O companheiro Aloizio Mercadante, atualmente presidente do BNDES, acaba de publicar na Folha de S. Paulo um artigo intitulado “Obrigado, Alexandre”.
O “Alexandre” em questão vem a ser o ministro Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal.
O artigo de Mercadante é de leitura essencial para quem deseje compreender a renovação ideológica que está em curso em parte da direção do nosso Partido e do nosso governo Lula 3.
A Grécia
O artigo de Mercadante começa falando das origens gregas dos “sistemas políticos do Ocidente”. Não tenho a erudição que Aloizio demonstra acerca da Paideia, mas registro meu espanto com duas afirmações.
Primeiro, com a maneira delicada como Aloizio descreve o fato da chamada democracia grega excluir estrangeiros, escravos e mulheres. Segundo Aloizio, ela seria “imperfeita e restrita”.
Segundo, com a ausência de qualquer menção às grandes revoluções que desde o século 17 jogaram papel insubstituível para destruir as “imperfeições e restrições” vigentes à época.
Noutras palavras: o “impulso civilizatório” que realmente fundou a democracia no sentido moderno da palavra veio da plebe, não da Grécia antiga.
Aliás, registro que certas ideias mitológicas acerca das origens helênicas do “Ocidente” são muito acalentadas pela direita e pelas elites dos países capitalistas decadentes, especialmente neste momento em que enfrentam um desafio que encarnam na China.
O indivíduo
Acerca da Paideia, Aloizio destaca a “educação que criava cidadãos críticos, comprometidos com os valores coletivos da pólis e com a manutenção de um Estado justo”, educação cívica que ele contrapõe ao que estaria ocorrendo hoje, por obra e graça das mal denominadas redes sociais.
Neste ponto, registro meu espanto com outras duas afirmações, ambas presentes na seguinte passagem do texto de Mercadante: “no contexto histórico moderno, os grandes guardiões efetivos da democracia, para além das instituições e do sistema de pesos e contrapesos, são os próprios cidadãos, que informados e bem formados, defendem seus direitos individuais e coletivos e impedem a sempre presente ameaça da deturpação do exercício do poder”.
Primeiro: não sei exatamente o que Aloizio inclui no tal “contexto histórico moderno”. Mas pelo menos no século XX, na maior parte dos países capitalistas, as “instituições” não foram guardiãs da “democracia”.
Vide o caso dos Estados Unidos: ao longo da maior parte do século XX, a serviço de quem e do quê estiveram o Congresso, a Suprema Corte e a Presidência daquele país? Estiveram a serviço da “democracia”??
Segundo: não consigo compreender como alguém de esquerda produz esta síntese que fala de “pesos e contrapesos”, fala de “instituições” e destaca os “cidadãos” como pilar da defesa dos direitos.
Esta maneira de ver a política – centrada nos indivíduos que elegem os integrantes de instituições que se equilibram mutuamente – é totalmente liberal.
É liberal porque exclui do cenário as organizações coletivas das classes trabalhadoras que, na história real - não nos manuais - foram os principais protagonistas da luta democrática em todo mundo.
Não apenas exclui, mas também dilui as classes sociais existentes dentro de cada sociedade numa única e mesma geleia. Além disso, coloca num mesmo saco as sociedades metropolitanas e periféricas, capitalistas e socialistas. O que torna impossível entender por qual motivo o nazismo surgiu no chamado Ocidente e foi derrotado principalmente pelo esforço da União Soviética. Assim como torna impossível compreender por qual motivo a República Popular da China é, hoje, uma das maiores barreiras contra o neofascismo trumpista.
As redes
Sobre o que estaria ocorrendo hoje, Mercadante diz que “vivemos um momento histórico de ‘anti-Paideia’. O século 21 está se tornando o exato oposto do ‘Século de Péricles’. O século 21 está se tornando o ‘século da neocolonização digital’.”
Como disse antes, não tenho a erudição de Aloizio Mercadante, assim vou pular as referências gregas e vou me concentrar no presente: concordo integralmente com Aloizio sobre o efeito corrosivo das “redes sociais desregulamentadas, controladas pelas big techs e seus interesses econômicos, comerciais e políticos”.
Mas discordo da “narrativa” que Mercadante apresenta, narrativa resumida na seguinte frase: “estão corroendo as democracias pela via perversa e maliciosa da destruição da cidadania”.
