumentos muito parecidos com aqueles utilizados pelo setor moderado do PT, demonstra que a dialética existe e nem sempre isto significa algo positivo.

Até porque o conjunto da obra não tem nada de engraçado. A maior parte da esquerda está sendo engolida e adotando argumentos que nos desarmam. Ainda há tempo para corrigir o rumo. Do contrário, como já aconteceu com a esquerda brasileira em outros momentos de nossa história, sobrará pouca coisa para a baleia cuspir.


SEGUE ABAIXO O TEXTO ANALISADO

Eleição na Câmara dos Deputados: a principal tarefa do PSOL é derrotar Bolsonaro

Nosso papel, como deputadas e deputados do Partido Socialismo e Liberdade, é lutar, com todas nossas forças e em todos os espaços que tivermos, pela derrota de Bolsonaro e de seu projeto neofascista de destruição nacional e ataque à classe trabalhadora.

DAVID MIRANDAFERNANDA MELCHIONNASÂMIA BOMFIM E VIVI REIS13 JAN 2021, 20:47

  

A eleição para a presidência da Câmara dos Deputados apresenta um debate necessário para o PSOL, seus militantes e instâncias num momento em que o Brasil combina o aprofundamento de crise econômica, política, social e sanitária – a última potencializada sobremaneira pelo criminoso negacionismo da pandemia de Covid-19 por Bolsonaro. Abrimos o debate sobre a tática parlamentar de votar em Baleia Rossi contra Arthur Lira no primeiro turno da eleição na Câmara dos Deputados de forma clara e transparente aos companheiros do PSOL, afinal, num momento em que Bolsonaro trama o fechamento do regime político e o ataque às liberdades democráticas, a possibilidade de vitória de seu candidato não pode ser-nos indiferente.

Nas últimas semanas, em que a eleição para a presidência da Câmara tornou-se uma pauta nacional, o PSOL poderia ter desenvolvido outra política, mas o fato é que o partido esteve sem iniciativa nesse tema. Estamos muito atrasados. Algumas posições contrárias à tática que defendemos precisam ser esmiuçadas. É o que nos propomos a fazer a seguir:

1) Votar em Baleia Rossi contra Arthur Lira é uma política de conciliação com a burguesia?

A primeira posição afirma que o voto em Rossi contra o candidato de Bolsonaro no primeiro turno seria uma política de conciliação com os partidos burgueses e que o PSOL deve apresentar-se com cara própria para defender os interesses do povo, como se defender um voto tático em um candidato burguês significasse um compromisso com sua agenda econômica.

É preciso caracterizar as frações burguesas em disputa: uma, expressa pelo PP e outros partidos burgueses que oferecem apoio e até legenda para o neofascista Bolsonaro, e outra que, embora tenha acordo com a primeira na agenda econômica, não está disposta a levar a cabo a pauta de ataque e restrição às liberdades democráticas tal como pretende Bolsonaro. Apoiar pontual e taticamente a primeira contra a segunda significa confiar na burguesia? Nunca. Na realidade, com nossa posição, pretendemos distinguir os matizes e atuar de forma concreta na situação concreta. Isso significa defender as instituições do Estado burguês? Frente aos ataques dos que querem fechar o regime político por dentro dele, é preciso lutar contra a restrição das liberdades democráticas sem nutrir ilusões nas instituições do regime e alertando o povo de que as transformações ocorrerão com a alteração da correlação de forças, na luta nas ruas.

Os socialistas lutamos por uma democracia real, não pela dominação burguesa. Mas Bolsonaro já deixou claro que conspira por uma estratégia de fechamento do regime político como forma de dominação burguesa. A vitória de Bolsonaro na Câmara, embora não signifique necessariamente um golpe final da extrema-direita, certamente contribuirá para o avanço de pautas como a federalização das polícias, o excludente de ilicitude e até o voto impresso para colocar suspeitas no sistema eleitoral, aos moldes do que Trump fez nos EUA. Levar tais pautas a votação é um compromisso já assumido por Arthur Lira e seus aliados.

Precisamos debater se o comando da presidência da Câmara ser exercido por um aliado de primeira ordem do Palácio do Planalto ajuda ou atrapalha a relação de forças para os interesses dos de baixo, e avaliar a importância de uma derrota do governo e de seus planos autoritários por meio de uma tática que explora as divisões e conflitos dos de cima. Além disso, ignorar o potencial eleitoral de Bolsonaro – que, embora seja um criminoso e tenha sido derrotado na eleição de 2020 – é errado, já que ele ainda preserva pouco mais de um terço de apoio nas pesquisas de opinião e, em termos políticos, ainda tem a maior minoria da sociedade e também do Congresso Nacional. Contribuir para que Bolsonaro tenha dificuldade de levar adiante sua estratégia golpista, portanto, é nosso dever. Isso transforma Baleia Rossi num candidato de esquerda? Claro que não. Não podemos ter ilusão em nenhum setor da classe dominante. Mas não aproveitar as fissuras nas disputas intraburguesas para impor derrotas ao maior inimigo no momento seria um erro grave. E nós não temos dúvida de que o centro é derrotar Bolsonaro.

Um risco grande é transformar uma discussão tática em estratégica. Um voto crítico sem ilusão, demarcando nossa posição independente em favor dos trabalhadores e de uma agenda econômica que taxe os capitalistas, não pode ser confundido com a eleição majoritária e muito menos a composição de governos.

2) A eleição da Câmara é um ensaio para 2022?

Transpor o debate sobre a tática para a eleição da presidência da Câmara para a política do PSOL em 2022 é esquemático e absolutamente equivocado. Em primeiro lugar porque, em eleições gerais, o colégio eleitoral é determinado pelo povo. Mesmo jogando de acordo com as regras do jogo burguês, o povo vota. No caso da Câmara dos Deputados, a eleição é feita pelos representantes majoritários dos interesses burgueses, suas frações e uma ínfima minoria de representantes dos trabalhadores. A divisão da Câmara é um espelho da divisão burguesa e não da divisão de classes da sociedade. Portanto, esta eleição não é, de forma alguma, uma antecipação da eleição de 2022, mas uma vitória agora pode significar um acúmulo de forças para Bolsonaro impor sua agenda e fortalecer-se para a eleição presidencial. Para nós, não existe hipótese de um apoio do PSOL a uma frente encabeçada pela direita no primeiro turno da eleição de 2022. Para o MES, isto está absolutamente fora de debate.

Por outro lado, é evidente que, se o governo for vitorioso na eleição da presidência do Parlamento burguês, terá mais condições, em dois anos, de tentar alterar as regras eleitorais, intervir em universidades, indicar mais aliados negacionistas em instituições sanitárias e científicas, pautar, na Câmara, suas propostas reacionárias que agradam sua base social, fortalecendo os projetos das bancadas fundamentalista religiosa, da bala, etc. Portanto, há risco de, com uma vitória de Lira, estarmos em condições mais desfavoráveis para o movimento de massas.

Assim como não podemos subestimar o peso eleitoral de Bolsonaro, tampouco devemos subestimar a incidência de um setor fascista que tem peso nas polícias militares, nos fundamentalistas religiosos e que ganhou uma fração do movimento de massas. Não permitir que a Câmara seja correia de transmissão dos interesses do Planalto tem sua importância. Além disso, a eleição da presidência da Câmara medirá qual setor burguês é vitorioso: o disposto a flertar com o fascismo ou o que, mesmo vacilante nas tarefas democráticas e absolutamente burguês na agenda econômica, não está com ele. Sabemos que a luta final contra o fascismo não se dará somente no calendário eleitoral, mas no embate físico. A correlação de forças não se altera por vontade e tampouco pela eleição da presidência da Câmara dos Deputados, mas pode ter, sim, um desfecho mais desfavorável à ação independente dos trabalhadores se avança a restrição das liberdades pretendida por Bolsonaro.

Além disso, sabemos que é fundamental derrotar Bolsonaro antes de 2022 e retirá-lo da presidência para interromper seus crimes diários contra a vida e os direitos do povo brasileiro. Por isso, em março de 2020, protocolamos um pedido de impeachment que recolheu mais de um milhão de apoios. A vacilação de Rodrigo Maia, e da oposição burguesa de direita, que não deu início ao processo de impeachment de Bolsonaro mostra que a luta pelo “Fora, Bolsonaro” precisa tomar as ruas e pressionar o Congresso. Com uma presidência da Câmara nas mãos de Bolsonaro, entretanto, suas chances de disputar a reeleição aumentam consideravelmente.