Esta narrativa transmite a impressão de que antes das redes existia algo que funcionava bem. E esta impressão é simplesmente falsa.
Para não ir mais longe, o neoliberalismo triunfou nos principais países capitalistas desde 1979 e isso aconteceu quando ainda não existiam as tais redes sociais desregulamentadas.
Desde então e antes das redes, já se falava em crise das instituições democráticas.
Não foram as “big techs e suas redes sociais” que inauguraram a substituição do “cidadão pelo consumidor”, dificultando “um real debate público, qualificado e democrático”.
Portanto as “redes sociais” (e o neofascismo) cresceram em terreno que já estava previamente “corroído” pelo neoliberalismo (e se formos mais atrás na história, a coisa tampouco melhora, pelo simples fato de que a relação entre capitalismo e democracia nunca foi harmônica).
A narrativa de Mercadante passa a impressão oposta, como se pode ver na seguinte frase: “as big techs e suas redes sociais (…) tendem também a substituir a imprensa e a política, reais e democráticas, por uma espécie de ‘micropolítica à la carte’, que manipula, degrada e polariza artificialmente a opinião pública”.
Que a Rede Globo e o Estadão digam algo parecido com isso, normal. Mas nós não podemos dizer que antes das redes existiam uma “imprensa” e uma “política” que seriam “reais e democráticas”.
Nessa questão das redes, ninha discordância com Mercadante vai além da narrativa e inclui a “solucionática”.
Considero insuficiente dizer que as redes devam ser “submetidas a um controle legal e democrático que as tornem instrumento útil para a cidadania”.
Entendo que devemos dizer e fazer sobre as redes o mesmo que dizíamos (e não fizemos) acerca da comunicação de massas pré-redes, a saber: não pode existir monopólio privado, deve existir comunicação pública.
No caso, o Brasil precisa ter redes sociais próprias, sob controle nacional e estatal. Ou é isso, ou ficaremos dependentes da “moderação” dos Mark e Elon da vida.
Neste particular, pouco ou nada devemos esperar da “articulação global”, ao menos com a União Europeia e Ásia. É o Estado brasileiro que deve tomar a iniciativa e criar redes brasileiras.
O multilateralismo
Aloizio considera que “os ataques às democracias atingem o multilateralismo e as instituições que sustentam as regras da ordem global, e levam ao desrespeito sistemático de acordos, tratados e convenções internacionais por parte de alguns países”.
Aqui, novamente, fica evidente que a “narrativa” de Mercadante contrapõe o presente a um passado que supostamente seria melhor. Cá entre nós, se fosse mesmo “melhor”, de onde o neofascismo teria surgido? Veio de Marte? Nasceu por geração espontânea? Ou foi resultado das contradições do “multilateralismo” e de suas “instituições”?
A verdade, na minha opinião, é a seguinte: o neofascismo é filho legítimo do neoliberalismo e da crise do capitalismo. Motivos pelos quais nossa oposição ao neofascismo não pode ser baseada na mistificação e na mitificação acerca do passado neoliberal. Nem pode estar baseada numa aliança com a direita gourmet neoliberal.
O judiciário
O introito anteriormente comentado serve para Mercadante situar num “sentido mais amplo e civilizatório” o “esforço de juízes como Alexandre de Moraes, e o empenho de uma instituição tão importante como o STF”.
Há pessoas e computadores que têm memória limitada: só assim para entender a visão parcial que muita gente, Mercadante inclusive, têm acerca do STF.
Vamos lembrar: o Supremo foi fundamental para o sucesso do golpe de 2016 e para a eleição do cavernícola em 2018.
Que, hoje, as contradições entre os diferentes setores da classe dominante levaram a maioria do Supremo noutra direção, não tenho dúvida. Mas as posições atuais da maioria do Supremo não justificam análises simplistas.
Quero lembrar, ademais, que havia e segue existindo todo um debate sobre a partidarização da justiça e acerca da judicialização da política. Esse debate não comparece no texto de Mercadante.
No seu lugar surge um “Poder Judiciário” que supostamente estaria na "linha de frente" em “defesa da democracia, da cidadania, dos direitos individuais e coletivos, da legalidade e do Estado democrático de Direito; e contra a tendência internacional de consolidação de autocracias, abertas ou veladas”.