3) Os revolucionários, em nenhuma hipótese, podem estabelecer compromissos com setores burgueses?

Uma terceira posição afirma que a tática de voto em Baleia Rossi contra Arthur Lira não é lícita porque os revolucionários não podem fazer movimentos políticos com nenhum setor burguês. Tal posição desconhece profundamente a história dos movimentos revolucionários. Vladimir Lênin, em sua famosa obra Esquerdismo: doença infantil do comunismo, dedica um capítulo a uma polêmica com jovens revolucionários do comunismo de “esquerda” alemão:

“Nenhum compromisso. É surpreendente que, com semelhantes ideias, esses esquerdistas não condenem categoricamente o bolchevismo! Não é possível que os esquerdistas alemães ignorem que toda a história do bolchevismo, antes e depois da Revolução de Outubro, está cheia de casos de manobra, de acordos e compromissos com outros partidos, inclusive os partidos burgueses!

Fazer a guerra para derrotar a burguesia internacional, uma guerra cem vezes mais difícil, prolongada e complexa que a mais encarniçada das guerras comuns entre Estados, e renunciar de antemão a qualquer manobra, a explorar os antagonismos de interesses (mesmo que sejam apenas temporários) que dividem nossos inimigos, renunciar a acordos e compromissos com possíveis aliados (ainda que provisórios, inconsistentes, vacilantes, condicionais), não é, por acaso, qualquer coisa de extremamente ridículo? Isso não será parecido com o caso de um homem que, na difícil subida de uma montanha, onde ninguém jamais tivesse posto os pés, renunciasse de antemão a fazer zigue-zagues, retroceder algumas vezes no caminho já percorrido, abandonar a direção escolhida no início para experimentar outras direções?”.

Com tal resgate, não se pretende, aqui, comparar mecanicamente diferentes momentos históricos e os desafios dos socialistas em cada um deles, mas sim, discutir um método de análise, caracterização e política. Atuamos com a realidade que temos, não com a que queremos. Não se sustenta, desse modo, a afirmação de que seria um problema de princípios um voto no Parlamento burguês numa tática para debilitar as condições de Bolsonaro conspirar pelo fechamento do regime.

Aliás, um princípio que sempre norteou os bolcheviques, assim como o MES, é o de não compor governos burgueses. Não compusemos nem mesmo os governos da Frente Popular, quando já tínhamos caracterização do curso de traição de classe do projeto petista já no início dos anos 2000. Ao invés de nos lançarmos em busca de cargos no governo Lula, lançamo-nos, junto com centenas de outros camaradas, a percorrer o Brasil para fundar o PSOL e construir uma ferramenta política que nos permitisse apontar uma alternativa socialista para o Brasil.

4) São dois candidatos iguais?

Há, ainda, uma posição que afirma serem Baleia Rossi e Arthur Lira “dois candidatos iguais”. Mas os dois candidatos seriam iguais porque defendem a mesma agenda econômica? Evidentemente, os dois candidatos representam uma agenda econômica pró-burguesa e antipovo, que significou o aprofundamento das reformas neoliberais como as da previdência, “teto” de gastos e trabalhista. Trata-se de dois candidatos obviamente burgueses.

Então, o que os divide? Bolsonaro luta para ganhar a presidência da Câmara dos Deputados e definiu Arthur Lira como seu candidato, ou seja, uma vitória de Lira é uma vitória de Bolsonaro. Há, ao mesmo tempo, uma disputa em curso entre diferentes frações burguesas e suas facções políticas: uma delas está disposta a governar com Bolsonaro e reforçar a extrema-direita e outra, mesmo que vacilante e insuficiente, apresenta disposição de contrapor-se às investidas bolsonaristas na defesa das liberdades democráticas. E isto, nas circunstâncias de enfrentamento contra uma extrema-direita que controla a presidência da República e parte importante do aparelho de Estado, não é pouco. Ou, por acaso, não existem elementos que nos permitam diferenciar defesa da ciência ou negacionismo, direitos das minorias ou retrocessos nas conquistas democráticas, civilização ou barbárie?