Este tipo de narrativa, que faz desaparecer as nuances, as contradições, os conflitos, resumindo tudo a luta do bem contra o mal, não é típico da esquerda. Paradoxalmente, é típico da direita que Aloizio pretende criticar.
Xandão
Como já disse e repito, erudição não é minha praia. Mas li num velho livro espanhol um raciocínio genial, que diz mais ou menos assim: a descrição que se faz de certos personagens históricos não corresponde ao que eles foram, mas sim ao que eles deveriam ser para servir de exemplo para as futuras gerações.
Lembrei disso ao ler o elogio que Mercadante faz a Xandão, pessoa cuja trajetória pré-Supremo pode ser resumida no fato de que ele foi indicado ao STF pelo golpista Michel Temer. Quanto a trajetória de Xandão no Supremo, quero lembrar do seu voto num julgamento essencial, ocorrido em abril de 2018, portanto há sete anos.
Cito a seguir texto publicado pelo UOL: “Depois de mais de dez horas de sessão, a maioria do STF (Supremo Tribunal Federal) negou o habeas corpus preventivo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para que ele possa recorrer em liberdade de sua condenação em segunda instância no processo do tríplex. Em uma votação acirrada, seis dos onze ministros mantiveram o atual entendimento da Corte, que permite a execução da pena após decisão em segundo grau. Apesar de dois ministros terem mudado de posição sobre a possibilidade de prisão na segunda instância, o placar se manteve inalterado --6 a 5-- em comparação aos julgamentos no qual o STF fixou, em 2016, a possibilidade de início de cumprimento da pena nessa fase do processo".
Como votou Alexandre de Moraes? Xandão votou contra Lula. Segundo a matéria do UOL, Xandão teria dito o seguinte: “A jabuticaba seria o inverso: só começar a execução após transito em julgado, depois de todas as possibilidades recursais”.
Não sei como Mercadante consegue conciliar esta trajetória, que ele certamente conhece melhor do que eu, com a afirmação de que Alexandre de Moraes e o STF estariam destinados a “defender nossa democracia, nossos direitos e nossa capacidade de participarmos, de forma pacífica e sem manipulações indevidas, dos debates públicos destinados a identificar, promover e defender o bem comum, como se fazia nas ágoras atenienses”.
Se bem que nas ágoras atenienses só participavam homens de bem. Logo, se for esse o parâmetro, talvez seja mesmo possível dar nó em pingo dágua.
Democracia
Mercadante encerra seu texto dizendo que “a democracia interessa a quem é de esquerda, de centro ou de direita”.
Adoraria que isto fosse verdade. Mas não é.
A direita fala em “democracia”. Até a extrema-direita fala em “democracia”. Mas como a história comprova, a direita é assassina de democracias. E o faz sem dor na consciência, pelo simples motivo de que para eles “democracia” tem um significado distinto do significado que tem para nós.
O centro também fala em democracia. Mas seu posicionamento real depende da correlação de forças. A maior parte do centro apoiou o golpe de 2016 e votou no cavernícola em 2018. Aliás, como já ouvi uma vez ser dito por um assessor do presidente Lula, na prática o “centro não existe”.
Portanto, a democracia interessa mesmo é a nós, da esquerda.
A classe trabalhadora precisa de liberdades democráticas. Por isso, concordando com Mercadante, devemos ser contra o “neocolonialismo digital".
E em nome disso, podemos e devemos fazer alianças. Mas sem confiar nos aliados de direita e centro, sem baixar a guarda, sem acreditar que pêras nascem em carvalhos.
Exemplo dessa postura está no último parágrafo do artigo de Mercadante.
Palavra de Mercadante: “As utopias, como escreveu Eduardo Galeano, são como o horizonte. Por mais que caminhemos em sua direção, nunca o alcançamos. As utopias, contudo, servem justamente para isso, para nos obrigar a caminhar. A caminhar no rumo correto. Enquanto tivermos na vanguarda dessa caminhada interminável, porém imprescindível, com cidadãos como Alexandre de Moraes, estaremos bem. Nossa democracia estará bem”.
Fazer de Alexandre Moraes a vanguarda da nossa caminhada interminável pela utopia pode ser apenas um exagero brega de ghostwriter.
Mas também pode ser algo deveras simples: mais uma confirmação de que parte da esquerda brasileira está trocando de utopia.
Obrigado, Mercadante, por nos lembrar disso!