Se seguíssemos tal posição, deveríamos ter tomado como centro denunciar Trump e Biden nos EUA. Sabemos, no entanto, que a derrota de Trump é um feito enorme, embora não tenhamos ilusão com a agenda imperialista (talvez até mais próxima do establishment) de Biden. Mas ignorar ou subestimar o peso da luta democrática em tempos de enfrentamento contra o autoritarismo é errado. Evidentemente, Bolsonaro, com o resultado de 2020, perdeu força momentânea para o golpe final, mas pode ir, por dentro do regime político, facilitando ataques democráticos e é por isso que a fração burguesa bolsonarista precisa ser derrotada na eleição à presidência da Câmara.

5) No primeiro turno da eleição da Câmara, não deveríamos fazer propaganda de nosso programa para reduzir danos no segundo turno?

Por último, analisamos uma quinta posição, que afirma ser a eleição na Câmara um momento para mostrar um programa para o país e que, por isso, o PSOL deveria lançar uma candidatura no primeiro turno para ter seu programa apresentado. Já no segundo turno, seria possível dar um voto para reduzir danos.

Embora a eleição da Câmara seja feita por deputados, é verdade que podemos, sim, aproveitar esse momento para apresentar um programa ao movimento de massas e, depois, reduzir danos — posição que deixaria os militantes mais tranquilos com as suas convicções. Para nós, deputados, votar em um dos nossos é reconfortante, sem dúvidas. Mas não somos comentaristas da realidade. A pressão real sobre o PSOL é ser parte de um movimento democrático anti-Bolsonaro, de uma vanguarda ampliada, embora seja verdade que não ainda da totalidade do movimento de massas que, infelizmente, acompanha pouco as movimentações do Congresso Nacional.

Parte dos nossos militantes prefere candidatura própria com a certeza de que a eleição terá dois turnos. Mas é preciso alertar que há um risco real de que a eleição defina-se em um turno e, apesar de o bloco de Arthur Lira parecer numericamente menor que o bloco anti-Bolsonaro, a eleição é secreta e existem defecções em muitos partidos. No PSL, por exemplo, contabilizado nas estimativas como formalmente no bloco de Maia/Rossi, 36 parlamentares lançaram nota afirmando que votarão em Lira. Já em partidos de centro-esquerda que estão no bloco, como PT, PSB e PDT, há setores que votam no candidato de Bolsonaro.

Enquanto estamos debatendo a necessidade de uma campanha de vacinação, renovação do auxílio emergencial etc., o Planalto libera emendas e oferece cargos. Numa votação secreta, apostar em dois turnos e correr qualquer risco de uma vitória de Bolsonaro é temerário. Correremos esse risco para termos dez minutos para falar na tribuna no dia da votação e apresentarmos nosso ponto de vista durante alguns dias?

Mas, se não fizermos isso, o PSOL será linha auxiliar da direita? Evidentemente, não. Como afirmou Sâmia Bomfim em entrevista ao jornal O Globo, sua posição é a de dar um voto tático e pontual em Baleia Rossi contra Arthur Lira para sermos oposição a uma eventual futura gestão de Rossi desde o primeiro dia pós-eleição. A mudança na correlação de forças que permitirá combater a agenda econômica neoliberal dependerá da ação do movimento de massas e ser parte de um movimento anti-Bolsonaro dará ao PSOL, inclusive, mais autoridade sobre um setor que está conosco na defesa das liberdades democráticas, mas ainda não foi ganho para a luta socialista.

Nosso papel, como deputadas e deputados do Partido Socialismo e Liberdade, é lutar, com todas nossas forças e em todos os espaços que tivermos, pela derrota de Bolsonaro e de seu projeto neofascista de destruição nacional e ataque à classe trabalhadora. É o que o povo brasileiro espera de nós e é com este dever em mente que nos dirigimos à nossa militância, a nossas e nossos camaradas e às instâncias partidárias.


David Miranda é jornalista nascido na favela do Jacarezinho, parceiro de Edward Snowden na luta contra a espionagem na Internet e deputado federal do PSOL/RJ.

Fernanda Melchionna é deputada federal (PSOL/RS).

Sâmia Bomfim é deputada federal (PSOL/SP).

Vivi Reis é deputada federal (PSOL/PA), trabalhadora da Saúde do município de Barcarena/PA e membro do diretório Estadual do PSOL/PA.